Volume 2
Capítulo 74: MENTIROSO
– Me chamo Kesel Na-Ij, o Ministro da Peste.
Kai aquiesceu, recordando-se de que estavam sendo seguidos.
Isso o irritou, pois mais uma vez a nova habilidade só foi capaz de detectar a presença inimiga às margens de uma tragédia.
Ele havia aprendido que guerreiros poderosos, isto é, magos que se intitulavam os maiorais, tinham de aprender a ocultar a própria presença. Era uma arte prática e fácil da magia. Era básico. Mas não deixou de estar irritado.
Tanto por isso quanto pela presença esmagadora do sujeito. Antes, em Fireas, sentiu apenas uma reles aura, como se a sua própria resvalasse na do sujeito. Agora era diferente. Era como se Kesel estivesse se exibindo, bradando aos quatro ventos sobre como era poderoso.
Um arrepio subiu pela espinha de Kai, fazendo-o relembrar momentos de tensão vividos numa época não muito passada. A energia d’O ministro incutiu em Kai uma nostalgia pouco bem vinda; fê-lo se lembrar de Greylous.
Nunca esqueceria. Somente isso o fez perceber que o inimigo não era pouca coisa.
– Fico grato pela apresentação de antes. É de sinistra valia e, cabe a mim dizer, de muita coincidência, que tenhamos nos encontrado logo no meu dia de folga. Veja, – o sujeito abriu os braços. – milorde, como as coincidências do acaso me são céleres e bem aventuradas. De fato, muito, muito isócrono. Ou um presente dos céus?
Entrementes, para Kai, os detalhes vestuários do sujeito estavam obscuros, dada sua situação enfermiça. Para tanto, Gh’varok e Batista mantinham um ar resoluto encarando o sujeito acima. Como ele mesmo declarou, bastou que o olhassem e souberam de quem se tratava. Kai atribuiu isso ao seu modo de vestir. E não estava de todo errado.
Poderia ser um sujeito que não causava medo algum, e até mesmo estava bem limpo, mas para os dois atonianos, era uma mensagem clara e sincera que dizia PERIGO.
Veja bem, deve-se saber que os moradores da antiga Atom e das capitais deste reino, e até mesmo dos reinos vizinhos viviam em demasiada pobreza, e talvez para Kai fosse uma perspectiva que atribuía a falta de limpeza apenas a desalenta e corriqueira imundícia opcional; considerando, no entanto, seu encontro anterior com os Kawa Kale, com os Alquebrados e até mesmo com o Firenze. Contudo, pela veste que o Ministro trajava, sua imponência era escancarada. Era um aviso.
Kesel queria dizer que era diferente, e mesmo que soasse nada ameaçador por se vestir bem e com simplicidade num mundo onde os rebeldes queriam mais se parecer com o povo moribundo, sua simples presença, incapaz de incutir coisas boas, era um válido lembrete da presença do Imperador. Kai estava alheio a tudo isso.
Portanto, não era necessário que o sujeito se apresentasse, ele seria reconhecido de longe numa multidão até mesmo na megalópole de Abeeku.
– ... Sim, sou muito afortunado por este presente. Imagine minha reação ao ver a destruição que acontecia em Fireas. Aqui e acolá ocorre de alguns saqueadores moribundos, vagabundos e necessitados visitar os jardins de meu Senhor, a fim de saquear o que sobrou.
Uma gargalhada despontou. Kesel jogou a cabeça para trás e riu bastante. Kai reprimiu a vontade de perguntar qual era a graça.
– Claro, – prosseguiu. – a tecnologia evoluiu bastante, o que é bastante intrigante, já que essas criaturas sequer tem o que comer, como poderiam ter o que vestir?
Então esse foi o motivo da risada.
– Foi deveras prazeroso ver duas formiguinhas como vocês – ele apontou para Kai e Batista. – escapando da dolorosa morte.
Kai inclinou a cabeça. Algo estava errado. Dele não escapava nada.
– De onde é que você vem mesmo? – indagou.
O Guardião e Batista viraram-se para Kai; apesar de seus rostos serem uma incógnita, poderia jurar que prendiam a respiração.
Kai achava que estavam em silêncio por respeitar o outro, mas era mais do que isso. Era medo. Então todos sinais que seu corpo dava, o arrepio diante a energia, a impaciência frente as palavras venenosas, tudo isso, os outros dois deveriam sentir dez vezes mais. Eles encaravam o rosto do outro. Eles encaravam seus olhos, mesmo que tampados.
A reação dos dois foi perfeitamente compreendida, a d’O ministro é que não.
Ele inclinou a cabeça, em silêncio. Kai sabia que havia algo de estranho ali, o sujeito era muito carismático para seu gosto.
