Volume 1

Capítulo 20: A Fronteira da Cidade — Parte 1

Enquanto caminhávamos de volta pela floresta, Sheyla liderava o caminho com sua espada, habilmente cortando e ajustando ramos de raízes e galhos para facilitar a nossa passagem. Meril carregava o mapa que nos guiava através da trilha demarcada.

O pensamento de que uma cidade humana estava tão perto deste lugar, onde eu havia acordado recentemente, me deixou curioso. Mas agora, isso parecia irrelevante, uma vez que já havíamos explorado as áreas circundantes.

Ao seguir a trilha onde encontrei os primeiros aventureiros, teria a possibilidade de chegar à cidade antes de qualquer evento ou descoberta. O fato de eu não ter os seguido poderia ser considerado "sorte"? Não, eu não posso chamar isso de sorte.

— Yami, está tudo bem? — perguntou Sheyla, dando alguns passos e se aproximando de mim.

Ah? Sim... só estava pensando um pouco.

— Algo importante?

— Não tanto.

— Não se preocupe, assim que chegarmos na cidade, iremos atrás das ferramentas para recuperar sua carruagem, ok?

— Assim agradeço, mas não é isso que eu estava pensando.

— Não?

— Não é grande coisa, pode ficar tranquila.

— Tudo bem então. — Sheyla olhou para frente e apontou em direção ao final da trilha que entrava novamente em uma parte com muitas árvores. — Depois que passarmos por aquelas árvores, já poderemos ver a cidade.

— Sério? E pensar que estava tão perto. Como não percebi antes?

— O que foi?

— Sabe, de onde eu acordei até aqui não tem muito tempo de caminhada.

— É. Realmente.

Meril e Ninx estavam caminhando atrás de nós, mas não resolveram interferir em nossa conversa.

— Óbvio que mesmo subindo naquela árvore, não teria como ver a cidade... — que situação lamentável. — E, também a maior montanha fica na direção oposta, portanto eu não poderia saber, é isso.

?

Sheyla ficou confusa pelos meus comentários avulsos e não posso culpá-la. A verdade era que estava tentando criar uma desculpa para não parecer um completo idiota. Enquanto eu xingava deuses e o mundo pelo jeito que as coisas tinham acontecido ao acordar, essa cidade provavelmente foi escolhida como meu ponto de partida.

— Não se preocupe, apenas devaneios.

— Tudo bem.

Sheyla confirmou, e continuamos o caminho da trilha. Assim que subimos o pequeno morro, caminhamos para dentro daquele bosque e, com apenas alguns passos, estávamos do outro lado. Este lado nos dava uma visão quase panorâmica de todo o lugar.

De onde estávamos, podíamos ver a estranha e magnífica visão: um gigantesco paredão de pedras que estendia seu comprimento para cada um dos lados até que se perdesse de vista. No meio desse paredão, uma fenda em formato de raio dividia toda aquela montanha em duas partes. E no meio dessa fenda, e até mesmo entre ela, o que parecia uma cidade-trepadeira que ia da base da montanha até áreas relativamente altas.

Os complexos de casas e estruturas me lembravam as favelas dos países sul-americanos, o que era estranho e intrigante ao mesmo tempo. Na base da montanha e ao redor daquela cidade, uma muralha feita por mãos humanas protegia a entrada.

Eu tive dificuldade em imaginar como seria a vida nessa cidade que estava tão próxima de uma floresta "repleta de perigos e monstros". Mas, até agora, eu não encontrei nenhum desses monstros.

O sol já estava começando a se pôr e as sombras se estendiam ao redor da cidade.

Mesmo à distância, não conseguia acreditar que aqueles edifícios e suas muralhas eram de fato uma cidade. Tudo parece precário e mal-acabado para mim. Como as pessoas conseguiriam sobreviver neste lugar?

As garotas se aproximaram e apoiaram nas árvores enquanto olhávamos para a cidade. Ninx soltou um longo suspiro e expressou sua opinião:

— Você vê, chamar isso de cidade é um pouco exagerado, não achas?

— Talvez...

— Mesmo assim, muitas pessoas chamam esse lugar de casa, Ninx — disse Sheyla.

— Sim, eu sei. Também nasci aqui, comandante.

Fui até uma pedra e subi para que me ajudasse a ficar na mesma altura que as garotas. Apoiei-me também sobre a árvore ao lado e comecei a encarar o lugar. Fazendo isso, notei que as casas estavam dispostas de uma maneira vulnerável, totalmente expostas à floresta e suscetíveis a ataques.

