Volume 2
Capítulo 90: ALÉM DA NÉVOA
Num reino distante, construções altas e imponentes se erguiam, adornadas com metal polido e brilhante que refletia a luz do sol. As ruas, feitas de um material rubro lustroso, se interconectavam em uma rede complexa, todas levando ao centro da cidade.
Ali, uma multidão se reunia em torno de um cadafalso manchado de rubro, mas seus olhares estavam fixos em uma construção mais elevada: um altar de pedra com dez degraus, adornado com um tecido rubro.
No altar, quatro tronos distintos se erguiam.
O primeiro, feito de madeira seca e desgastada, tinha braços em forma de foices com curvas afiadas. No encosto, uma inscrição desgastada dizia "Sede". Ao seu redor, tudo parecia ressecado e desgastado.
O segundo trono era de metal enferrujado e gasto, com detalhes que lembravam armas quebradas. Seus braços tinham a forma de espadas, sugerindo conflito e violência. A inscrição no encosto dizia "Conflito" em letras ásperas. Ao redor dele, uma vibração era sentida, e a multidão reagiu negativamente, gritando e erguendo os punhos.
O terceiro trono era feito de pedra cinzenta e fria, com detalhes que lembravam máscaras de peste. Seus braços tinham a forma de correntes enegrecidas e enferrujadas. A inscrição no encosto dizia "Doença" em letras trêmulas. Ao seu redor, uma neblina se concentrava e se propagava, espalhando uma aura de doença.
O quarto trono era feito de osso e de marfim, com detalhes intrincados em caveiras. Seus braços tinham a forma de garras longas e enormes. A inscrição no encosto dizia "Fim" em letras frias e calculadas. Nenhum ruído era ouvido ao seu redor, como se o trono absorvesse o som.
Acima desses quatro tronos, um quinto e maior trono se erguia, feito de metal negro e brilhante. Sua forma era uma mistura de curvas e ângulos agudos, evocando uma sensação de poder e ameaça. O trono era adornado com caveiras humanas e de criaturas estranhas, e seus braços tinham a forma de garras enormes com unhas afiadas.
Sentados nos quatro tronos inferiores, sujeitos encapuzados observavam a multidão sem transmitir qualquer sinal de importância. No trono superior, uma figura imponente era obscurecida pela aura sombria que o trono irradiava. Sua presença era sentida pela multidão, que se encolhia e tremia diante dela. Seus olhos negros brilhavam, distinguindo-se da escuridão sobrenatural.
A multidão, revoltada e transtornada, sentiu a ameaça e foi se calando aos poucos. Alguns choravam, outros gritavam, enquanto outros ainda se enfureceram e erguiam os punhos. No cadafalso abaixo, uma figura solene surgiu, encabeçando uma fila de escravos encapuzados. No final da fila, um carrasco portava um enorme machado.
O sujeito solene, vestido com armadura de metal e couro, anunciou:
– Digníssimos habitantes do Nada. Eis que seus reis ouviram suas preces e trouxeram o julgamento a estes opositores, anarquistas, malévolos do ex-Ruim. E aqui, diante de vós, vos trago a clemência máxima e benevolente do deus supremo do bem, seu eterno e majestoso rei, teu Imperador do Amanhã.
As sombras se agitaram, como se inebriadas pelas palavras ditas ao seu senhor. A multidão vibrou, cada um deles evitando erguer o olhar mais do que deveria.
O homem ergueu uma mão, e as vozes foram se calando.
– Na corriqueira e inquieta vida que estes transgressores levavam, o senhor teu Imperador foi bom e justo. E aqui hão de ter suas vidas ceifadas, pois não há misericórdia maior do que receber o fim pelas mãos dele. Eis o misericordioso coração do teu Imperador. Ó grandioso, ó clemente, ó sempre cheio de graça e poder.
O sujeito se virou, erguendo o rosto para o topo. Não se passou um segundo direito e ele baixou o olhar, respirando pesado. Limpando a garganta, finalmente lançou um olhar para o carrasco.
– E vocês, telespectadores da benevolência do grandioso senhor, terão a desonra de observar bem o rosto de cada um destes transgressores vis e maldosos. Mas não desviem o olhar, pois hão de gravar bem a caricatura de cada um deles, para que nunca se esqueçam que até em pecado, o senhor teu Imperador há de ter misericórdia.
Com o aceno do palestrante, o carrasco acenou e sujeitos brotaram da escuridão, se direcionando aos escravos.
Então os capuzes foram retirados e os rostos revelados. A multidão se aquietou e em um segundo irrompeu em insultos, palavras hostis e gritos horrendos. Mais e mais eles eram inundados pela raiva e sensação grotesca de ódio crescente, impulsionados a odiar, impulsionados a temer.
Os escravos eram Atonianos capturados.
Diante disso, alguns estavam assustados, outros muito quietos. Mas todos estavam ali. Só que algo não estava certo.
Estes Atonianos não eram quaisquer um… eram os mestres… e Shemesh… e Shaul… e outras figuras indistintas.
A pressão constante vindo das sombras cresceu, e o carrasco se agitou, erguendo seu machado.
Então ele caminhou lentamente até o primeiro da fileira. Ergueu seu machado e…
PAM!
Acertou um corte limpo, arrancando a cabeça de Yaqoobh, sangue jorrando feito um rio que sangra.
O corpo pendeu e o carrasco seguiu em frente.
A cada cabeça cortada, o sangue escorria pelas escadas do cadafalso, lambendo o chão e o tornando mais… rubro.
Quando a última cabeça rolou, e o sangue jorrou, infinitamente banhando o chão das ruas e lambendo o coração da multidão com raiva e furor, as sombras se agitaram.
Os olhos negros de Abeeku, sentado no Trono sombrio, responderam ao chamado das sombras e fitaram o horizonte.
***
Kai se agitou e abriu bem os olhos, seu coração batendo forte no peito. Ele olhou ao redor, tentando se orientar, mas a escuridão do ambiente fechado queria sufocá-lo.
Ele passou a mão pela testa, tentando afastar a sensação ruim que ainda o dominava.
A situação de Kai não o preocupava…, mas ele lutava para manter a imagem na sua mente.
Isso estava certo?! A imagem da cena de execução ainda estava fresca em sua mente, mas pareciam tão reais…
Kai era esperto demais para saber do que aquilo se tratava. Podia ser efeito direto da sua atual condição, mas isso não era um simples sonho…
Ver líderes de Troas sendo executados pelos quatro reis e pelo indigno… não, não era um simples sonho.
Havia sugestões discretas nisso, e um sonho não poderia ser tão detalhado.
Sabendo que isto era comida para seu pensamento, sua mente começou a trabalhar nas possíveis teorias, como sempre fizera.
Haviam três que o faziam arrepiar bastante, uma mais perturbadora que a outra.
A primeira era ligada diretamente a sua atual condição.
Kai fora expulso de Troas, e condenado a vagar pela superfície por tempo indeterminado. Após a morte de um mestre, os outros odiaram essa decisão. Mas isso não dizia respeito a Kai.
O negócio é que ele esteve tempo o bastante na superfície para saber que havia algo de estranho. Mesmo que a todo momento, o Firenze e ele tenha caminhado em direção da cidade escondida, havia as sutilezas escondidas no ar. E não foi por falta de intuição, pois eles enfrentaram perigos um atrás do outro.
Então esta primeira poderia estar ligada ao que a Névoa Cisca fazia com aqueles que eram afetados diretamente e por um bom tempo por ela. Mesmo que tenha recebido traje e um saco de dormir que afastava boa parte da tempestade, Kai sabia que não poderia ser o suficiente.
Essa reação somada ao estado mental atual de Kai, poderia indicar que essa visão, não um sonho, possa ter sido ocasionada pela junção destes fatores.
Mas ele logo descartou essa opção. Como ele mesmo analisou, a visão foi detalhada e cruel demais, expressando e fazendo-o sentir o pavor que aquelas pessoas sentiam. Ele pode notar o olhar de Abeeku em si, como se estivesse encarando diretamente.
Sem contar que não era algo que aconteceu ou estava acontecendo, pois ele acaba de deixar Troas e até onde observou, todos tinham suas cabeças nos lugares. Isso indicava que se tratava de uma visão futura.
Por isso, era improvável que a loucura tivesse proporcionado uma visão tão específica e cheia de nuances como esta. Kai se conhecia o bastante para saber que a loucura era bem menos subjetiva.
Após descartar esta teoria, Kai voltou para a segunda e bem mais crível.
A segunda teoria de Kai estava concentrada em Shaul, o líder dos Mestres e Sacerdote de Troas.
Havia muito mistério acerca do homem, sem contar que ele era… humano. E não um qualquer, alguém vindo de onde Kai mesmo veio. Ou pelo menos as redondezas.