– Pois bem – continuou O ministro, como se ninguém tivesse lhe referido a palavra. – precisei apenas perseguir o rastro dos dois ratos, e admito que fora difícil quando os perdi de vista. Mas devo dizer que seu retorno foi mais uma vez muito bem-vindo. Já estava para desistir.
– Não sabia que existia esse tipo de criatura por aqui. Formigas e ratos. – Kai se virou para Gh’varok. – Existem?
– Isso...
– Não é hora para suas brincadeiras, Kmuk! – Batista se irritou. – Temos um inimigo bem complicado a frente, não o faça perder a paciência.
Kai pigarreou. Já estava se esquecendo do Firenze.
– Silêncio! – Gh’varok gritou. – Nunca ouvi falar nisso, Jhalil, e sequer sabemos da existência de tais criaturas em nossa cultura ou dos atonianos.
Stone inclinou a cabeça. Por baixo daquela máscara, que mantinha seus sentidos e sua respiração estável, era difícil interagir com o chi ambiente. E depois que ficou de olhos vendados, tornou quase impossível seguir com a máscara, muito por isso ele optou por removê-la. E foi difícil no início, pois não estava completamente habituado ao ambiente nem ao clima, e sua respiração falhava aqui e acolá.
Em contrapartida, ele tinha acesso ao ambiente em seu estado puro. Notou ali, mais do que nunca, que a respiração, o olfato e o paladar eram bem mais importantes do que pensava ser.
E foi por isso que, apesar da dificuldade de manter seu chi, por não usar aquela estranha tecnologia que reutilizava seu próprio ar, ele sorriu meio ao desconforto. Estava conseguindo captar as reações dos outros ali presentes, mesmo que mínimas. E apesar de seu chi ter sido rebatido numa checagem inicial, agora, lentamente, ele conseguia captar pelas sutilezas do ambiente. Kesel estava levemente irritado e angustiado.
Ele podia até dizer o que o sujeito estava pensando. Mas não diria, nem lia mentes. Ao invés disso, ergueu o rosto e sorriu.
“Este sujeito não bate bem da cabeça, pensou Gh’varok, confuso, “Está mesmo desafiando um Ministro?”
– És bem observador, rapaz – disse Kesel, cruzando os braços. – Diga-me, por que acha isto?
– Não ficou claro? – Disse Kai, checando minuciosamente cada palavra dita e cada entonação. Era assim que ele captava as sutilezas.
– Oh! Ficou bem claro, sim. Mas o que gostaria de saber é como chegaste nessa conclusão.
Kai aquiesceu. Apesar do tremeluzir maroto no canto da boca denunciar o que ele queria dizer, forçou-se apenas a um resmungo. A verdade é que continha uma risada irônica, e não sabia quanto tempo mais poderia conter. Respirou fundo e afastou os pensamentos intrusivos.
– Seu dialeto. Tem um sotaque bem carregado, e acho que conheço. Me diz: é do leste de Eskol ou do sul de Friedor... não me recordo bem. Depois, você é um mentiroso.
Kai notou a pulsação dos atonianos aumentar. Mas nada disseram. Kesel limitou-se a dizer somente um sonoro: Por quê?
– Ah! Essa história de que estava de folga... não é bem uma verdade, não é? Afinal, seu rei Indigno o mandou direto para me receber.
Kai aguardou, a fim de ver se o sujeito se irritaria com a clara falta de respeito. Mas não houve alteração. Ele não podia estar mais indecifrável.
– E então? – Kai sorriu. – Shineko comeu a sua lín...
– Silêncio! – Disse Kesel, calmo e um barítono mais alto do que Kai.
Sua voz soou como uma ordem e, antes que Kai pudesse formular qualquer pensamento, uma nuvem bolorenta e cinzenta surgiu do nada. Em questão de segundos ela preencheu tudo, impedindo a visão de quem quer que estivesse ali.
Kesel, indecifrável por baixo da máscara, permaneceu encarando o ponto onde os outros estavam, de braços cruzados.
Entrementes, Kai e os outros estavam sob um casulo transparente, largo e oval. Batista tinha sido habilmente liberto de sua prisão d’areia.
– Um Manto Fungicida! – Disse o Firenze, alegre. – Veja!
Ele apontou para fora do casulo, onde a nuvem já chegava na superfície.
Ao longo de toda parte elíptica do casulo, pontuações pardas se destacavam, com halos amarelados e evoluindo para manchas circulares de um castanho-claro.
Kai, incapaz de enxergar, se aproximou da extremidade e tocou na parte interna. Sabia que se envolvesse aquela energia com seu chi, seria o fim.
– São Manchas-alvo, a especialidade d’O ministro. – Declarou o Guardião.
Então era isso.
– Que podemos fazer? – Indagou Batista.