— As casas... não deveriam estar dentro da fenda? — Olhei para Sheyla e depois para as outras esperando ver quem iria responder. Vendo que elas estavam com um pouco de dificuldade, complementei: — Quero dizer, desse jeito até parece que são um alvo fácil para qualquer tipo de ataque.

Todas concordaram e Sheyla se aproximou de mim para explicar:

— Sim, Yami. Essa região é a mais vulnerável e provavelmente seria atingida primeiro em caso de ataque.

— E isso está certo? — perguntei.

Antes que Sheyla continuasse, Meril respondeu:

— Sim. Foi planejado dessa forma. Assim, se houvesse um ataque, os outros teriam tempo para se preparar e reagir.

Ninx, porém, discordou:

— Planejar? Reagir? Você quer dizer fugir, certo? Aqueles malditos linhos-dourados, só se preocupam com o luxo de suas luvas de seda. Se houvesse um ataque, eles usariam esse tempo para encher seus dedos gordos de moedas e fugir.

Sheyla suspirou e continuou:

— Bem, Ninx não está completamente errada. É provável que os governantes da região tenham isso em mente. Mas não podemos generalizar. Há muitas pessoas boas vivendo aqui também, pessoas que se preocupam com suas casas e trabalham duro para mantê-las seguras.

— Mas, ainda assim... — Comecei a falar, mas fui interrompido pela Sheyla.

— A cidade não é apenas isso, Yami. Há muito mais além dessa fenda.

— O que quer dizer? — perguntei curioso.

— A maior parte da cidade fica do outro lado da fenda. Há muito mais casas e edifícios que você não pode ver daqui.

— Entendi... já estava pensando que isso era apenas uma favela.

De repente, notei uma grande construção fortificada no topo da montanha e novamente voltei a perguntar:

— E o que é aquilo? Lá em cima.

— Aquilo? — Sheyla apontou na direção do forte e eu confirmei com a cabeça. — É o Forte de Antheres. Ele foi usado como o último ponto de defesa contra os demônios e monstros na antiga Grande Guerra.

— Antheres? Grande Guerra? — questionei, curioso.

Meril, vendo a deixa para sua explicação, logo se prontificou e fez a sua posição de professora:

— Sim! Há pelo menos 200 anos a Grande Guerra terminou. Com a queda do Reio dos Demônios Brazuk pelas mãos do Herói Hero, os demônios recuaram para seus territórios. Mas este lugar foi aquele que mais teve batalhas. O Reino de Gryndal só conseguiu se manter firme por causa daquele forte — apontou também em direção ao forte no topo da montanha — e das inúmeras vidas que se prontificaram a proteger aquela fenda.

Herói “Hero”, sério que não teriam um nome menos clichê? De qualquer forma, 200 anos atrás? Isso são pelo menos duas a três gerações se considerarmos a idade dos humanos.

— E agora está desse jeito? Abandonado?

Sheyla respondeu:

— Desde a grande guerra, os demônios deixaram de ser vistos, passando às vezes a serem considerados lendas.

— Em tão pouco tempo? — perguntei, surpreso.

Meril explicou:

— Bem, são poucos aqueles que estão vivos desde aquela época até hoje.

Cruzei os braços e voltei meu olhar para a cidade, admirando a vista panorâmica. Era fácil entender por que essa região era considerada um bom ponto de defesa. As montanhas pareciam muralhas, dividindo o mundo em duas partes: a floresta deste lado e o restante do reino humano do outro. E a cidade em si era como se fosse a porta dessa muralha.

Mas apesar da vista maravilhosa, eu não podia deixar de me preocupar com o forte que estava localizado no topo da montanha. Mesmo com minha visão aguçada, não conseguia ver rotas fáceis para chegar lá. Será que o caminho para alcançar o gume da montanha estava do outro lado?

— Tudo bem, Yami? — perguntou Sheyla.

— Sim, só estava pensando um pouco sobre nossa situação.

— O que você quer dizer?

— Bem, de tudo que aconteceu, encontrar um demônio é raro hoje em dia, e agora estou aqui andando com vocês.

— Não se preocupe, Yami — disse Sheyla, se aproximando e segurando minhas mãos com as suas. — Do jeito que você está, além de parecer uma humana, o máximo que poderiam supor é que você é uma meio-demônio.

