Volume 2
Capítulo 91: REFLEXOS DA ALMA
Kai encarava a escuridão eterna enquanto esperava a Tempestade Cisca terminar.
Esta parecia ser bem mais forte, visto que dois dias inteiros se passaram desde que ele tivera a visão – ou alucinação – sobre o futuro de Troas.
Como sua mente era basicamente uma extensa enciclopédia viva que se recusava a esquecer praticamente qualquer coisa desde que fora amaldiçoado por Greylous, a memória permanecia fresca, tão claro quanto o dia que um dia Kai ousou ver o sol raiar.
Kai continuou a refletir sobre a visão que havia tido, tentando encontrar um sentido para tudo o que estava acontecendo. O silêncio era quase palpável, quebrado apenas pelo som do vento que soprava através da paisagem desolada. Kai se deteve por um momento, prestando atenção a um som distante. Não parecia ser o vento. Isso afastou seus pensamentos por ora.
Vez ou outra ele ouvia lamúrios, mas neste momento eles já tinham se tornado comuns. Que tipos de criaturas percorriam pelas Tempestades? Que tipos de demônios vieram a existir com a queda dos reinos de Atom?
A verdade é que ele se perguntava bastante sobre muita coisa, mesmo que tentasse ao máximo não se envolver.
Então o tempo passou e ele perdeu a noção de quanto exatamente. Suas provisões se mantinham na metade, visto que ele conseguia sobreviver um bom tempo sem se alimentar.
O uso do chi permitiu isso, ele percebeu. Era como se fluir a energia fosse autorenovante.
Com isso, ele conseguia manter suas provisões por um tempo médio maior que um ser humano habitual. Quando era proveniente do uso de mana, isso não acontecia facilmente.
Apesar de não ter tanta energia fluindo nos planos abaixo, ele conseguia se virar bem.
Kai suspirou e tocou levemente no cabo de Vento Noturno. O tempo que ficara longe da espada foi quase como se estivesse nu.
Desde que a forjou, era como se uma parte dele mesmo estivesse intocada no âmago da arma, quase como se fosse viva. Isso o lembrou do tempo em que esteve na posse de Amencer, a espada do Amanhecer.
Não sentia tanta conexão com aquela espada, no entanto. Era como se ela fosse… intocável. E mesmo assim, foi como se pudesse porta-la para sempre.
Contudo, lentamente Kai percebeu o erro da coisa. Isto é, aquela era uma espada celestial, provavelmente, e ele sabia disso mesmo que ele não tivesse ouvido o mito de sua criação. A espada de um Protetor…
Tirise – Vento Noturno –, no entanto era mais palpável… mais mundana. Mas também totalmente diferente de tudo que ele portou. E olha que Kai já havia se especializado em muitas armas, tanto que estava se preparando para virar um mestre de armas.
Sentindo o toque reconfortante de Vento Noturno, que fora devolvida no momento de sua partida, Kai suspirou.
Sem mais nada para fazer, ele passou a refletir sobre muitas coisas e sobre seu caminho a partir dali. Vinha fazendo isso nos últimos dias. Sondando e criando barreiras mentais, se preparando para o inevitável.
Mas como sempre, Kai estava num terreno desconhecido, onde nada para ele poderia acontecer de forma fácil. Mesmo pronto para isso, não deixou de se sentir amargo.
Kai não era o tipo que fugia da luta, mas também não era tolo o bastante para procurá-la. Um dos muitos ensinamentos do cobiçoso velho Shiv foi esse. Não ser arrogante o bastante para querer todas lutas, nem acomodado o bastante para não estar pronto para elas.
Era um bom ensinamento, mesmo que, eventualmente, viesse do homem que o enganou a vida toda.
E por isso a tarefa de focar e ficar bem mentalmente foi tão difícil. Ele já tinha passado por momentos assim, antes.
Na época, se colocou num retiro, buscando alinhar mente, corpo e alma. Foi difícil, mas não impossível.
Ele conseguiu transformar a dor em mais uma advertência. E conseguiu lidar com ela. Não a ponto de ser indiferente, mas afiar tanto sua mente para que no momento em que a dor viesse, se tornasse suportável.
No fim, não foi uma dor mundana e física que o machucou mais. Foi uma dor mental. E ele percebeu o quão fraco mentalmente poderia ser. Mesmo que tivesse passado todo aquele tempo cultivando, livrando sua mente do fardo de ser o único a carregar o peso do mundo. Se convencendo de que não era o salvador de nada nem ninguém, que não deveria prometer nem tentar cumprir os desejos dos outros. Exceto os dele. E não havia muito a desejar, no fim.
Eventualmente ele se pegou pensando na razão disso tudo. Qual era seu propósito, afinal? Mal saíra de uma guerra que abalou uma sociedade oculta, e já estava envolvido em outra.
Pensando bem, uma conversa com os Eblomdrude veio à tona.
Abwn disse que ele tinha um caminho traçado, mas só dependia dele seguir. Ele suprimiu uma risada fraca e irônica.