– Por ora, nada – respondeu o outro. – Nossa sorte é que não há nenhuma plantação por perto, esse patógeno evolui através de óvulos.
Kai aquiesceu, mais para si do que para o outro. Tinha conhecimento biológico básico. Sabia que pra combater esses carinhas, era no mínimo necessário sementes limpas e tratadas com fungicidas.
– Agiu bem e rápido. – Disse, por fim.
Como se se lembrasse da presença do rapaz, Gh’varok se virou.
– Não pense que minha conversa contigo acabou, Jhalil. Mas as circunstâncias são estarrecedoras e necessitam de resoluções rápidas. Já vi que podes lutar apesar da tua condição... e então, que me diz?
Kai se afastou da parede translúcida e se virou para o outro, retirando lentamente as gazes do rosto. Quando terminou, ouviu um miado vindo do outro, mas ignorou, apesar de estranhar. Tentou abrir os olhos, sem muito sucesso; a despeito de que estava quase cem por cento bem. Resolveria isso depois.
– Quer dizer que pensa em lutar? – Inquiriu.
– Tsc! Mas é claro! – disse, numa voz rabugenta. – Em uma luta contra um ministro, é matar ou morrer.
Kai sorriu sombriamente.
– E deixa-lo partir não é uma opção...
– Hm! Não se não quiser que o Indigno bata em nossa porta... – disse, como se isso fosse mais do que claro. – O que me faz lembrar, tens muito culhão para falar daquela forma com um ministro.
“Ou vocês é que são covardes” pensou Stone.
– Por que diz que ele é mentiroso?
– Achei que estava claro. – disse Kai, devolvendo a rabugice.
Batista pigarreou, o que causou uma irritação automática em Kai. Até mesmo a menor respiração do Firenze vinha causando irritação nele.
– Ele não está de folga coisa nenhuma.
– E...?
– E o Kmuk acredita que o Ministro tenha sido enviado para a mesma missão que eu. – Respondeu Batista, também sendo afetado pela irritação dos outros dois.
Kai bufou. Pelo menos o Firenze parecia ter dois neurônios, e não um como ele acreditava antes.
Segundo Batista, ele havia sido enviado para uma missão nas Terras Mortas pelo sacerdote, e essa missão não estava clara até que Kai surgiu rasgando os céus e deixando rastros de fogo nas alturas.
Acontece que para ele, a aparição dos Kawa Kale foi quase que instantânea, e de fato foi. Se os Kawa Kale eram mercenários e batedores, que é que estariam fazendo tão longe de sua base e, de quebra, num lugar inóspito e infértil?! Para Kai era simples, o Indigno também sabia que alguma coisa aconteceria, e tanto a aparição dos Kawa Kale quanto a de Kesel, foram orquestradas pelo ditador tirano.
Batista pareceu juntar um mais um a partir da linha de raciocínio de Kai, que afirmou que as palavras de Kesel eram uma mentira.
– Kesel não estava vagando como quem não quer nada, e nosso encontro não foi coincidência. – Afirmou o rapaz.
– Então...? – indagou o Guardião, ainda confuso.
Para ele nada disso estava claro. Então Batista tratou de esclarecer. Kai se irritou com o sujeito.
– Vão continuar com essa brincadeira? Deixem de mentiras... – Alertou após as palavras do Firenze, bufando.
Kai apertou o cabo da bengala. Para ele, era-lhe indiferente se o outro acreditava ou não na confirmação dos fatos, só queria voltar para a superfície. Afinal, um fato era um fato. E continuaria o sendo mesmo que ninguém acreditasse.
– Parece que tem uma grande inclinação para não crer em nada do que o Firenze diz, mas minha palavra não é como a lua, de fases. Se digo que foi assim, é porque foi. – Kai se virou, notando que a nuvem ia se afastando. – Também custei a crer nas palavras dele, e ainda reluto em acreditar, mas há uma simbologia obscura em tudo isso, e preciso descobrir o que é. Tenho de voltar para meu lar, e se tiver que matar Ministros, Reis ou Grandes Deuses da Terra, assim o farei.
Levemente com o chi ondulando e lutando para estabilizar a própria respiração, Kai puxou a espada de sua bainha. Nunca cansava de encarar sua lâmina. Agora, ela admitia um tom escuro, quase negro.
Fora usado em sua forja rochas rudimentares e muito raras, que Kai sequer sabia os nomes. Usou também as artes das runas, incrustando no seu sopro último, recitais e palavras poéticas. Era a arte da forja.
– Humpf! – Bufou o Guardião. – É sempre assim, cheio de si?
Kai sorriu, enviando camadas de chi, afastando as ondas de nuvens que já se dissipavam. Por um instante, Kai sentiu o olhar mordaz de Kesel sobre si, e tornou a sentir um vazio avassalador.
– Só quando me apetece.