Volume 2
Capítulo 71: REBORN
Kai deveria ter morrido, pois fora atingido por grande parte da onda de energia, e fora jogado longe o bastante para uma pessoa comum sequer sair sem ossos quebrados.
Mas ele não morreu, nem ficou com qualquer fratura externa ou interna. No entanto algo havia mudado. Seu corpo havia sido exposto a uma grande quantidade de energia, e suas veias pulsavam, elétricas e renovadas. Ele não conseguia conter esse regozijo.
Tudo dentro dele piscava, aceso, vivo, incapaz de parar. Seus sentidos haviam sido elevados, e ele captava mais ar do que devia. Seus olhos ardiam e seus ouvidos doíam com o som agudo que se seguiu após a longa exposição.
Algo havia mudado.
Ele piscou várias vezes, lutando para afastar as luzes piscantes diante de sua visão. Tentou encontrar Batista pela visão periférica, mas tudo o que pôde ver foram borrões indistintos, o breu tornando-se um com aquele lugar que já deveria ser escuro por natureza.
Então foi atingido em cheio bem no meio do peito, sendo jogado longe pelo que quer que tenha sido. Ar faltou aos pulmões e uma ardência preencheu seu dorso. Agora tinha certeza que algumas costelas se quebraram.
Seu pulmão gritou de dor, inebriado pelo próprio sangue, perfurado pela própria costela quebrada. Ele arquejou, cuspindo sangue e tentando recuperar todo o ar que agora pouco tinha tanto consumido.
Mas pra mal ou pra bem, seu corpo entrou numa sequência infinita de puxar o ar e se engasgar com ele. Kai não aguentou todo o repuxo, e tontura começou a vir em pontadas agudas, seus olhos vibrando de tensão.
Era como em um dia de ressaca, quando ele vomitava até suas tripas e tremia até que o corpo repusesse os sais minerais e toda a hidratação perdida no processo. Ele tremia, não de medo, não de compulsão, mas de um êxtase permanente. Seu corpo não respondia aos comandos, e o chi era fraco diante tanta pressão que seu cérebro tentava colocar.
Por puro instinto, ele se jogou para o lado bem a tempo de algo cortante raspar por seu lado. A parede explodiu três segundos depois e então tudo se tornou um borrão.
Seus olhos arderam, e ele jurou ouvir a voz de Batista gritando ao fundo, pedindo ajuda. Mas seus olhos ardiam, e algo estava vindo. Algo dentro dele.
Era como uma torrente de energia jorrando, e ele lutou para fechar os olhos, mas isso não impediu a energia de avançar, queimando suas pálpebras. Ele abriu os olhos e viu tudo brilhante, quase dourado; mas seus olhos queimavam, ardiam diante daquilo que saia por entre suas pálpebras.
Lutou para fechar, mas doía, ardia, e tentou também tampar os olhos, mas suas mãos queimaram, ficando em carne viva, e seu gritou de dor foi ouvido por todo o ambiente fechado. Era um urro ardente, inebriante, tomado de uma dor que revelava os mais obscuros temores de Kai: o tempo que passou com Greylous.
Sua alma doía, ainda que o regozijo por liberar tamanha energia fosse quase que libertadora. Era ótimo possuir tanto, ainda que custoso e doloroso.
Kai pendeu sobre os joelhos, gritando e lutando para conter as rajadas de energia, mas nada que fizesse poderia conter. As rajadas que saíam de seus olhos eram destruidoras, causando sulcos e perfurações profundas nas paredes, no teto e no chão.
Ele jogou-se para frente, colocando as mãos na frente dos olhos, a energia queimando-as. De novo não pôde contê-las e, por fim, deixou que toda essa onda de energia se esvaísse, destruindo tudo ao redor. Sua mente ardeu de dor e ele pendeu para o lado quando desmaiou.
Kai já havia ficado doente antes, mas nada como isso. Mesmo inconsciente, ele tinha noção do estrago em que seu corpo se encontrava. Estava dolorido, as mãos ardiam, mas o que mais doía era seus globos oculares. Sua cabeça também doía, ardendo em febre, e ele teve pesadelos.
