Volume 1
Capítulo 18: Os Rastros do Passado — Parte 1
Para a minha surpresa, trouxeram alguns panos velhos e faixas antigas, e com aqueles materiais começaram a criar meu uniforme de “escrava”.
Mesmo as goblins tendo interesse em me deixar “bonitinha e fofinha”, ainda assim, as roupas estariam sendo feitas com trapos velhos. Isso me deixou com um pouco de receio.
É assim que um escravo se veste? Sequer posso confirmar. Afinal, todas as outras escravas que vi estavam nuas. De qualquer forma, esses trapos são melhores que as roupas improvisadas das outras garotas. Aquelas são basicamente sacos de batata.
Dito isso, até que levou um tempo para terminarem. Aparentemente todas as garotas e goblins quiseram dar suas próprias opiniões sobre o assunto, e muito desse tempo foi decidindo como me deixariam ainda mais "fofa".
Bem... as vestes são realmente humildes. Ponto positivo para a equipe de confecção. No entanto, isso é tão... tão humilhante.
Meril tinha razão sobre isso depois de tudo.
Agora que meu sangue resfriou, dei-me conta que essa ideia talvez não tenha sido tão boa. Escravos... normalmente não podem andar livre por aí, certo? E, como as pessoas reagiriam ao me ver? Resumindo, como isso poderia me ajudar?
O que seria uma solução simples, acabou trazendo ainda mais dúvidas e problemas. Pelo menos, vendo minha situação, não dá para negar minha aparência frágil e inofensiva. Espero que assim não atraia tantos olhares desnecessários.
Ficar aqui me lamentando não irá ajudar em nada, vamos apenas aceitar esse fato. Não posso voltar com minha palavra, pelo menos não agora.
De todos os testes que fizeram, é de admirar que esse tenha sido o resultado final. E, considerando o uniforme de princesa de antes, essa tem muito mais “roupas”. Inclusive, agora tenho um capuz onde posso cobrir meus chifres.
Meril mostrou-se muito feliz com o resultado. Por quê? Me pergunto. Durante todo o processo de põe e tira roupa, ela também deu seus próprios pitacos e sugestões. Posso dizer que ela aproveitou em todos os sentidos essa experiência de vestir a “boneca”.
Custa-me crer que, por trás de sua fachada de “mulher séria”, há uma estranha personagem de gostos duvidosos e questionáveis.
Sheyla, por outro lado, parece ter uma queda por coisas fofas e infantis. Desde que a encontrei, tudo indica que ela realmente tem um afeto especial por crianças. O fato de ter ficado do meu lado o tempo todo confirma isso.
Ela ainda deseja me proteger mesmo depois de tudo que aconteceu? Não sei dizer se ela é incrível ou idiota.
As outras: Saga, Tina e Samy também parecem felizes com sua segunda “obra-prima”. Agora mesmo as goblins estão batendo palmas enquanto Samy checa os últimos detalhes da minha roupa.
O que elas fariam se soubessem que na minha vida passada eu não era uma criança, sequer uma garota? Já posso até imaginar o escândalo... ou não.
— Terminado, Yami. — Samy se afastou e levou consigo as ferramentas e os restos dos tecidos.
Suspirei novamente e abaixei meus braços.
— Obrigado... — a agradeci com um leve sorriso e ela retribuiu. Por fim, olhei para as goblins e complementei: — E a vocês também.
— Yeei! — as duas goblins se abraçaram.
Qual é desse clima feliz? A gente até parece com alunos do primário se preparando para uma excursão nas montanhas... Pensando bem, a gente já está em uma, né?
Yaga se aproximou de mim quando tudo se mostrou mais tranquilo. Como se não fosse nada, ele veio andando calmamente e fez questão de se inclinar para frente ficando ainda mais perto do meu rosto.
— Yami, um último aviso.
Mesmo que eu o notasse chegar desde longe, por causa desse desfecho, não pude esconder minha surpresa. De qualquer forma, fiz o mesmo com ele, ficando ao seu lado.
— Oh? O que foi? E por que estamos falando assim?
— Sinto muito, Yami. É que esse é um assunto delicado.
— "Delicado", é? Ok, fale.
