Volume 2
Capítulo 73: O ARAUTO VERDE-LIMÃO
Pode-se dizer que havia uma expectativa exagerada partindo de Kai sobre sua nova e recém habilidade. Quando pensou nela, a fim de suprir algumas das deficiências do Sonar, não imaginou que de fato pudesse ser executada da forma que ele imaginou.
Kai queria uma habilidade que pudesse reagir naturalmente e com pouco gasto de energia aos seus próprios sentidos. Elevando o olfato, a audição e a visão; até mesmo o tato. Mas esta habilidade era surpreendente pelo fato de não estar inteiramente ligada aos sentidos naturais do ser vivo pensante.
Isto é, ela se saía bem em entregar um presságio bem mais rápido e inconsciente a ele, evitando uma preparação tardia e uma dor de cabeça desgastante. Mas no que se dizia respeito a sentir energias vivas, de nada diferenciava no sonar. Sem contar que após adquirir conhecimento praticamente de bandeja, ele sentiu como se estivesse burlando as regras. Como se estivesse tomando atalhos para a força desejada que tanto almejava; não era isso que esperava.
Em outras palavras, esta nova habilidade consistia em entrega-lo um misto de sensações elevadas, permitindo que enxergasse além daquilo que ele era capaz de ver com apenas seus olhos. Sem demandar muita energia, já que ele parecia estar consumindo uma energia vital maior e mais elevada que a dele e a do próprio ambiente, ele apenas sabia quando algo aconteceria, como previu e soube que em poucos instantes estariam em apuros. Ou seja, era um Sonar melhorado, mas não sem custos.
Nada que vem fácil, é de graça. Nunca foi assim, e ele aprendeu isso com a dor. Tudo o que Kai teve, até mesmo aplausos em sua vida anterior em Neve Sempiterna, veio sem o mínimo de esforço e sem dor. Era assim que a vida funcionava para ele.
Agora não seria diferente. Esta habilidade não era perfeita, nada no mundo era. No fim, grandes homens detentores de poder, força e riqueza, um dia se tornariam servis, fracos e pobres.
Um dia, até mesmo o mais poderoso dos magos, o mais habilidoso espadachim, o mais forte dos cavaleiros, enfraqueceria e seria ultrapassado pela futura geração. Tudo acabaria um dia. Nada seria para sempre.
Nem mesmo Siobhan Murphy, o famigerado “Lobo Ruivo do Norte”, escapou. Outrora, num tempo em que Kai sequer cogitava existir, sabe-se lá onde fora concebido, Siobhan foi o mago mais poderoso do Norte, carregando uma lívida espada que serviram de canções para bardos e de rima para poetas. Fora considerado um dos maiores cavaleiros dos reinos irmãos de toda a história, entrando para a célere lista de magos combatentes.
E onde estava agora? Envelhecera, rebaixado a um conselho repleto de velhos e antigos Dons, fracos demais para conseguir manter o cargo de senhor e Lorde. Servindo um rei substituto que, ora essa, havia ocupado o lugar de um antigo rei que também definhou à uma doença.
Tudo isso só alimentava a opinião de Kai. Nada duraria, nada seria para sempre. Ninguém era imbatível. Ninguém era invencível. Pelo menos não por muito tempo. Kai Stone não queria desdenhar daqueles fracos demais, aqueles que não puderam manter sua força por muito tempo. Isso apenas o aliviava. Era um alívio saber que nada seria igual para sempre. Nada no mundo era perfeito.
Mas a expectativa criada sobre esta habilidade foi exagerada, e apesar de ele possuir a perspicácia de não se abalar, não conseguiu evitar a decepção. Mas a quem culparia por isso que não a si mesmo? Sim.
O Sensar, como sabiamente definiu, não era perfeito. Nem mesmo Bulogg, o protetor dos vitanti, era. Veja bem, eles estavam numa sinuca de bico, e enquanto Kai Stone escutava os cochichos acelerados e imediatos, somados a uma confusão histérica de profusões consideradas como palavrões vindas de Batista e, perceba, ditas numa língua confusa e distante, ele, Stone, se concentrava em outra coisa.
Ele sabia que estavam cercados, mas pelo quê? Isto é, o Sensar e o Sonar trabalhavam juntos agora, um enviando ondas sinistras de chi enquanto o outro buscava reunir informações o suficiente para que Kai estivesse a par da situação. Mas nada era mais confuso.