Era tudo muito superficial, mas os pesadelos e as alucinações alternavam-se entre uma época antiga, em que ele se lembrava de estar numa grande nau. Mas era muito antigo, pois sua memória não era tão boa.
Então ele estava num deserto branco, repleto de neve e montanhas congeladas. Tremia de frio, e tremia de medo. E o sangue, o pavor, a carnificina não melhoraram seu estado inconsciente. Seu corpo queimava em febre.
Tudo o que se recordava agora era de seguir o velho Shiv para cima e para baixo, segurando na barra de sua capa suja de lama, feito um pequeno cachorrinho. Lembrava-se da mão quente e acolhedora do homem em sua cabeça dizendo que tudo estava bem, mas o rosto era intransponível.
Mas aí via Fioled morta, estripada por gobelins. E via Ardara, Gunter e todo o povo vitanti morto, feitos de zumbis. E a risada de Greylous despontou, o rosto sombrio e triste de Jimothy surgiu, e ele estava pendurado por alicates preso aos ombros.
Algo pontilhava sua mente, não... seu cérebro. Era como se sua cabeça estivesse aberta e alguém vasculhasse por algo, dissecando-o feito uma perereca. Era como se ferro quente fosse posto na sua cabeça, e ele não soubesse mais o que era realidade e o que era mentira. O pavor cresceu em seu peito, o temor por seus demônios aprisionados estarem sendo libertos.
Ele não tinha se livrado deles permanentemente, ainda vivia constantemente com o pavor de que acordasse no meio da noite e tudo estivesse reduzido a cinzas. Os pesadelos eram constantes, mas tinha se livrado dessa resposta imediata de seu corpo; tinha cuidado dessa parte. Não havia como esquecer o medo e o pavor e o pesadelo. Não esqueceria Greylous nem o que viesse depois disso. Nem das dores nem das perdas. Não esquecia nada.
Mas era por isso que sua mente borbulhava em profusão, alarmada por uma confusão ainda mais alarmante: não lembrava de sua vida antes dos cinco anos. Não lembrava de nada. Nada. Lembrava de cada farpa e cada calo criado pelas intensas aulas de esgrima; do esforço causado pela alta concentração no controle de mana. Na sua mão destruída por causa da perda do controle de mana. A cicatriz ardeu nas costas da sua mão, bem como as novas nas palmas.
E aterrorizou-se novamente com todo o temor que Greylous o fez passar. Mas nada o ajudava a lembrar daquele tempo apagado, ou do que é que tenha acontecido na caverna. Só soube que estava bem quando ouviu a voz de Batista, acolhedora, e a febre diminuindo.
Quando despertou, não abriu os olhos. Estes ardiam, queimavam, e sua cabeça doía pra burro. Sentiu pelo tato que algo estava envolto neles e em suas mãos. Ergueu a direita para tocar na testa, apenas para sentir o tecido áspero envolvendo os olhos.
Tateou os próprios dedos direitos, e sentiu o mesmo tecido ao redor da palma. Sentiu a boca seca, e o chi estava fraco. Mas algo havia mudado.
Só de concentrar-se no seu interior, uma dor de cabeça despontava feito faca afiada e quente perfurando a carne, mas seus canais estavam mais largos, e seu núcleo... ah! Havia definitivamente algo diferente.
– Vai ficar tudo bem – Kai ouviu a voz distante de Batista enquanto era chacoalhado.
Viajavam em cima de alguma coisa, mas Kai não tinha certeza. Não tentou sondar com seu chi, pois isso demandaria um esforço que ele não tinha coragem de ter. Em vez disso apenas ficou em silêncio.
Sabia que estava ao ar livre, ou melhor, na superfície. Notava a sutil mudança no ambiente, como o ar correndo livre. Mesmo que aquele lugar fosse quase completamente livre de lufadas de ar.
– Água... – conseguiu dizer, por fim. Era como se mil facas serrilhassem sua garganta.
– Como é que é? – Indagou Batista, parando o percurso.
– Preciso de água, porra. – Bradou Kai, sentindo o gosto metálico de sangue.
Alguns segundos se passaram e Kai ouviu o sujeito correndo para dar o que ele queria. Se sentiu mal por ter falado assim, mas sua paciência tinha se esvaído. