Volume 2

Capítulo 75: STONE

O Manto Fungicida se desfez e Kai aguardou algum movimento. Gh’varok permaneceu tão parado quanto o rapaz, de maça em mãos.

Por um segundo, tudo ficou quieto e, para Kai, apenas a respiração ofegante de Batista lhe era irritante.

Em poucos segundos, tudo mudou, quando a nuvem patógena assentou, e Kesel desceu, de braços cruzados.

Diante dele surgiu uma foice, que cortou o vento vazio à sua frente. Inconscientemente, Kai manejou o chi transformando-a numa rajada bruta, afastando os atonianos da área de impacto e pegando impulso para o outro lado.

Em questão de segundos, um rasgo de dois metros de largura e quase seis de comprimento surgiu no chão, a areia chiando. Kai sentiu a doença no ar, e o rastro feito no chão pulsando, febril.

Entrementes, Kai conduziu o chi pelo seu corpo, ciente de que o uso de qualquer uma de suas habilidades poderia cansá-lo mais facilmente.

Teve muito cuidado para não acessar à energia que pulsava em seu corpo, latente e queimante. Ao invés disso, levou a mão à aljava e retirou três flechas.

Com o arco em mãos, parou sua corrida e inclinou a cabeça, ouvindo os batimentos de Kesel. Ele estava pavorosamente calmo, e tinha sua atenção voltada para Gh’varok, que investia contra o sujeito por meio de espinhos que surgiam do chão. Kai achou aquilo muito curioso, mas afastou os pensamentos. Precisava focar.

Com as três flechas na mão direita, ele fez símbolos estranhos com os dedos, ao passo que depositava sua energia nelas. Runas pulsaram e brilharam sobre a fina superfície cilíndrica das flechas feitas de raízes da Grande Sequoia.

Colocou a primeira flecha no arco e puxou, sabendo exatamente onde ela iria. Ela percorreu seu caminho num piscar de olhos, mas Kesel percebeu a ação e afastou a cabeça para trás meio segundo antes de ser atingido.

– Pensou que seria simples? – disse, numa voz sarcástica.

Mal terminou de zombar e uma explosão surgiu de suas costas, atordoando-o e o lançando para baixo. Kai sorriu, a primeira parte foi concluída.

Ele se preparou e lançou a segunda flecha, que voou rapidamente em direção ao ministro, que não teve tempo de se reorganizar enquanto afetado pela explosão.

Ele girava em pleno voo, e quando a flecha estava para atingi-lo, ela implodiu e sua superfície se partiu em várias lascas de madeira. De dentro, finas correntes de energia brilharam num tom azul, e ouviu-se a estática passando por ela.

Logo, as correntes cresceram, exalando eletricidade e envolveram o corpo do Ministro, eletrificando-o inteiro. Este urrou.

“Ainda não”, pensou Kai, preparando a última flecha e concentrando chi em suas pernas. Num impulso, saltou ao encontro de Kesel, que descia numa velocidade sinistra, com energia estalando e brilhando por cada parte da corrente que o prendeu.

Kai puxou a flecha na corda, fazendo um símbolo com a mão que segurava o arco. Chi ondulou pela superfície do projetil, e ele esperou até estar cara a cara com o sujeito.

Quando estavam a distancia de duas flechas, Kai disparou, e protegeu-se com chi. A flecha cravou-se na cabeça de Kesel, que estalou devido ao impacto e distância tão próximos.

Stone remanejou-se no ar, a fim de se afastar, e um manto fino de chi o envolveu.

– Protejam-se! – Ordenou, a ninguém em específico.

Enquanto se afastava, notou a flecha na cabeça de Kesel inflar e, em questão de segundos, explodir.

Restos de crânio e do cérebro voaram para todo lado. Kai pousou a uma média distância de Gh’varok e Batista, que se protegiam com algo que Kai não parou para analisar.

O corpo caiu a uma média distância, parcialmente destruído e decapitado. Faltava metade do ombro, clavícula e pescoço esquerdo.

Batista soltou um riso fraco.

– Hehe... isso foi bem fácil.

Gh’varok ficou em silêncio, permanecendo atrás do escudo.

– Eca – disse o Firenze. – Ele sangra verde.

Kai respirou fundo, o chi gasto não tinha sido muito, já que ele optou por usar uma variedade já pronta.

A montaria do arco, flechas e aljava fora simples.

Para o arco, ele usou osso de caranguejo, os estranhos humanoides de Bulogg que eram como uma espécie de parasita, detritívoros. O osso destas criaturas era rico em ferro, o que tornava bem útil para tal finalidade. Era maleável e flexível, além de ser leve. Na corda, ele utilizou a teia de uma estranha espécie de aranhas que vivia nos túneis de Orquídea. Era cheia de proteínas e aguentava até dez vezes o seu peso. Kai testou. Sem contar que ao inunda-la com sua energia, sua força aumentou consideravelmente.

Para o uso das flechas, Kai usou raízes mortas da Grande Sequoia. Essas raízes eram ricas em energia, e quando Kai depositou a sua, viu que elas se revitalizaram, como se fossem uma planta morta de sede. Durante os testes, ele notou que eram compatíveis com runas, e não rachavam tão facilmente. Como ele encontrara nas instalações Echanti uma bolsa feita com runas de armazenamento, encheu-a com raízes e galhos mortos; sua provisão não acabaria tão cedo. Não ficou com peso na consciência, já que Cineáltas foi claro ao dizer que ele poderia pegar o que quisesse e necessitasse.

Na aljava, no entanto, Kai usou couro. A pele dos batedores foi bastante útil. Mas ele não sabia que seria tão difícil quando retirou a pele do monstro, utilizando ferrofosso. E, depois, para usufruir de toda sua arte de tosa e costura, ainda precisou da ajuda de runas auxiliares, deixando o couro de molho por vários dias.

No fim, o preparo não foi em vão. Tudo foi cem por cento reutilizado, e serviu ao seu propósito. Isto é, Kai criou flechas e um arco com runas incrustadas visando esse tipo de situação, em que ficaria sem energia e chi para uma possível batalha.

Em cada flecha, tinha sido incrustada as doze runas de batalha e defesa, que eram ativadas por meio de gestos criados pelo próprio Kai. Como ele bem percebeu, só funcionava com sua inscrição de energia, que era tal e qual a inscrição de mana e o DNA: únicos de cada um. Bastava um pouco de chi, e a runa desejada se ativaria. Em sua aljava cabiam 36. Restaram 33.

E sua espada fora forjada para a mesma finalidade, e suportaria se assim necessitasse.

Tudo ficou muito quieto, e um turbilhão de coisas se passou pela cabeça de Kai. Ele lutou para organizá-las, mas em seu âmago, sabia que tinha algo de estranho. Fora fácil demais.

Um misto de inquietação e arrepio subiram por sua espinha, e ele respirou fundo, buscando se acalmar. Não se abalaria.

Gh’varok se virou para ele.

– Não baixe a guarda. Ele é um mi- URGH!

No meio de sua frase, o Guardião bradou de dor, e o som de costelas quebrando vibrou em meio ao silêncio. Gh’varok foi jogado longe, afundando na areia e levantando os grãos.

Foi tudo muito rápido, mas Kai sabia o que estava acontecendo. O Guardião fora atingido por um forte golpe no abdome, e não teve a chance nem de reagir. Em seguida, Batista virou alvo, mas Kai ergueu um manto de chi e enviou uma onda em formato de escudo.

Ele sentiu quando algo gélido tocou no chi, mesmo que já não estivesse em contato com sua própria energia. É que funcionava assim: eram interligados e tudo o que ele sentia nesse estado, era em vasão do chi, que evoluiu a um ponto inconsciente.

Batista bradou.

– Posso me proteger sozinho, Kmuk!

Maldito ingrato.

Kesel ergueu as duas mãos, e a foice apareceu diante dele.

– Sepulcro Divino – disse ele, cortando em diagonal.

Nem toda cota de malha, armadura laqueada e escudos do mundo poderia defender Kai daquele golpe. Mas ele forçou-se a utilizar a energia que pairava em seu Tanden, a nova e queimante.

Criou rapidamente em volta de si um manto de energia, mas tarde demais. O corte da foice foi tão rápido que rasgou o manto de chi e se aprofundou nas suas vestes, feitas de couro de javali-encouraçado.

A ponta da foice afundou mais, desenhando um rasgo do ombro direito de Kai até o quadril esquerdo. Kai urrou, e seu chi fraquejou.

A carne queimava, e a pele borbulhava. Ele levou a mão ao peito, e ao tocar, sentiu os dedos se embebedarem do líquido quente.

Caiu sobre um joelho, sabendo que o Ministro se prostava diante de si, feito uma torre de ébano.

– Pensou que poderia acabar comigo, um Ministro, apenas com flechas e truques baratos? – A voz d’O Ministro era carregada de uma frieza descontrolada. – Teria de mim tão pouca valia?

Kai sorriu, cuspindo sangue. Um pulsar percorreu por todo seu corpo, e ele checou suas veias. Em seu sangue, algo doentio percorria, impedindo que o chi se reorganizasse, a fim de, pelo menos, estancar o sangramento. Mas o sangue continuou a jorrar, e Kai agradeceu aos céus pois, não fosse o treinamento intensivo que teve refinando o chi, sua própria pele não teria se fortalecido, e no lugar de um barril de sangue, seriam seus órgãos ali, caindo.

Eteyow sabe que Kesel enfiou a lâmina fundo o bastante para tal.

– Admito que foi uma boa estratégia, e em prol disto, darei apenas um pequeno deleite antes da tua morte – anunciou o sujeito. – Todos viemos do mesmo plano Alto, escolhido, mas de eras diferentes.

A mente de Kai entrou em um turbilhão. Como assim?! Ele sabia que se aprofundar nisso só traria mais perguntas e mais mistérios, mas não era hora de pensar nisso, droga. Estava prestes a morrer, e nem tinha feito nada para impedir.

Só conseguiu erguer o rosto e sorrir palidamente.

Kesel ergueu a foice mais uma vez.

– Não admitirei que foi uma honra, pois não foi, e sinceramente esperava mais daquele que Abeeku-kuär tanto aguardara e tanto ansiara pela chegada. Contudo, hei de cortar este mal pela raiz, e tu sequer é digno de últimas palavras.

Kai já sentia o veneno correndo por suas veias, adoecendo suas células e matando suas moléculas.

Distante, ele ouviu os protestos de Batista, enquanto corria para lhe salvar a vida. No fim, o sujeito permaneceu dando tudo de si para proteger algo de muita valia para outrem, isto é, para seu sacerdote.

A história toda era muito cabeluda e cheia de segredos para o gosto de Kai, mas ele admirava isso no outro. Mesmo que ele não acreditasse, alguém que ele respeitava, sim.

Isso não seria motivo o suficiente para Kai não desistir?! Ora, não era mais do que razão para ele lutar até suas forças se esgotarem?

Morreria mesmo ali, sem ao menos infringir algum dano no inimigo? Kesel estava são e salvo, e ele pouco se lixava para as crises de consciência que assolavam o rapaz mais uma vez.

Mas se ele, Kai, não faria isso pelos outros, faria por quem? Por si, talvez? Não jurara mais de uma vez que seria forte, que superaria tudo? Era, de novo, a mesma história.

Quase morreu para aquele mercenário, em Neve Sempiterna. Como se chamava mesmo? Ah... Viteli. Foi ali onde tudo começou.

Depois fugiu, sem mais perspectiva, e o gigante Pele-Pétrea quase o matou. Ou foi Dedos-de-mel.

A partir daí, pode-se contar nos dedos o número de pessoas que quiseram mata-lo e quase conseguiram. Oren, Jimothy Vinice e Greylous. Ah... Greylous conseguiu, não é? Sim, conseguiu. Talvez por isso ele se sentia tão só as vezes, tão imensamente vazio...

Se sentia agora, impotente. Fraco, sem brio, sem foco. Se fosse pra morrer, que tivesse dignidade, não foi assim que Siobhan Murphy uma vez dissera?

“Homens comuns escolhem como viver; homens dignos são aqueles que escolhem como viver, sabendo como morrerão. Homens fortes escolhem como viver, sabem como vão morrer, e se orgulham do seu perecer.”

E aquele mantra seguiu apagado para Kai por muito tempo; para ele era balela. O mantra dos Murphy, tal e qual a coroa dourada envolta por um trevo e duas espadas se cruzando: o símbolo dos Nortenhos Vermelhos. Kai não era Murphy, era um Stone, como todos aqueles que não eram dignos de receber um nome seu.

Mas era Stone, e honrava isso, e tinha a própria honra, e cria nos próprios mantras. E não abaixaria a cabeça.

Suas mãos se iluminaram, e um zumbido chato soprou. Kesel parou o que ia fazer e observou quando um raio luminescente e dourado saltou do punho fracamente fechado de Kai e o atingiu bem no peito. Ele voou longe e se atolou num buraco fundo. 



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