— A Cidade da Fronteira é uma das poucas cidades que fazem fronteira com o território demoníaco, ou seja, eles podem estar preparados para enfrentar criaturas e demônios…
— Bem, esse é o motivo de fazermos tudo isso, certo? E tem mais, não foi você que disse que agora estou como uma criança humana… quero dizer, meio-demônio?
Ele soltou um longo suspiro e confirmou com a cabeça, depois me encarou outra vez antes de continuar:
— Sim, de fato. No entanto, mesmo que você seja tão forte e que agora pareça mais fraca, não podemos subestimar uma cidade que é conhecida por afugentar os demônios. E, se é seu desejo se manter com discrição, então ao menos deveria considerar meu aviso.
— Entendi, Yaga. Não se preocupe. — Afastei-me um pouco dele, bati nas roupas para deixá-las mais confortáveis e continuei: — Não pretendo ir atrás de confusão. Agradeço o aviso e isso será um motivo a mais para eu ter cuidado.
— Eu que agradeço por você me permitir falar.
— No entanto, aviso dado, por que precisou fazer isso tudo? — Fiz alguns gestos com as mãos mostrando nossa situação.
— Vejamos… seu novo grupo agora é composto por figuras bem únicas, certo? E sendo Sheyla uma comandante dos Cavaleiros de Lóthus... todo cuidado é pouco.
Olhei Sheyla que estava conversando com as outras garotas e voltei a encarar Yaga.
— Sim, entendo. Ela sendo a única que não aceitou meu contrato, pode decidir por conta própria o que seria o certo a fazer dependendo da crença dela. E é melhor não dar sopa para o azar.
— Dar sopa para o azar? — Yaga fez uma expressão estranha e repleta de dúvidas.
— Como posso dizer isso... significa que eu não serei descuidado.
— Ah, sim. — Yaga concordou com a cabeça e se afastou. — Então, era isso que eu tinha para te falar.
Fiz um sinal para que ele me ouvisse antes de sair:
— Yaga, lembre-se do que eu pedi... Conto com você e a Samy quando eu voltar.
— Sim, Yami.
Após aquela “breve” conversa, me aproximei das aventureiras e perguntei se já poderíamos ir. Elas, após confirmarem, deram uma última revisão em seus próprios equipamentos e logo partimos.
Finalmente, vou conseguir ver onde é que eu me meti nesse mundo?
Saímos pelo mesmo caminho do qual entrei pela última vez.
Durante nosso percurso, muitos goblins nos acompanharam e nos observaram. Alguns ainda permaneciam à distância. Diferente de antes, não pareciam tão assustados, porém, ainda apreensivos em relação às aventureiras.
Todos que aceitaram o contrato parecem reconhecer magicamente os aliados, o que é até estranho dado a forma como aconteceu, mas, isso é algo que está me beneficiando, então, que mal tem?
Finalmente estamos saindo da caverna.
Ah, essa luz... como faz diferença a luz para minha visão. Enxergar no escuro é até legal, mas viver em um mundo preto-e-branco, aí acho que já não valeria a pena. De qualquer forma, quanto tempo passou desde que entrei nessa caverna? Um dia? Dois? Quem sabe...
Agora que posso ver a luz novamente, é isso que importa.
E olhe aí, não é só eu que estou feliz em ver a luz do dia.
— Finalmente um pouco de luz do sol! Depois de tantos dias... — gritou Ninx ao correr em disparada para fora.
— Que reação dramática é essa? — perguntei depois de ver toda aquela cena.
— Bem... já tinha perdido a esperança de conseguir escapar... e agora, estou livre! Finalmente livre! Como é bom estar livre.
Ninx parou de pular e esticou-se em direção ao chão colocando seus dedos das mãos um pouco acima dos próprios pés. Depois disso, ela se levantou e começou a movimentar seu tronco de um lado para o outro. Não sei se esse mundo está informado sobre estas técnicas, mas ela está executando um alongamento meio bárbaro.
— É bom que esteja tão motivada assim, mas, vê se não exagera.
— Não se preocupe, chefinha!
— Hã? Quê? “Chefinha”? — coloquei a mão sobre o rosto, suspirando. Depois encarei as outras garotas para ver se elas também não estavam com essa “motivação” toda.
— Ué, você não é nossa chefe agora, certo? Ou prefere que eu te chame de: irmãzinha? Pequeno Demônio? Princesa Demônio? Pequena Princesa? Yamizinha? Yamyam?
