Volume 2
Capítulo 72: USUFRUIR
Kai decidiu usar o longo tempo de viagem para tratar de si mesmo. Isto é, descobrir o que vinha lhe acontecendo.
O chi dele havia se fortalecido, e mesmo assim o processo de recuperação estava demasiadamente lento. Não tinha ficado cego por completo, portanto, tornaria a enxergar; isso não significou que não demoraria.
Sua teoria era que o esforço para regularizar a própria respiração a fim de não deixar a tontura dominar, enfraquecia e diminuía o processo que já era lento por si só. Ele vinha tentando, afinal, usar sua própria energia vital para curar a si mesmo. Deveria mesmo demorar.
E a dor de fazer isso era lancinante. Era como se sua sensibilidade houvesse aumentado, e tudo tivesse ficado mil vezes mais intensificado. Até uma simples enxaqueca.
No entanto, eram necessárias duas coisas para se acostumar. Calma e tempo. Ele as tinha de sobra. Tempo. Não via a hora de chegar ao destino, pois o trote lento já vinha o cansando.
Mas isso vinha em beneficio dele. Juntaria este tempo com a infinita calma que adquiriu enquanto meditava nos salões dos Echanti. Calma e paz interior. Este último um verdadeiro empecilho. Como teria paz interior se a cada momento de sua vida lembrava dos momentos infernais com Greylous?!
Paz interior. Estava longe de possui-la.
Mas tinha calma; e tempo. Usou estes dois componentes a seu favor, voltando-se para dentro de si. Não é como se conseguisse enxergar todo seu interior, isso seria bom demais. Mas sua percepção melhorou, e o que ele encontrou foi magnífico. Tinha medo de que fosse uma ilusão, por isso decidiu ignorar da primeira vez.
Suas células se sobrepunham sobre as mortas, como se a regeneração molecular fosse instantânea. O chi que fluía por entre seus canais de chi e veias era totalmente diferente do de antes. Era o mesmo, ele percebeu. O seu chi. Mas mais novo, renovado, forte, opressor. Cheio de vida. Como se um manto de energia tivesse se sobreposto sobre ele, renovando-o a cada minuto.
E as próprias veias... Ah! Estupendo. Estavam mais largas, mais firmes e flácidas, como se pudessem aguentar muita energia e, ainda assim, não se ramificarem e partirem-se em milhões de pedaços.
O mais surpreendente era que seu corpo estava aguentando aquilo, mesmo num ambiente hostil, totalmente oposto ao que ele estava acostumado, e seu corpo vinha se adaptando a isso. E só existia um motivo para isso: seu Tanden.
Ao ver que em seu Tanden havia um núcleo de chi mais espesso e brilhante, suas dúvidas foram cessadas. Este era o motivo para aguentar a nova energia mesclada ao seu chi.
Mas então por que ainda assim sua visão se negava a se recuperar mais rapidamente? Talvez pudesse ser pela teoria já pensada, talvez fosse por outra..., Mas Kai enxergou – sem o humor da palavra e do contexto, – aquilo como uma oportunidade.
Sim, pois em que outro momento ele teria para treinar seus outros sentidos? Ele iria aprimorar isto. Seu sensorial, seu senciente. Que hora melhor do que essa?
Kai já tinha grande conhecimento, pois conseguia checar os arredores com um sensor ou radar, mas somente quando expelia seu chi, fazendo-o se tornar uma espécie de bumerangue. No chi que era expelido, ele mantinha pequenos fios de conexão, conseguindo, assim, saber dos arredores em até dez metros.
Mas e se ele conseguisse sensar sem precisar expelir chi, sem precisar se concentrar, somente com um pensamento, e tudo ao redor ficaria claro para sua mente mesmo quando ele estivesse enfraquecido por sua visão. Não poderia necessitar dela pra sempre.
Começou com pequenas ondas, tentando a todo custo sentir os arredores. Mas a resposta era vaga e até mesmo pouco eficiente. E não era isso que ele queria. Queria a todo momento ter noção do que o rodeava. Dez, vinte, trinta metros! Ele queria superar isso.
O tempo foi passando e ele não tinha noção do que pudesse estar faltando. Não estava nem perto de chegar aonde queria. Então como se respondesse a uma pergunta não feita, uma palavra surgiu em sua mente.