Estavam cercados, e isso era fato. Mas por que ele somente sentia uma aura? Aquilo que, mais uma vez sábia e previamente Kai definiu e assumiu como vitalidade. Muito bem.
Havia um sujeito, acocorado sobre um grande muro de pedra bruta, que chiava. Era areia ou arenito que escorria. Kai não conseguiu distinguir, pois o som do chiado aumentava e com ele um sibilo indistinto se assomava. Isso claramente significava que haviam outras figuras em volta.
Mas o chi não conseguia coletar a assinatura áurea destas criaturas. Por que? Mesmo que fossem monstros, Kai sempre sabia quando estavam por perto, aprendera com o manuseio de mana, e aprimorou para o chi. Era quase um mestre nisso. Sensar.
Ele inclinou a cabeça, logo percebendo que a discussão era unilateral e que Batista estava tendo um acesso.
O Stone, na verdade, estava sendo vigiado. Kai logo compreendeu. Era assim: rápido.
Batista soltou um novo xingamento e cuspiu.
Tudo aconteceu muito rápido. Primeiro um tremor subterrâneo, que fez a areia salpicar e a voz de Batista se elevar. Depois, com o sonar, Kai enviou ondas por entre o solo e entre cada partícula de areia ao redor, conectando-as em pequenos fios de energia. Estava mandando uma clara mensagem, e gostaria de obter uma em resposta.
Enchendo o corpo de chi, expandiu a energia, liberando pequenas gavinhas que mais pareciam finos filetes de eletricidade pura. Talvez fossem.
Então uma clara imagem surgiu em sua mente. O plano havia sido um sucesso. Ele explodiu a cova em que estavam enfiados, agora até o pescoço, e saltou, os olhos vendados e um sorriso amarelo no rosto.
Kai não sabia disso antes, mas quando conectou as partículas de areia e transformou a própria energia em gavinhas feito dedos, pôde ler o ambiente. Entendeu por que não conseguia identificar os inimigos.
Os detalhes ainda eram muito cinzentos, mas foi o bastante para ele saber onde estavam, pois através da conexão criada com a areia, soube dizer exatamente suas posições. Fora o sujeito que podia ser lido, havia uma quinzena deles, todos pequenos e armados até os dentes.
Kai usou as gavinhas para conectar esses pontos entre si e eles, e estendeu seis delas para além disso. E depois daí tudo foi mais rápido ainda: como se movendo na velocidade daqueles finos filetes de ‘eletricidade’, que na verdade era o chi de Kai condensado para ficar veloz e palpável.
Num piscar de olhos, ouviu-se apenas o rasgar de tecido, quebrar de ossos e o pingar de algo que não era sangue. Num piscar de olhos, Kai Stone se punha à frente de seu captor, a espada em mãos com a ponta virada para ele. Tal e qual quando Kai conheceu o Firenze.
E aquilo que escorria dos quinze corpos não era sangue. O cheiro logo alastrou o lugar, e Kai percebeu a catinga. Chorume...
Com um clangor, armas se chocaram e Kai se afastou, surpreso pela agilidade de reação do outro. Esta seria a primeira vez que lutaria sem usar cem por cento de sua visão.
Kai rodou a espada nas mãos e colocou-a na sua bainha, com um leve tinir escapando por entre suas frechas. Entrementes, Batista e o outro trocavam palavras, pouco amistosos.
Chi fluiu pelos punhos de Kai.
– Amiguinho seu? – indagou, mantendo a atenção no outro. Ele conseguia distinguir o ritmo do seu coração, as batidas alternando entre calmas e céleres.
– Quase isso. – Balbuciou o Firenze, trocando o idioma e se embolando na tentativa.
– Está muito irritado, é?
– Pode-se dizer que sim – houve silêncio.
– E quem é ele, Batista?
– Este é Gh’varok, o Guardião do Portão e...
– Senhor do lixão? – indagou Kai, mórbido quanto ao seu senso de humor.
– Hein? Tanto faz! Ele é quem deve permitir entradas e saídas de Troas.
Kai sentiu uma súbita vontade de sorrir. Que é que estava mudando tanto seu humor?
– E porque, em nome dos Dez Senhores, ele não está permitindo nossa entrada, Batista?