— Meio-demônio? O que isso significa? — perguntei, curioso.

— Deixe-me explicar — disse Meril, ficando entre nós duas. — Um meio-demônio, Yami, é uma descendente direta entre um demônio e um humano. Ou melhor, é um humano com sangue demoníaco.

— Mas como isso é possível? — perguntei, sem esconder minha surpresa.

— É possível por meio de uma relação carnal entre um demônio e um humano! — respondeu Meril prontamente, mas Sheyla ficou vermelha como um pimentão e repreendeu Meril por falar coisas desnecessárias.

— Meril... contenha-se em informar apenas o necessário, por favor — pedi, tentando acalmar as coisas.

— Apesar de ser raro, há histórias onde demônios e humanos se relacionaram e tiveram seus filhos como meio-demônios. Não é possível confirmar isso do ponto de vista mágico ou científico, mas é senso comum — explicou Meril.

— E há muitos meio-demônios, então? — perguntei.

— Não. Eles ainda são raros, mas é bem provável que havia muito mais antes. A maioria dos meio-demônios foi morta durante a Grande Guerra e algumas expedições realizadas pela igreja.

— E aqui? — perguntei, lembrando da cidade onde estávamos.

— Alguns sobreviveram como escravos, enquanto outros se refugiaram em cidades afastadas ou até mesmo no território demoníaco.

— Território demoníaco, ? Será possível viver naquele lugar?

— Não sabemos muito em relação ao território demoníaco. Durante a Grande Guerra e alguns anos depois, recebemos relatos militares sobre os confrontos e tudo mais, mas nem mesmo o Herói retornou de lá.

— Sério? Interessante — disse enquanto colocava as mãos sobre meu queixo de maneira pensativa.

— Voltando ao assunto principal... se eu aparecer na cidade, isso significa que causaria algum tipo de confusão?

Oh, não.

— Mas você mesmo disse que é raro...

— Sim, mas não é algo que cause alarde. Na verdade, há meio-demônios que vivem entre os humanos sem que ninguém saiba. É uma questão de manter o sigilo e não chamar atenção

— Isso é bom saber. Eu estava preocupado com a possibilidade de causar algum tipo de problema só por se parecer um meio-demônio.

— Yami. — Sheyla interrompeu, sorrindo gentilmente. — Você não precisa se preocupar com o que as pessoas vão pensar. Afinal, com sua aparência, provavelmente a maioria achará que você é de Naziri.

— Naziri?

— Sim... é o povo que vive na região ao extremo do sul do Reino. Lá está repleto de desertos e areia dourada. Pelo menos é o que dizem. Com seu tom de pele, provavelmente diriam que você vem de lá.

— Entendi... é tipo o continente africano desse mundo? — perguntei baixinho.

— “Continente Africano?”

Ah, isso... bem, no meu mundo havia uma terra onde as pessoas costumavam ter essa cor de pele. E pelo jeito, Naziri é o mesmo aqui, certo?

— Sim? — tentou concordar Sheyla.

— Podem até achar estranho o fato de ter uma naziri aqui nas regiões do norte, mas nada que fosse tão incomum. E se verem que é um meio-demônio, basta mostrar o contrato de escravidão que não terão mais o que reclamar — comentou Meril.

— Parece fácil quando vocês dizem assim, mas e se algo der errado?

— Como Meril disse, basta mostrarmos o contrato de escravidão e tudo ficará bem — Sheyla complementou.

Ninx deu uma risada.

— Não se preocupe, Yami, afinal nós temos a Comandante dos Cavaleiros de Lóthus. Acredite, será fácil — afirmou Ninx.

Embora eu tenha sido o motivo delas estarem respondendo às perguntas como se fosse uma aula de história, já está ficando escuro e não podemos perder mais tempo aqui. Preciso ir à cidade o mais rápido possível, verificar o estado das coisas, encontrar ferramentas úteis para remover meu carro daquela colina e, também para ter uma compreensão melhor deste mundo.

— Bem, garotas, vamos terminar essa aula de história por enquanto. Como podemos entrar? Basta ir até lá e atravessar aquelas muralhas?

— Não se preocupe com isso, eu tenho autoridade para atravessar os portões da cidade. Além disso, mesmo fora das muralhas, há algumas casas e prédios que compõem o Posto da Fronteira. Passaremos por lá primeiro — explicou Sheyla.

— Por que há casas e prédios fora das muralhas? — perguntei curioso.