Não era bem uma palavra, estava mais para símbolo. Na língua antiga, antes da estabelecida em Reiqin pelos anões, usava-se símbolos curtos, que significavam palavras ou até mesmo frases inteiras.
Era uma runa bem conhecida, mas que teve seu significado totalmente modificado. Surgiu em sua mente a runa Othala, que por vezes significava família, por outras heranças, e até mesmo ciclos. Não.
Kai soube, no entanto, que não era Othala, pois como dito antes, e por sua percepção e inteligência superiores, a palavra representava a língua antiga. Foi por um simples traço desenhado de forma diferente. Não era Othala.
Era Syndési, a conexão. E Kai matou a charada. O ambiente lhe dava dicas... não, não era o ambiente, era o próprio universo. E ele queria uma conexão novamente, como aquela que Kai tolamente preteriu.
Ora, era necessário tempo e calma, ambos componentes singelos do atual Kai.
Já de olhos fechados, e não mais impacientemente tolo para gastar sua energia em tentativas vãs, concentrou-se na própria energia. Não é preciso dizer que em questão de segundos Kai entrou num transe profundo.
Ele tinha noção do seu arredor, agora. Era como se transcendesse, saindo de seu corpo e observando a si mesmo sobre um transporte invisível. Até mesmo Batista se mantinha escondido, agora.
Kai logo notou que vários caminhos surgiam diante dele, com ele sendo o princípio das ramificações. O céu logo adquiriu um tom azul escuro, pontilhado por pequenas estrelas.
Imediatamente uma lembrança despontou para ele. Quando tentou pela primeira vez meditar em solo nada confiável, Kai viu um lugar com céu escuro e pontilhado, mas ele fazia parte de um fluxo de rio, onde diversas afluentes e subafluentes surgiam e se formavam. Por que agora havia caminhos feito solo concreto?
Como se a vida imitasse a arte, ou uma espécie de deja vu começasse, um fino brilho desceu do céu. Kai ergueu o indicador, e teve outro acesso de memória.
Mas foi diferente. Daquela vez, quanto mais ele esticava os dedos, mais o fino fio brilhante se afastava. Desta vez, não. Quando se tocaram, seu corpo acessou uma energia poderosa, e ele foi arrastado universo afora.
Era como se tudo fosse um minúsculo ponto, um grão em meio à uma imensidão incontável. Ele mesmo fazia parte de uma pequena parte daquele grão. E naquele instante sua energia findou-se com a energia que tomava posse dele. Uma conexão.
Houve um rimbombar distante, ressonante e escaldante, como um trovão que cai sobre um mar revolto durante uma tempestade a esmo. Seu corpo se arrepiou, e ele voltou ao trote lento. Seu braço ardeu, como se tivesse sendo queimado por algo.
Instintivamente ele levou a mão a ele, traçando os dedos por sobre a dor alarmante. Linhas duras haviam se formado sobre sua pele, e ele viu que não poderia ter sido Batista.
Notou uma regularidade nos riscos recém formados em seu antebraço, e traçou novamente com seus dedos ásperos, tomando cuidado para não machucar mais. Era uma palavra. Outra. Desta vez dita com todas as letras, sem a necessidade de testar sua habilidade filológica.
Estava escrito Continue com as letras atuais do continente Reiqin. Assim que ele entendeu seu significado, sua pele curou-se sob seus dedos, se fechando imediatamente. A ardência não sumiu, pois Kai se lembrava de tudo que lhe aconteceu, cada ferida feita, cada dor de cabeça, cada sensação de angústia e fome. Não esqueceria disso nunca.
Entrementes, ergueu a cabeça, a fim de sensar o arredor. O que aconteceu foi surreal. Ele não precisou expelir seu chi, aguardando para que este mandasse de voltar um sonar indicando. Não, ele apenas... sentia. Ele sabia agora o que o carregava, apesar de não ter uma visão. Ele sentia, como o cheiro, o som, o gosto. Ele sentia.
Estavam sobre alguma coisa flácida e redonda, com finos fios que poderiam ser suas patas. Era incapaz de gerar pensamento. Ele, Kai, estava sentado num pufe em suas costas, e Batista seguia na frente, indicando o caminho.
Kai sentiu o olhar do outro. Era como se estivesse vendo-o, mas não estava.