O outro se manteve em silêncio. Era mais uma de suas omissões. A esta altura poderia considerar um milagre que ele ainda estivesse vivo. Kai queria esganar o homem a cada momento do dia.
Ele permaneceu em silêncio, mantendo uma distância formidável entre si e o Senhor do Lixo supremo... Isto é, Gh’varok. Batista notou que ele, Kai, estava lutando para não virar e esganar ele ali mesmo.
– Você lembra, Batista? Conversamos sobre manter segredos escondidos um do outro, segredos que fossem prejudiciais para nossa aventura. Pode me dizer a razão do único que pode permitir nossa entrada no seu país das maravilhas, não permitir nossa entrada no seu país das maravilhas?
O Firenze pigarreou.
Kai e Gh’varok, agora com algo realmente grande em mãos descreviam círculos lentos a uma distância breve um do outro.
– Então, Eliyahu Batista! Pode me explicar?
– Isto... O sujeito não tem conhecimento de minha missão, Kmuk. Foi considerada de alto risco e muito secreta.
Kai se perguntou se o outro sabia que ao dizer o quão secreto era um segredo, imediatamente deixava de ser.
– Tem certeza? – Indagou Stone, dando batidinhas de leve no chão, refinando seu chi e coletando as informações.
Ele sabia o peso do outro, e sabia seu tamanho. Sabia que segurava uma maça. Kai sabia que o sujeito trajava vestes gastas e folgadas, cheia de bolsos para pequenas armas serem postas. Haviam pequenas armas ali. Ele usava uma máscara muito provavelmente igual à de Batista.
Ele sabia que deveria ir com tudo, e acabar logo com isso.
Foi o que ele fez. Ele, Kai Stone, o menino adotado que sequer tinha o direito de receber um nome seu, ficando com a definição mais próxima de quebrado, sem lar. Stone.
Mas Stone também significava força. E quando ele desembainhou sua espada e correu com ela rente ao chão, tocando levemente sua ponta nos grãos de partícula milimetricamente interconectados entre si, e quando diminuiu o espaço entre ele e o Guardião, parecendo leve como uma pena, e quando trocaram a primeira série de golpes; em todos esses momentos, ele foi forte.
Rodearam um ao outro de novo, e ele notou a dificuldade que era em lutar sem ver. Somente correndo pra lá e pra cá seguindo seu instinto, seu mais puro e primário instinto de sobrevivência.
Como era difícil, pelo Hell e pelos Dez Senhores. Pelas Dez Grandes Casas. Por Eteyow!
Quando Kai se viu pensando nesse nome, praguejando e suplicando para ele, pedindo força, isso foi um divisor de águas. Porque ele sentiu a presença desse ser misterioso, que sequer era citado nas grandes enciclopédias do homem.
Em que compêndio este poderia ter sido escrito? Em que tábua estava escrita a criação do homem?
Mas ele se arrepiou, pois neste momento, em um lugar distante e com certeza sem a presença de Eteyow, pois ele já havia sentido sua presença e nunca mais esqueceria dela pois a maldição de Greylous não permitiria, ele se arrepiou. E soube que não estava só, mesmo que não sentisse medo algum. Mesmo que o vazio em si fosse tão grande quanto o maior dos abismos.
Ele ergueu a espada de novo, puxando o chi novamente. Diminuiu o espaço e levou sua lâmina na direção da maça do outro.
Outro clangor de lâminas. O sujeito era forte. E ele parecia achar o mesmo de Kai.
– Gosto do seu jeito de lutar, Jhalil – Disse, a voz grave e soturna. – E gostei quando usou de seu sortilégio para destroçar minhas crias, mas isso não muda o fato da atual situação.
– Por que não pode nos deixar passar? – Indagou Kai, respirando fundo. Tinha cansado.
– Intrusos não são permitidos, e o que quer que Falizio tenha te dito, é mentira. Peço perdão por isso.
Kai sorriu. Falizio?
– Que parte mais ou menos seria mentira?
– A de que você podia entrar em Troas. Agora terei de prender você e leva-lo aos sacerdotes, eles decidirão o que fazer. Temo, no entanto, que tenham atraído olhos para cá durante sua estreita caminhada.