— Basta! Por que não me chama apenas de Yami? Como todas as outras, certo? E de onde veio esse “yamyam”?
— Ah, que sem graça... — Ninx deu uma pausa, estalou os dedos das mãos e depois colocou os braços para trás, terminando de se alongar. — Mas... se é o que você deseja, tudo bem, Yami!
— É, isso é o que eu desejo... me chame pelo nome.
Já basta eu ter abreviado meu nome para não os confundir ainda mais, o caralho que vou permitir que me chame de apelidos estranhos. E alguns desses, se acostumados, podem me causar confusão posteriormente.
Meril, que observava tudo sem dizer nenhuma palavra, fez um sinal negativo enquanto ajustou suas roupas acadêmicas. Deu alguns passos para fora da caverna e reclamou:
— E pensar que você estaria tão “livre” para falar com a Yami desse jeito.
— Livre? Sim! Apesar que... no final de tudo, vendemos nossa alma para o demônio, certo? — Ninx sorriu e deu passos largos até algumas árvores mais afastadas antes de continuar: — Esse cheiro... esse ar puro... magnífico!
Sério que ela vai ficar assim, a viagem toda? Já estou começando a considerar deixá-la aqui antes mesmo da viagem iniciar.
Fiz um sinal negativo e tentei acabar com aquela euforia toda.
— Tá, tá... entendemos. Não vai ficar repetindo isso durante a viagem, certo?
— Não. — Após negar, Ninx fez um sinal de “fechando a boca”. — Não vou falar mais nada, nadinha de nada, sequer um “a”...
Essa garota... ela está me tirando do sério.
— Falando nisso, Yaga disse que se seguirmos por este caminho devemos chegar até a cidade em apenas algumas horas, certo? — perguntou Meril encarando o que parecia ser um pedaço de papel.
— Sim. E o que é isso, um mapa?
— Isso? Sim. Yaga me entregou antes de sairmos. Não que seja um mapa oficial da guilda, mas, é detalhado o suficiente para nos guiar até a cidade.
Como sou pequeno, Meril fez questão de se aproximar de mim antes de mostrar o mapa.
O mapa, como ela mesmo disse, é bem simples, tal como o desenho de uma criança. No entanto, há alguns pontos de interesse marcados nele que talvez valha a pena investigar mais tarde.
— E nesse mapa, onde está a cidade? — perguntei, afinal, havia símbolos estranhos para mim. — Não consigo enteder estes símbolos.
— É uma linguagem morta, Yami, acho que quase ninguém conseguiria. De qualquer forma, Yaga disse que esse símbolo é o que representa a cidade. E apesar de ser um pouco antigo, essa linha é a cordilheira que separa o território dos demônios.
— Você quer dizer que todo esse lugar é coberto por montanhas?
— Sim.
— Interessante.
Sheyla foi a última a sair. Por causa do seu equipamento um pouco extravagante, dá para dizer que ela teve mais dificuldades em atravessar o corredor estreito da caverna do que pensei. Assim que ela saiu, olhou para o céu e fechou os olhos.
Será que ela está agradecendo algum tipo de deus?
— Tudo bem, Sheyla? — perguntei e depois fui até próximo dela.
— Sim, Yami. É bom poder ver mais uma vez a luz do dia.
— Você também vai começar?
— Eu? Começar?
— Nada, esquece. — Melhor não dar corda para Ninx.
Sheyla e eu caminhamos para próximo das outras duas.
— E então, o que discutiam? Não consegui acompanhar já que tive dificuldades para passar pelo corredor.
— Nada demais, apenas olhando para o caminho que Yaga comentou — respondeu Meril.
— Entendi, então podemos prosseguir? — indagou Sheyla.
— Nosso objetivo primário é ir para a Cidade da Fronteira, no entanto, eu gostaria de ir em outro lugar primeiro. — Fiz um sinal positivo com a cabeça e apontei para uma direção em meio a floresta.
— Yami? O que estás pensando? — perguntou Ninx.
— Lembram-te quando disse que apareci aqui, neste mundo? Foi próximo daqui... quero dizer — apontei novamente para outro lado da floresta — não tão próximo, mas ainda nessa floresta.
— Deseja ir lá mais uma vez?
— Havia coisas que eu não sabia quando acordei e que agora posso investigar. Além disso, vocês também estão aqui e poderiam me ajudar a... encontrar alguma coisa.