Estava claro agora, mais claro do que ele poderia ver se estivesse com cem por cento de sua visão. Batista o encarava, atordoado. Ele não havia nem tirado a máscara. Que sujeito desconfiado.
– Já te falaram pra relaxar de vez em quando? – Disse Kai, sorrindo levemente. O outro se virou para frente bruscamente; Kai sentiu.
Batista pigarreou.
– Eu? Relaxar? Você que está todo duro há horas. Tudo bem?
Ele mudou de assunto. Ficou precavido por conta da pergunta. Kai soube que ele estava em dúvida se deveria ou não o levar ao seu destino final. E o que ele percebeu após sentir, comprovou seu ponto. Batista tinha dúvidas severas.
Kai sorriu. Era natural.
– Sim. Queria saber se não está tonto.
Batista se virou bruscamente outra vez, e Kai podia jurar que por baixo daquela máscara havia espanto.
– Por que estaria? – ele disfarçou a voz. Kai sentiu menos repulsa dele por isso.
– Ora! Estamos rodando há pelo menos seis horas. Já passamos pelo mesmo barranco e pela mesma estrada uma dúzia de vezes ou mais, se for contar. Queria saber se está tonto. – Kai ergueu o braço para noroeste. Ele sentia tudo, era prazeroso. – Se estiver perdido, basta seguir para lá.
Isso não foi o suficiente para Batista se alarmar, mas fez com que a “carruagem” parasse imediatamente. Outra teoria de Kai fez sentido.
– Eu entendo a razão de você querer esconder seu rosto, de negar informações a mim e até mesmo ocultar suas habilidades; você não confia em mim. – Kai ergueu a mão, impedindo que Batista falasse algo. – Tudo bem, sério. Você deve achar que estou mentindo sobre minha condição, mas veja... – Kai ergueu o pano sobre seus olhos, revelando queimaduras sobre eles. Era como se ele tivesse jogado soda caustica e coçado, deixando em carne viva. – Não estou enxergando, Batista. Não sei por que minha visão não retorna, principalmente porque meus globos oculares e minhas retinas sofreram pouco ou nenhum dano.
– Então como...
– Você deve ter notado, apesar de não ser usuário da energia convencional do povo de cima, que algo mudou.
– Sim! Tua presença, tua voz... tudo está mais calmo. Tu transbordas uma sensação única de paz. Mas isso... isso é sinônimo de alguma coisa que não está certa.
– Está certo.
Batista se aplumou, virando-se completamente para Kai. A criatura que os carregava retornou ao trote lento.
– E o que seria?
Kai sorriu, e ficou grato quando o outro compreendeu sem que este precisasse dizer nada.
– Carrego comigo em pequenos frascos algumas substancias que, ao meu bem querer, assumem formas para determinadas situações e momentos. Ed Atno’v Ahnmi.
Kai sorriu, não conseguindo esconder seus dentes no processo.
– Qual a graça, Kmuk?
O jovem rapaz balançou a cabeça, colocando o pano outra vez sobre os olhos.
– Nada, é só que... boa parte desses nomes que você fala só estão ao contrário.
Batista pigarreou, talvez se perguntando se isso poderia ser considerado sacrilégio. Ou talvez se perguntando porque parou para ouvir uma bobeira como essa.
Seguiram caminho, com o Firenze virando lentamente para a direção indicada por Kai. Este notou uma sutil mudança no aspecto do outro. Isto é, por aspecto quer dizer seu semblante, sua postura e provável mudança de humor. Kai viu através da máscara, da sutileza velada.
– Diga. – disse o rapaz.
Batista balançou a cabeça. Era engraçado como funcionava essa nova habilidade de Kai. Para ele, pareceram poucos minutos, ou segundos. Mas na verdade foram horas, o que já é absurdo por si só. Ele levou apenas horas para conectar sua energia com a do mundo. Ou seja, pegou um pouco para si. E ela lhe ajudou. Não sabia ainda a razão para isso, mas tomaria como vantagem.
A questão é que ele notou até mesmo a menor mudança de comportamento. Notou que o outro queria falar, até mesmo pôde pressupor que tipo de coisa viria. Apostaria que era uma pergunta.
– Como soube a direção de Troas?
Kai sorriu, mais para si do que para o outro.