Kai também temia isso. E sabia que isso podia ser verdade. Mas não era da sua conta, e nem faria questão de dizer a Gh’varok suas suposições.
– Estou numa missão, Gh’...
– Cale sua boca! – Bradou o sujeito. – Tudo o que sai dela são mentiras. Está ensandecido, Eliyahu, não compreende?
– Por que eu mentiria, Gh’varok? Estou numa missão, e aqui do meu lado está Anfon o’r tu hwnt!
Gh’varok bradou e pigarreou. Kai notou que ele bateu palmas e se ajoelhou, feito um lunático das igrejas meridionais do deus da colheita, em Algüros. Ótimo, agora ele seria objeto de culto.
– Anfon o’r tu hwnt! Como se atreve? Como pode dizer este nome de maneira tão banal? Nunca mais repita, está ouvindo? Ainda mais quando não acredita no que diz. Palavras tem poder.
– Mas é a verdade, ele caiu do céu rasgando o manto e deixando um rastro de fogo. Matou um Ednarg sued ad arret e...
– Mais sacrilégios... – Urrou Gh’varok, agora realmente irritado. – Suas mentiras não tem mais cabimento, Firenze. Você e o Jhalil devem morrer imediatamente.
Kai, que permaneceu calado até aquele momento, foi pego de surpresa pela segunda vez no mesmo dia. Não se abalaria.
Havia uma quarta figura, observando a conversa deles, e mantinha uma postura calma, embora rija. Era como ser observado do alto, e ele ergueu o rosto, mesmo sem ver.
– Ei, rei do lixão! – Gritou Kai. – Por acaso é algum amigo seu? – Indagou, calmamente, indicando com a cabeça.
Gh’varok também ergueu o rosto. Dali a pouco, sentiram uma imensa pressão surgir. O peito de Kai doeu e só Eteyow sabe como ele não desmaiou.
“Que merda é essa?” Pensou ele.
– HA HA HA! Que prazer é encontrar tantas formiguinhas juntas. Sim, que prazer, zer, zer!
Kai sondou com o chi, mas tudo o que teve foi sua energia sendo rebatida. O silêncio se tornou amedrontador, pois era como se a sensação de perigo sentida por Kai não fosse algo de sua mente. Sim, era algo real.
E este sujeito era perigoso. Ele nunca esteve diante de alguém que o fizesse engolir as palavras. Alguém que o fizesse sentir o que Greylous fez.
– Não me digam que o grande Shineko comeu suas línguas... ora, ora.
Kai sentia a hostilidade até mesmo na voz do sujeito. Quem era capaz de possuir tamanho poder?
– Primeiramente eu gostaria de agradecer pela queima de fogos lá em Fireas. Sério, o modo como o cabeludinho destroçou os alquebrados... nunca vi tanta perspicácia e genialidade somadas a uma simplicidade antinatural. Foi surreal!
– Quem é você? – Indagou Gh’varok. Se estava assustado, não transpareceu.
– Vocês sabem quem eu sou!
Ele ergueu um dedo. Era engraçado que da perspectiva de Kai, este era somente um sujeito flutuante que tinha energia de sobra.
Para Batista e Gh’varok era o contrário. Eles sabiam quem era o sujeito, ou pelo menos tinham uma vaga ideia. Seu traje o denunciava.
Usava um manto maior do que si em um tom verde limão. Tinha uma máscara de raposa no rosto, e cachos ondulados escapando pelas bordas. E era só isso. Acabou. Nada disso poderia trazer medo junto a voz carregada de terror e tensão, com ondas de promiscuidades sendo reprimidas e uma vontade absurda de dobrar o mundo aos seus pés sendo retida.
O que dava medo além de tudo isso era o brasão bordado no peito de seu manto, costurado em finos filetes de cinza sobre verde. Era uma ave com um verde pálido e características equinas. Sobre as garras enormes, havia um tridente bordado em amarelo. Os dois atonianos permaneceram estáticos.
– Oh, sim! – O sujeito pareceu sorrir. – Vocês sabem quem eu sou. Mas não vamos deixar que isso me impeça de me apresentar, não é?!
Aquele quê de tensão deixou Kai mais aperreado.
– Desembucha de uma vez!
O sujeito soltou um riso frouxo, ignoto. Ignorou o comentário de Kai.
– Me chamo Kesel Na-Ij, o Ministro da Peste.