— São pontos de preparo e chegada.

— E por que estariam construídos fora da muralha?

Ninx riu novamente e disse de maneira irônica:

— Você vai entender quando chegarmos lá.

Sheyla vendo toda a ironia de Ninx, fez um sinal negativo enquanto tentava me explicar:

— Resumindo, Yami, de dentro da muralha, quase não há espaço para ter essas estruturas, então foi criada a vila do lado de fora.

— Uma escolha não tão sábia, pelo visto.

— Ao menos está funcionando — disse Sheyla um pouco nervosa. — De qualquer forma, como ainda estamos falando da Floresta de Erthemon, o Posto da Fronteira serve para impedir que alguém carregue algo estranho para dentro da cidade.

Hmmm, então é tipo uma triagem? — perguntei.

— Sim.

— Certo, vamos lá!

Sheyla começou a descer pela colina em direção à trilha comum da floresta, seguida pelas outras. Eu fui logo atrás, e Sheyla encarou Meril e Ninx por um momento.

— Vocês são aventureiras, certo? — perguntou ela repentinamente.

— Sim — responderam as duas.

O que há com essa pausa dramática?

— Algum problema? — perguntei, me aproximando para ficar ao lado da Sheyla.

— Não. É que apenas aventureiros podem sair das muralhas da cidade. Aldeões e civis normalmente não podem sair. Claro que tem aqueles foragidos da lei que saem escondidos... — Sheyla olhou Meril e Ninx, e provavelmente assim como eu, pensou que essas duas não são bem flor que cheire. — Devemos evitar qualquer problema adicional.

— Me desculpe por não ser certinha como você, princesa perfeição — disse Ninx agressivamente.

— Acalme-se Ninx.

— Ainda assim, o que tem haver elas serem aventureiras?

— Bem, se elas são aventureiras, basta mostrar o cartão da guilda que o número de perguntas certamente diminuirá.

— Entendi.

Ninx tentou falar algo, mas se conteve.

Nos aproximamos das planícies que circundavam as muralhas da cidade. Aqui já quase não havia mais árvores, exceto aquelas que pareciam ter sido deixadas propositalmente pelos moradores. A floresta em si parecia estar bem limitada, com seu bioma fazendo uma parede de árvores.

Era como se estivéssemos no caminho de transição entre a floresta e a cidade em si.

Já na metade do caminho, fiz um sinal para que elas parassem.

— O que foi, Yami?

— Só para confirmar, eu sou a escrava... então, como devo agir?

— Como assim?

— Bem, eu sou sua escrava agora... preciso seguir alguma etiqueta específica?

Olhei para Sheyla, que parecia confusa com a minha pergunta, e depois encarei Meril e Ninx.

Ah, bem, não sei.

— O quê? Não sabe?

— Desculpe, Yami, nunca fui fã de ter escravos, então não sei muito sobre isso.

Você diz isso, mas aceitou tão facilmente a ideia. Respirei fundo, parecia que ela não estava mentindo. Mas isso era um problema, pois eu não tinha ideia do que era comum aqui. O "senso comum" do meu mundo poderia ser uma armadilha neste mundo, e eu não queria estragar tudo.

— E vocês duas?

— Tenho apenas conhecimentos superficiais sobre o tema, obviamente. Apesar de não ser ilegal ter escravos, é ilegal para a minha... família.

— E nem pergunte o porquê — disse Ninx de maneira sarcástica.

— E você?

— Eu? Não sei. Se eu tivesse um escravo um dia, certamente não precisaria fazer o que faço — respondeu Ninx.

— Yami, um escravo que é adquirido por meio de um contrato possui inúmeras vantagens para o mestre, mas há muitas condições e requisitos para que isso aconteça. Portanto, poucos são aqueles capazes de reproduzir o contrato ou a pedra de escravidão. Quando nos referimos a esses tipos, pode ter certeza de que há um custo elevado por trás desse negócio — explicou Meril.

— Ou seja, não é muito comum encontrá-los.

— Sim. Apesar de não ser ilegal, não é como se fosse um negócio tão comum quanto comprar e vender uma maçã.

Não sei se agora, ouvindo esses detalhes adicionais, essa história de escravidão ficou mais ou menos pior. De qualquer forma, agora só nos restava seguir em frente.

— Acredito que basta ficar ao lado da Sheyla que não haverá problemas. Por ser uma cavaleira de Lóthus, mesmo que seja incomum, eles não fariam perguntas sobre escravos.

— Do jeito que as coisas estão, provavelmente isso seja verdade.

Hmmm?

— Tudo bem? Podemos prosseguir? — disse Sheyla. — Já que estamos aqui, vamos, preciso mostrar a cidade para Yami!

— Espere, não precisa se apressar!

O que há com essa garota para que, de repente, receba esse gás?

Foi engraçado que a planície de grama logo se transformou em uma inclinação. Era como se estivéssemos descendo em uma rampa de skate apenas para subir do outro lado. Isso deve ser uma das outras vantagens do terreno que proporciona proteção a este lugar.

A Floresta de Erthemon ficava acima do nível da cidade, o que nos dava uma visão panorâmica de todo o lugar. Mas quanto mais nos aproximávamos da cidade, mais caminhávamos ao longo do caminho sinuoso que a cercava. Olhando para trás agora, ficou claro que qualquer exército que saísse da floresta e atacasse as muralhas da cidade de frente teria sérios problemas devido à disposição do terreno.

Depois que nosso campo de visão se ajustou à região mais plana, pudemos ver o Posto de Fronteira com mais clareza.

O lugar era como uma pequena vila localizada na estrada principal. As casas e estruturas foram construídas de ambos os lados da rua e mais à frente estavam os grandes portões de madeira e as paredes de pedra que cercavam a cidade, ou pelo menos aquela parte dela.

Tanto as montanhas quanto as muralhas eram enormes e, daqui de baixo, não conseguia ver nada além daquelas paredes de pedra.

É incrível que esse cenário se parece muito com um jogo de fantasia medieval. As casas eram feitas de pedras e vigas de madeira. Os tetos de tábuas e palha. Uma verdadeira vila europeia, pelo jeito.

Sheyla nos guiou pelas ruas da cidade, apontando para os diversos pontos de interesse enquanto eu a seguia com o olhar.

Enquanto caminhávamos, comecei a notar algo acontecendo. As pessoas ao nosso redor pareciam estar nos observando de maneira estranha, com olhares curiosos e desconfiados.

Sistema: [Percepção Passiva ativada].

[Você está sendo observado por, pelo menos, 10 indivíduos e 2 fora do alcance visual].

— Sheyla, por que todo mundo está olhando para nós assim? — perguntei.

Ela pareceu surpresa com minha pergunta.

Ah, eu não tinha notado, me desculpe. Como discutimos antes, podem estar curiosos acerca de você... mas não se preocupe.

Mesmo com seus olhares direcionados, não é como se estivesse demonstrando sinais de medo ou raiva. Ainda assim, a curiosidade era intensa o suficiente para nos acompanhar quase que todo o instante.

De todas aquelas pessoas que estavam nos encarando, muitas pareciam trabalhar diretamente no posto. Pude ver alguns rostos estranhos e até mesmo não-humanos e meios-animais.

Apesar de não ser aficionado por este tipo de história ou jogos eletrônicos, conseguia distinguir alguns clássicos como “anões” e elfos, no entanto, os outros não faço ideia do que seriam. Só foi mostrar minhas dúvidas e ignorância que o Sistema não perdeu tempo mostrando-me inúmeras telas e janelas.

Certo, Sistema, pare com isso!

—Yami?

Errr... — novamente o Sistema me fazendo parecer um idiota. — Sheyla, eles não parecem aventureiros para mim. Você não disse que civis não podem sair da muralha?

— Eles são agentes da guilda e outros funcionários da cidade. Apesar de não serem aventureiros, podem sair da muralha para realizar os serviços necessários para a cidade e o posto.

— Então é isso.

— O que foi?

— Também há poucos humanos aqui, ?

— Sim... Você perceberá que para este lado da cidade haverá muito mais inumanos.

— Inumanos?

Meril, ouvindo nossa conversa, explicou – e ela gosta de explicar as coisas, certo. Digno de uma professora:

— Inumanos são todas raças que não são humanos, mas ainda possuem traços de humanos entre elas.

— Anões e elfos estão incluídos nisso?

— Sim, apesar que estes às vezes são tratados tal como humanos. Já aqueles — Meril apontou sutilmente para os outros — são lupinos, gatunos, cervídeos...

Respectivamente era um meio-canino, um meio-felino e um meio-veado, talvez?

— Alguns são mais humanos que outros...

— Sim. Você vai se acostumar com isso. Mas, acho que seria bom deixar claro, Yami — disse Sheyla com um pesar nas palavras. — Quanto mais um inumano se parecer com um animal, mais ele será tratado como...

— Lixo. — Ninx disse de certa forma irritada. — É isso, você verá que todo esse lugar é tratado como um verdadeiro lixão pelos linhos-dourados.

— Algo desse tipo... — afirmou Sheyla baixinho.

— Tudo bem. — Não é como se eu esperasse muito, de qualquer forma. É até engraçado que Ninx parece me entender um pouco... espere, engraçado? Acho que é um pouco problemático, isso sim. — Outra coisa, não há poucos guardas?

Dito isso, não há basicamente guarda nenhuma aqui fora.

— Manter uma guarda-ativa e com muitos homens custa muito caro, então eles estão mantendo apenas o mínimo para manter a ordem...

— Ou fingir manter a ordem... — disse Ninx.

Mesmo usando o capuz, ainda não posso esconder totalmente os traços demoníacos. Meu rabo é uma situação problemática visto que ele parece ter vida própria. E por causa dos chifres, o capuz fica levemente levantado dando a mim, provavelmente, um aspecto sinistro de ser visto.

É muito ruim ser “atacado” com os olhares, mas tenho que aguentar.

Ao menos o Sistema está me deixando ciente daqueles que me observam e daqueles novos observadores. Só é um pouco caótico esse monte de ícone no meu campo de visão.

Caminhamos em direção a um grande prédio, situado antes do portão principal da cidade. O portão em si era imponente, com duas portas enormes, mas havia uma pequena porta entre elas que estava aberta. Dali algumas pessoas entravam e saíam.

Caminhamos até o grande portão, flanqueado por um prédio de dois andares que parecia uma escola primária simples. Quando nos aproximamos, um homem se levantou do seu banquinho e veio até nós. Ele usava roupas que lembravam a de um guarda, mas em comparação aos equipamentos da Sheyla, havia uma clara distinção de classes aqui.

Ao nos aproximar, percebi que o guarda tinha uma postura confiante e um olhar aguçado, examinando cuidadosamente nossa chegada.

Eu ativei meu [Analisar] para verificar quem era ele e fiquei surpresa ao ver que seu nível era apenas 12. Ele se chamava Juulis e parecia estar extremamente surpreso ao ver Sheyla.

— Pelos deuses, se não é a Lady Sheyla Bilterfon — disse ele, surpreso.

— Por que a surpresa, Juulis? — perguntou Sheyla, confusa.

— Conhece ele? — perguntei.

— Sim, como posso dizer isso... — hesitou Sheyla.

— Eu sou o maior fã da cavaleira Seyla! Na verdade, sou o fã número um! — disse Juulis, muito, muito entusiasmado.

— Você tem um fã-clube? — perguntei, surpreso.

— Sim! Digamos que sim... — disse Juulis, orgulhoso.

Assim que ele se acalmou, pôs a nos observar com bastante seriedade, e depois que fez isso, cruzou os braços balançando a cabeça de maneira positiva. E como alguém totalmente eloquente, se aproximou de Sheyla apontando para minha direção.

— E então, Lady Sheyla, quem é essa garota? — perguntou Juulis, curioso.

Todos ficamos apreensivos por um momento, até que Sheyla, decidindo o que dizer, respondeu:

— Guarda Juulis, devido à natureza da minha missão, não posso explicar os detalhes. No entanto, essa garota ao meu lado é minha... minha... — Sheyla vacilou por um momento. — Minha acompanhante.

Hmmm?! — Juulis parecia extremamente confuso e duvidoso, olhando para cada um de nós — Acompanhante?!

— Quero dizer, minha escrava!

Ah?

— Aconteceu algumas coisas na floresta e meio que... é isso! — Terminou sua frase com certo entusiasmo como se tivesse feito uma grande atuação.

Juulis ficou um tempo sem responder ou mesmo mudar suas expressões, mas como se fosse apenas esperando a moeda cair, ele transformou-se.

Ah, por isso? Por um momento fiquei pensativo... Mas, se estamos falando da lady Sheyla, não há para o que se preocupar — ele por acaso é algum tipo de retardado?

— Meus superiores vão ficar muito nervosos se não a marcarmos, Sheyla. Eu sei que você não faria mal a esta cidade trazendo alguém tão perigoso, mas... vamos lá, ela vai precisar da coleira — afirmou Juulis.

— Coleira?! — gritei, confuso.