– Apenas sei.
– Isto..., mas como? Prevê o futuro agora?
Kai sorriu outra vez, estava muito aliviado por sorrir à menor palavra dita por Batista. Sorrir lhe fazia bem.
Este gesto vinha se tornando irritante demais para o gosto de Batista.
– Não, eu não vejo o futuro. É complicado explicar, entende?
Kai não viu, mas soube que o outro assentiu.
– Tem a ver com a explosão do Sauveg?
Kai ponderou. Lembrou-se do aviso. A mensagem. Queria esquecer. Não poderia. Lutou para enfiar tudo isso no fundo da mente. Não poderia. Por um momento pensou que poderia viver como alguém normal.
– Não exatamente. Não se preocupe.
Batista soltou um pigarro alto. Era deboche. Ficou ofendido com o pedido de Kai, como se ele, o Firenze, ficasse preocupado com um Kaule. O que é que isso fosse.
Kai não reprimiu outro sorriso. Sabia que isso irritaria o outro.
À medida que iam se aproximando, um sentimento estranho brotou no peito de Kai. Ele sentia que havia algo logo a frente, algo imenso e com grandes inscrições de energia. Isso alarmou o rapaz, pois era novo para ele.
Todo esse sentimento, esse sentido aguçado. Ele sabia que se forçasse a vista, não veria nada. Tinha quase certeza.
– A entrada está escondida, não está?
Batista se remexeu. Kai apostaria dez moedas de ouro que ele lançou um olhar curioso e preventivo para si. Não, vinte. Dentro de sua cabeça provavelmente várias perguntas brotaram.
– Eu lhe disse... Troas é um reino escondido. – Respondeu o Firenze, não disfarçando o orgulho e a altivez.
Kai aquiesceu.
Ele percebeu que o solo foi de árido para arenoso. Kai passou a sentir algo dentro da terra. Como construções vivas, como vidas e mais vidas.
Não demorou muito para que o solo se tornasse mais espesso, como se feito de grãos.
– Estamos sobre um imenso deserto feito de areia, não é?
Batista alarmou-se.
– Como sabe?
Kai não respondeu de imediato, inclinando a cabeça a fim de ouvir. Ele umidificou a boca, que se tornou seca. Como o clima poderia mudar tão rapidamente em questão de minutos?
– O vento que sopra em meu rosto... – disse, suavemente. – Ele uiva, apesar de não haver vento. Mas há, e não sei a explicação disto. Ele ressoa por aí, trazendo boas novas, e as palavras... o som, a canção. Os grãos ferem minha pele com um doce e célere significado..., mas..., mas...
A sensação tornou-se mais e mais estranha para ele. Não tinha certeza, mas havia algo de errado. O solo mudar, o silêncio que se formou logo depois disso. Não ouvia nem sentia os burburinhos. Ficou silencioso, e calmo, e obsoleto.
Daí a pouco até a respiração de Batista ficou silenciosa, e Kai soube que algo mudaria.
Tudo aconteceu muito rápido: houve um chiado alto e dissonante de areia, como se um corpo se erguesse de debaixo dos grãos de areia, e esta caísse em cascata, partícula se chocando com partícula, formando o som tão habitual e comum de areia caindo. Como uma ampulheta. Como o tempo. Como a vida.
Kai pulou de seu lugar, rápido demais, e esticou o braço pelo cangote de Batista, que pigarreou e soltou insultos numa língua desconhecida.
Ao pousar no solo, notou que havia uma viscosidade diminuindo a cada movimento brusco. Era úmido, o que tornou mais e mais a experiencia angustiante. Batista pigarreou de novo.
– Ahr’jiset! Tu nos levaste bem para o Olho do Abismo.
Kai tentou se mover, mas isso só o fez afundar ainda mais. As pragas de Batista só fizeram ele se aperrear. Mas ele manteve a calma, e respirou fundo.
Ele sabia que algo os sondava, aguardando para saber o que fariam a seguir. Era um teste e uma armadilha. Lógico. Quem quer que fosse, tinha feito isso às margens de seu real destino. Seria um guarda? Um protetor? Kawa Kale?
A areia chiou novamente, e Kai nem precisou ver para saber o que estava acontecendo.
– Estamos cercados... – Balbuciou ele.