Em toda sua vida em Neve Sempiterna, e nas viagens que fez aos outros condados, Kai nunca conheceu alguém que tivesse pelo menos um olho puxado como ele, ou pele pálida e amarela. Isso o fez questionar sua origem por diversas vezes, fazendo-o perguntar ao velho Shiv sobre ela. Mas ele era escorregadio e sempre adiou a conversa.
Mesmo que Kai tenha deixado isso de lado, a pergunta sempre retornava, pois ele era alvo de conversas e olhares ruins.
Shaul tinha características bem singulares e, ainda assim, um pouco parecidas com as de Kai. E o primeiro mistério começava aí. Havia uma sucessão de coisas que ele não sabia sobre o sujeito, e a principal era sobre seu aspecto profético.
Firenze cansou de deixar claro que tudo o que aconteceu a eles foi previsto por Shaul, e que ele tinha grande poder sobre isso. Mas era estranho, pois além dos elfos e dos Acólitos, quase ninguém no plano comum detinha poder sobre a profecia.
Portanto, até onde iria o poder de Shaul?! Ele parecia inclinado a ajudar Kai, tendo em vista que toda esta situação fora prevista e preparada por ele. Se esse era o caso, e se Kai não tinha noção de até onde seu poder ia, poderia ser que mesmo distante, o Grande Sacerdote o estivesse ajudando.
Mas seria possível que alguém conseguisse transmitir visões através de sonhos? Kai não duvidava de seu poder, mas se fosse o caso… então Shaul era muito, muito poderoso.
Logo ele se inclinou para a última e mais assustadora teoria. Havia um tempo que Kai pensava nisso.
Quando chegou no plano inferior, ele foi recebido por uma tropa de Kawa Kale, mercenários saqueadores de Abeeku.
Eliyahu confirmou que aquelas terras eram áridas e desoladas. Os malditos Kawa Kale nunca dava murro em ponta de faca, não gastando energia nem seu tempo saqueando um lugar completamente afastado e isolado de pessoas e o que quer que pudesse ser roubado?
Então o que estavam fazendo ali, exatamente naquele dia?! A resposta era uma: eles tinham uma missão parecida com a de Eliyahu. Capturar e levar ao Indigno o que quer que fosse chegar pelo céu naquele momento.
Mas ele calculou mal, enviando somente um bando de Kawa Kale abobalhado para buscar uma encomenda preciosa. O seguimento de fatos não é desconhecido.
Portanto havia duas hipóteses que só davam esta situação e davam força para a maior e assustadora teoria de Kai. A primeira era que o próprio Abeeku tinha o dom da profecia, ou alguém em sua coorte possuía este dom.
Se fosse verdade, então Kai duvidava que alguém além dele próprio teria tal poder. Pelo que Kai ouviu dele, Abeeku não parecia ser o tipo de homem que delegaria tal função.
Um arrepio percorreu a espinha dele. Abeeku também não parecia alguém tolo. Ele enviou os Kawa Kale como uma espécie de teste, já sabendo o que poderia vir, e enviou seu Ministro logo em seguida.
Prevendo que os saqueadores perderiam, Kesel entrou na jogada. E como ele bem disse, Abeeku ordenou que Kai fosse levado em boas condições.
Se lembrando da conversa, o Ministro também disse que todos eles eram do plano superior, ou seja, do plano que Kai viera.
Mas seu plano não deu totalmente certo, uma vez que Kai matou o Ministro.
Uma frieza mórbida assolou Kai. Se tudo isso fosse verdade, então Abeeku tinha mostrado a Kai uma visão do futuro. Se fosse isso, ele seria mais forte ainda do que Shaul… e provavelmente saberia da situação de Kesel, e provavelmente já teria enviando outro assecla para buscar Kai.
Não havia nada concreto, mas só de pensar nessas teorias, Kai sentiu um sobressalto.
Primeiro que se fosse uma visão de Shaul, ele estaria mais seguro, e pelo menos teria auxílio.
Agora, se fosse uma visão de Abeeku… bom, ele não queria pensar nisso.
No mais, as duas opções o deixavam enjoado. Kai não queria ficar no meio desta briga entre sociopatas proféticos. Só de pensar que fora arrastado para isso tudo e era tratado como o messias Atoniano… bom, nada de bom viria disso.
Sabendo de seu futuro incerto, Kai suspirou bem e continuou a observar a escuridão, ansiando pela passagem da Tempestade Cisca e rezando para que nenhuma de suas teorias se comprovasse… não ainda.
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