Que escolha ele tinha nisso? Nenhuma. Nunca teve, mais uma vez.
Era como se o destino estivesse brincando com ele, entregando as cordas que o moviam para seres poderosos demais para serem alcançados. E estes seres, no entanto, não se importavam em dizer o que ele deveria fazer e como fazer. Somente o colocavam no olho do furacão e pronto.
“Vai lá, resolve esse problema e limpa minha cagada!”
‘Limpe você sua cagada, droga!’
Kai suspirou. Era difícil…, mas ele não era de reclamar. Nem quando tentaram arrancar sua cabeça, ou entraram - mais de uma vez - na sua mente e vasculharam somente tudo.
Droga, ele não era resistente a ataques mentais porcaria nenhuma. Bastava olhar para o quadro geral e ver que ele era facilmente e repetidamente subjugado a algum ataque feroz da mente.
E isso tudo estava ligado ao seu fraco elo consigo mesmo. Era sua falha, não ser capaz de afiar sua mente ao ponto de perceber simples repetições.
Ele desenvolveu a rara habilidade de não se abalar? Sim. Ele conseguia deixar de lado embates pessoais e focar no todo? SIM.
Mas isso foi no passado… e, droga, olha onde ele estava agora!
Essa situação não era resultado de um abalo mental e uma busca por vingança impossível de ser saciada?
No fim, ele não mudou muito. E se mudou, foi tudo perdido no momento em que o maldito Greylous mexeu com sua mente… Shimon apenas terminou de destruir os cacos restantes.
Ele suspirou, retirando um cantil de sua bolsa sem fundo. Mais um privilégio dos Vitanti. Kai desenvolveu coisas realmente legais no porão dos Echanti, mas nada disso foi tão importante quanto a bolsa sem fundo que ele encontrou no lugar.
Parecia ser criada com runas intrinsecamente interligadas e conectadas no momento de sua costura, algo que Kai nunca conseguiu desenvolver.
Claro, ele acabou forjando uma espada realmente poderosa, mas isso se devia ao fato de Cinealtas ser um autêntico ferreiro vitanti e ter cedido uma rocha bem peculiar para sua criação. E, claro, a forja de Vento Noturno havia sido um processo trabalhoso, que exigiu muito treinamento e prática para dominar suas habilidades ativas, especialmente as runas que a espada continha. As runas permitiam que ele acessasse suas habilidades de forma mais eficiente, e ele havia passado muito tempo aperfeiçoando o uso delas.
Bem, no fim, Kai ele mesmo desenvolveu, rudemente a habilidade de trazer as coisas para si. Foi preciso um controle fino, refinado e controlado do chi, no entanto. Usar a habilidade da espada era mais fácil e prático, no entanto.
Ele bocejou, se perguntando quando essa tempestade passaria…
Sem mais nada para fazer, ele resolveu circular sua energia, para aumentar o fluxo e torná-lo mais… natural.
Na época em que ficou brevemente cego, ele conseguia controlar o chi como um só. Era diferente, claramente.
Naquele tempo, o chi respondia instantaneamente, sondando os arredores, envolvendo seu corpo… tudo era mais rápido e prático.
Agora, no entanto, isso se foi, e ele se sentia perdido. O chi ainda era prático, mas necessitava de um controle sofisticado, demorando vários segundos para responder a um comando mental. Muitas vezes no calor da batalha, os segundos eram preciosos.
E Kai sabia onde buscar esse controle novamente. Ele o usou contra o Ministro, e também contra Shemesh. Nas duas ocasiões, Kai perdera um pouco a complacência, sua sanidade em frangalhos. Isso significava, mais uma vez, que essa era uma habilidade perigosa e respondia diretamente ao senso de pouca urgência de Kai.
Ele era desleixado e tolo quando fora de si? Sim, mas era também diversas vezes mais poderoso. Se ser descuidado significava ter mais força…?
Kai ponderou. Desde quando ele ficou tão imprudente? Mesmo a ponto de considerar que perder uma ou duas coisas não importava desde que vencesse. Desde que fosse poderoso.
Considerava se, no fim, ele perdesse sua sanidade? Sua humanidade? Sua vida?
Kai conhecia de perto a dor da impotência. Era um sentimento dele, não ardilosamente implantado.
Ser capaz de ver isso significava que ele finalmente estava pensando por si mesmo? Que antes nem mesmo o sentimento de dualidade lhe era permitido sentir? Inferno.
Ele suspirou bravo outra vez. Fechando os olhos brevemente, lutou para enfiar todos esses pensamentos inúteis para o fundo do baú.
E conseguiu, as vozes dos diabinhos mentais se foram. Com isso, a clareza finalmente se perpetuou nos salões mentais de Kai Stone, e ele suavizou.
Mas algo martelava duramente sua cabeça. Ele abriu os olhos, ressabiado, e uma expressão dura apareceu em seu rosto.
Desde quando as Tempestades Ciscas duravam uma semana inteira?!
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