— Espere, ela não é sua escrava? Ela pode falar livremente? — perguntou Juulis surpreso.

? — disse Sheyla confusa.

— Quê? — disse Meril perplexa.

Hmmm? —Ninx foi a última.

— ... — fiquei em silêncio, tentando entender a situação.

— O que há com todo mundo? Vocês não sabem das regras? — disse Juulis, explicando. — É muito incomum um escravo falar sem autorização de seu mestre, por isso estranhei. Achei melhor vocês saberem antes de causar alguma confusão.

Ah, entendi. Obrigada, Juulis — disse Sheyla.

— Espere, o que é essa coleira? — perguntei baixinho para Sheyla.

— Já te explico, Yami.

— Você poderia fazer menos escândalo, guarda? — disse Meril irritada.

— Bem, e quem são vocês? — perguntou Juulis, com uma expressão curiosa no rosto.

Sheyla sorriu, se preparando para responder. Ela sabia que, para esses guardas, tudo o que não entendiam ou não conheciam era motivo de desconfiança e, muitas vezes, de medo.

— Elas são aventureiras, trabalhando diretamente com os Cavaleiros de Lóthus para minha missão — respondeu Sheyla, mantendo a calma.

Juulis acenou com a cabeça, mas sua curiosidade ainda não havia sido saciada.

— Entendo. Pensei que você estivesse com o grupo do Frederick. Apesar que eu o vi voltar da floresta anteontem bem assustado.

Frederick seria um daqueles aventureiros de antes? Eu não consegui ver seus nomes ou status pois não sabia como o Sistema funcionava.

Sheyla franziu as sobrancelhas. Parece que Frederick era um dos aventureiros que ela conhecia, e se ele realmente havia voltado assustado, algo de errado havia acontecido.

— Você sabe onde ele está agora? E como assim ele voltou assustado? — perguntou Sheyla, querendo saber mais.

Juulis suspirou, pensando em como explicar a história:

— Não sei explicar muito bem, apenas ouvi dos outros guardas. Pelo jeito, disseram que ele avistou um monstro terrível na floresta além de qualquer outra já vista antes. Jurava de pés juntos que a cidade deveria se proteger o quanto antes, pois esse seria o ataque de uma criatura horrível e maléfica... algo do tipo.

Todas olharam para mim imaginando que talvez minha [Aura Demoníaca] tivesse algo relacionado com estes rumores. E não dá para negar, depois de ver aquilo, é certeza que qualquer espalharia rumores para deus e o mundo.

Pensando nisso, talvez eu deva me preocupar ainda mais? Afinal já tinha receio de entrar na cidade, e agora com um aventureiro espalhando boatos por aí, como vai ficar minha situação agora?

— E o que aconteceu depois disso? — perguntou Sheyla, tentando obter mais informações.

Juulis coçou a cabeça, parecendo um pouco desconfortável.

— Bem, apesar dele e seus companheiros estarem tão assustados, os superiores entenderam que ele estava sob algum efeito de alucinação. Sabe como é, . Devem ter encontrado um mob especial de Salgueiro Amaldiçoador e ignoraram por completo sua Aura de Medo.

Ah, que alívio, de algum jeito eles parecem estar acostumados com alguém dando com a língua no dente e falando coisas sem sentido. Parecem não acreditar muito nessa história. Mas é tão estranho os dois estarem conversando usando termos de jogo eletrônico, como assim: “mob especial” e “Aura de Medo”?

Juulis ainda tinha uma pergunta para Sheyla.

— Você não estava com eles? — perguntou, encarando Sheyla com um olhar penetrante.

— Sim... mas tivemos que nos separar por um momento no meio da floresta. Por isso estou voltando só agora — respondeu Sheyla, sem hesitar.

— Faz sentido — concordou Juulis, confirmando com a cabeça. Depois, ele olhou para as outras duas. — As outras estavam com você? Não me lembro de tê-las visto sair.

— Possuímos nome, guarda. Não somos “as outras”. Me chame Meril, Meril Armani — disse a mulher, irritada.

— Armani? Da família de praticantes de magia negra, aquela famosa Família Armani? Junto com a Sheyla? — perguntou Juulis, visivelmente surpreso.

— Ei... seu...

— Acalmem-se. Sim, ela é da família dos Armani, mas, até você deve saber porque fomos enviados para aquela floresta, ? — interrompeu Sheyla, tentando manter a compostura.