— Entendo... — disse Sheyla baixinho.
— Por que não? Ainda está bem de manhã, mesmo que a gente vá para aquela direção, temos certeza de que chegaríamos na cidade antes do final do dia — disse Ninx.
— Obrigado.
— Além disso, estou curiosa acerca de onde você apareceu, Yami — comentou Meril.
— Vamos lá garotas, esticar nossas pernas! — gritou Ninx.
— Você realmente está com o gás todo, né?
— Claro! Quando se fica presa durante tanto tempo, você precisa se acostumar novamente.
— Falando nisso... quanto tempo vocês ficaram presas com os goblins?
— Acho que uma ou duas semanas, algo do tipo... — afirmou Ninx.
— Por aí. Precisamos confirmar que dia é hoje para ter certeza — comentou Meril.
— Não me lembro direito, mas acho que para mim foram apenas alguns dias desde que acordei naquela caverna — disse Sheyla.
— Duas semanas? Quero dizer... Diferente daquelas outras garotas, vocês são como aventureiras, certo? Como isso aconteceu?
— Ah... isso? Como posso dizer... eu... ai!
Meril tentou me ocultar alguma coisa? Talvez, por isso ela levou um tipo de descarga elétrica.
— Se você ocultar a verdade, vai ficar cada vez pior.
— Você se chama Meril Armani, certo? — perguntou Sheyla.
— Sim.
— Sua família é conhecida por todos...
— E o que isso tem a ver? Elas também reconheceram você, Sheyla — perguntei de certa forma intrigado.
— Sim, no entanto, a família Armani é conhecida por todos os reinos já que ela foi a única família a praticar abertamente magia negra — completou Sheyla.
— Não deveria resumir a história da minha família somente nessa frase.
— Hmmm... Magia negra... é algum tipo de magia do mal?
— Muitos dizem que sim — debochou Ninx.
— Não é bem assim... Deixe-me explicar, Yami. Magia Negra é apenas mais um tipo de magia, tal como qualquer outra. A magia em si não é boa ou ruim.
— Não é isso que os outros dizem.
Meril encarou Ninx com certo ódio em seu olhar e não era para menos, afinal Ninx não parava de atiçar a garota.
— Acalme-se, garotas — disse enquanto olhei para as duas seriamente.
— E aí, por que você foi pega pelos goblins se além da magia negra você também possui um leque poderoso de habilidades?
— Errr... bem... Ai!
— Você é masoquista, por acaso?
— Masoquista?... De qualquer forma, vou falar: Eu estava tentando realizar um Ritual no meio da Floresta de Erthemon... e... bem, falhou. Então, quando me dei conta, já estava presa naquela caverna com exaustão de mana.
— Um ritual?
— Uma magia que requer procedimentos além da própria entonação, algo mais complexo que uma simples magia — explicou Meril.
— Ou seja, ela tentou invocar um demônio... — argumentou Ninx enquanto cruzou os braços em uma posição de autoridade. — Qual é, diga a verdade...
— Que? Não... não é bem isso.
— Sério? E tem como convocar demônios assim? — talvez meu aparecimento aqui tenha sido por causa de uma “invocação”? Não, espera aí, sequer era um demônio na minha vida passada.
— Não, Yami, quero dizer, alguns já tentaram e tal... — Meril fez um sinal negativo e antes de continuar, foi cortado pela Ninx:
— Você quer dizer: "minha família” já tentou...
— Você está muito folgada, certo? Acho que alguém aqui precisa aprender uma lição — disse Meril enquanto preparou seu cetro.
— Ficou brava, por quê? — perguntou Ninx.
Isso já não está indo longe demais?
— Ok! não precisam brigar por isso. E Ninx, acho melhor você parar com isso.
— Me desculpe, Yami. É só que não faz sentido uma nobre está aqui... E para piorar, uma praticante de magia negra.
— Nobre? Meril? — olhei novamente para Meril.
Mesmo que digam isso, é certeza que suas roupas e seu jeito de falar possuem um ar mais nobre do que a da Ninx. E se considerarmos isso, posso dizer que Sheyla está quase no mesmo nível. Porém, tendo apenas Ninx como comparação, qualquer uma seria mais refinada que ela.
— Bem, digamos que minha família é um pouco... conhecida... e famosa — explicou Meril.
Fiz um sinal como se estivesse acompanhando sua história.
— De qualquer forma, continue. Você tentou realizar o ritual e depois que ele falhou, você foi pega pelos goblins?
— Sim. Naquele momento eu estava sozinha então provavelmente eu desmaiei. Não contando com esse desfecho, deu no que deu.
Isso não faz o menor sentido. A menos que Meril seja uma desertora, como ela estaria sozinha na floresta e ainda mais praticando um ritual?
— Incrível que uma das descendentes da família Armani tenha cometido esse erro tão... amador.
— Ninx! — gritei seu nome com certa raiva.
Ela ainda pretende ficar cutucando Meril até quando, e por que isso de repente? Quando Ninx virou o rosto envergonhada por ter sido repreendida, Meril deu alguns passos para frente e apontou o dedo para ela enquanto perguntou:
— Ah, e o que você fez, hein?
— Eu? Bem... eu.... Ai! — Ninx teve a mesma dificuldade que Meril para falar o que aconteceu, né?
O que há com essas garotas, elas gostam de sentir dor?
— O que foi? Por acaso você também tem algo para falar que quer manter em segredo, Ninx? — foi o momento de Meril tentar ser superior.
Dei alguns passos para frente da Meril para diminuir sua ameaça e depois encarei Ninx que fez toda aquela cena para nada.
— O que aconteceu para você ser pega? Considerando suas habilidades, não diria que você tem tanto poder de fogo quanto Meril, porém, suas habilidades de furtividade e corrida estão em outro nível...
— Talvez eu também tenha dado um deslize principiante?
Ninx é a única que não conseguiu recuperar seus equipamentos, ou seja, seus equipamentos não estão com os goblins de qualquer forma. Será que ela foi encontrada desse jeito, apenas com as roupas do corpo?
— E então...
— Acho que... fui abandonada pelos meus amigos?
— Oh, então seria isso? — Meril sentiu-se aliviada e de certa forma feliz, quase como se algo que ela previsse, se confirmou.
— Isso o que? — Eu, por outro lado, não conseguia acompanhar seu raciocínio.
— Nossa amiga aqui é aquilo que chamamos de abutres... carniças... rapineiros. Certo, Ninx? Você não é uma aventureira, e sim uma rapineira!
Rapineiros? Será que Meril também consegue ver através das habilidades de Ninx? Não... não parece ser isso, mas como ela acertou algo que o Sistema tenha me mostrado de maneira tão precisa?
— O que seria isso? Rapineiro?
Ninx ficou em silêncio, parecia não ser capaz de contra-argumentar com Meril.
— Como posso dizer isso, nossa amiga aqui guia um grupo de aventureiros para um lugar que só ela conseguiria fugir e...
Sheyla deu alguns passos e cortou Meril:
— Desaparece... — Depois de um longo suspiro e uma encarada, Sheyla perguntou: — É isso mesmo, Ninx?
— Certo! Isso mesmo... não me orgulho disso, ok? Mas não tem o que fazer, se eles mesmos não conseguirem fugir, eu não tenho culpa. Ser aventureiro é um trabalho perigoso.
— Olhe aí ela tentando se safar... — afirmou Meril.
— Dentro de todas as possibilidades, uma rapineira... — lamentou-se Sheyla.
Sheyla sentiu-se bem descontente com o que Ninx fez ou “era”, no entanto, dei alguns passos para frente, fazendo com que elas parassem de se mover.
— Vejam bem, nada disso importa mais. Agora que estamos aqui, juntos, devemos priorizar nosso presente e futuro. Águas passadas não movem o moinho. É claro que vocês tiveram seus motivos para... serem tão babacas, no entanto, vocês conseguiram uma segunda chance para recomeçar.
Sheyla parece ser a mais abalada. Como comandante dos cavaleiros de Lóthus, se aliar a um demônio e a duas escórias da humanidade... deve estar sendo duro para ela.
Meril parece ser uma praticante de magia negra e provavelmente falhou ao tentar convocar um demônio, e Ninx é aquele “amigo carismático” que está esperando apenas o momento certo para te apunhalar pelas costas... mas que diabos? Agora até eu estou duvidando aqui do que pode me acontecer ao continuar com elas, e para piorar, elas estão sob minha responsabilidade agora.
— Yami tem razão, todas ganhamos uma segunda chance, deveríamos usar isso para o bem da humanidade...
— Ah, não, obrigada. Talvez para o bem da Yami — respondeu Ninx sem nem pensar duas vezes.
— A “humanidade” parece muito ampla para mim, foge um pouco do meu escopo — afirmou Meril.
— Vocês...
— Acalme-se, garotas... Vamos só continuar... ok?
Voltamos a caminhar. Durante a primeira hora vagando, houve-se um silêncio constrangedor. Depois de tudo que aconteceu, não é de surpreender que isso tenha acontecido. No entanto, se continuar dessa maneira, creio que será difícil trabalharmos juntos quando chegarmos na cidade.
Novamente terei que resolver os problemas dos outros, né? Dei alguns passos rápidos para ficar na frente do grupo e então olhei para elas que esperaram eu fazer algo.
— Então, garotas, o que podem me dizer sobre a cidade?
— É como eu falei antes, não considero aquilo uma cidade — disse Ninx logo depois de soltar um longo suspiro. — Está mais para um amontoado de casas construídas ao redor de um forte abandonado.
— Apesar de isso ser verdade, Ninx, a cidade foi murada e já faz anos que gerações vivem por lá. Parte de sua arquitetura ainda lembra algo rústico e feito às pressas, no entanto, tomou proporções suficientes para considerarmos agora como uma cidade de médio porte. — Explicou Sheyla.
Meril deu alguns passos se aproximando das duas e levantou o indicador como se estivesse preparada para também participar da explicação – creio que isso é um costume dela, pois fez o mesmo para todas as outras vezes.
— Yami, por ser a cidade humana mais próxima dos territórios dos demônios, é também considerada por muitos como um lugar... especial.
— Especial? — perguntei.
— Especial, tu dizes? Está mais para um lugar perigoso e sem leis algumas, isso sim — respondeu Ninx.
— Eu não diria isso, mas sim. Diversas organizações e grupos instalaram bases naquele lugar.
Sheyla bufou um pouco e parece estar com raiva das palavras desferidas pelas duas. Será que não gosta de conversar sobre estas coisas? Talvez algo tenha acontecido em seu passado...
— Como assim? Crimes e tal? — perguntei tentando entender.
— Podemos dizer que sim. A Cidade da Fronteira também é conhecida pelo seu alto índice de criminalidade, e muitos outros tipos de problemas surgem naquela cidade. O resto da humanidade está pouco se lixando para o que acontece lá desde que eles sirvam de muralha contra os demônios...
Sheyla cortou Ninx em sua explicação:
— Mesmo assim, Yami, há muitas pessoas que são inocentes e não tem para onde ir e por isso gostaria que você os ajudasse. Não somente a Cidade da Fronteira, mas todas aquelas cidades próximas do território demoníaco.
— Hmmm... Então, resumindo, essa cidade é a “escória” da humanidade?
— Isso! — afirmou Ninx. — Como a guarda da cidade está muito mais preocupada em impedir uma invasão de monstros e criaturas, a segurança interna tanto faz. Além disso, decidido a fugir das leis de outros lugares, bandidos, ladrões e assassinos viajam para estas cidades.
— Mas nem todos são perigosos assim — afirmou Sheyla com convicção e encarou Ninx, sendo o próprio "exemplo" da cidade. — Essa violência é reflexo direto da falta de respeito e consideração das pessoas. Eles acham que “os mais fortes controlam os mais fracos”, o que faz a situação permanecer até hoje.
— Entendo seu ponto de vista, Sheyla, mas não é assim na natureza? Independentemente do que acontecer, alguém seguirá as ordens dos outros para seu próprio bem, e não acho que tem problema nisso.
— Você diz isso, mas é por que você é tão forte...
— Bem, talvez...
As três voltaram a ficar em silêncio.
Pensando bem, essa conversa não ajudou muito já que praticamente só confirmou que Ninx e Meril não são flores-que-se-cheire. E que também não parecem ser fãs da cidade. Por outro lado, Sheyla, por ser parte dos Cavaleiros de Lóthus, está a todo momento querendo me mostrar o lado "bom" da cidade para que eu possa ajudá-los...
Uma perca de tempo, né? De qualquer maneira, já foi.
— Obrigado pelas explicações de vocês, então... vamos continuar nosso caminho. Ainda preciso verificar outra vez onde eu acordei.
Elas concordaram e logo partimos.