— Sim. Ouvi dizer que os monstros estão se reunindo de uma maneira estranha recentemente — respondeu Juulis, recuperando a postura.

Ele olhou para Ninx que apenas desviou o olhar, deixando escapar uma expressão de desgosto. Era claro que a presença da guarda não a agradava, e talvez isso tivesse algo a ver com o fato de Ninx possuir um passado meio questionável.

— Essa é a Ninx, batedora de um grupo de escolta. Enquanto estávamos mais afundo na floresta, ela nos ajudou a voltar em segurança.

— Entendo. Tudo faz sentido agora! — exclamou Juulis ao bater uma das mãos fechada sobre outra.

Ninx manteve-se em silêncio, mas era possível perceber que ela estava claramente incomodada. Enquanto isso, Sheyla parecia mais preocupada em confirmar a verificação.

— Se não tiver nenhum problema, gostaria de fazer a verificação agora — disse Sheyla. — Tudo bem?

— Não. Podemos ir para lá.

Mas antes que pudéssemos acompanhar Juulis, Meril se aproximou de nós dois.

— Sheyla, e Yami, nós precisaremos nos afastar.

— Quê? Por quê? — perguntei, confuso.

— Normalmente se usa uma Esfera de Contrato para poder verificar a ligação entre o escravo e o mestre. Isso para comprovar o contrato. No entanto, Yami, como ainda estamos vinculados ao seu contrato, temo que isso possa causar uma tremenda confusão caso nossas ligações sejam reveladas.

— Entendi. Tudo bem, tenham cuidado.

— Certo.

Caminhamos para a entrada do edifício e ficamos aguardando-o para nos guiar entre alguns corredores e salas. Depois de algumas salas sem nada de diferente, chegamos até uma que me lembrava um escritório.

Era estranho não ter nenhum outro guarda no lugar se não o próprio Juulis.

A sala possuía uma grande mesa e algumas estantes com caixas e livros na parede. Havia apenas uma cadeira do nosso lado e uma do lado dele. Assim que Sheyla se aproximou, ele apontou para mesa pedindo-a para que se sentasse enquanto ele estava procurando algo.

— O que ele está procurando? — perguntei baixinho para Sheyla.

— Não sei.

Assim que Juulis terminou sua busca, virou-se para nós e deu um largo sorriso e um pouco confuso, olhou ao redor.

— Cadê suas companheiras, saíram? Elas também precisam passar pela verificação.

— Não se preocupe com isso, Juulis. Elas só estão adiantando algumas coisas, mas logo voltarão.

— Certo. Bem, primeiro deixa eu verificar seu estado, certo?

Ok.

Sheyla levantou os braços e retirou algumas partes da armadura que cobriam seu pulso e mão direita. Ela os estendeu em direção a uma plataforma metálica com uma superfície costurada com couro.

Parecia um exame de sangue, mas para contratos de escravos. Enquanto isso, o guarda deixou uma esfera sobre a mesa. Era a esfera de contrato, uma bola de boliche transparente com um estranho gel ou plasma se movimentando dentro dela.

Juulis colocou a esfera ao lado do braço de Sheyla e digitou no ar como se estivesse em um teclado virtual. De repente, a esfera começou a emitir uma luz azul brilhante, com vários símbolos estranhos se espalhando ao redor dela e dos pulsos de Sheyla. Perguntei a mim mesmo se essa era a língua deles.

Sistema: [Tradução Mágica ativada].

Fico impressionado que até mesmo a Tradução Mágica consiga decifrar esses símbolos. Suas formas estranhas começam a se assemelhar a alguns kanjis. Mesmo sem toda a parafernália de um jogo eletrônico, a esfera parece calcular seus valores numéricos ao mesmo tempo em que classifica Sheyla como humana.

Em resumo, é como se fosse uma versão bem básica do meu Sistema.

O guarda observou os símbolos por um tempo, balançando a cabeça algumas vezes antes de finalmente confirmar ao olhar para Sheyla. Depois de alguns instantes, a esfera parou de emitir luz e os símbolos desapareceram. Juulis então retirou a esfera e a colocou de volta na mesa.

— Tudo certo — disse ele. — Agora só nos resta verificar sua escrava.

Ter esse tapado me chamando de escrava e agindo todo “assanhado” para cima da Sheyla está me dando nos nervos... mas... eu preciso aguentar, sim... preciso aguentar esse tormento! Afinal, fui eu que decidi fazer isso de qualquer forma.



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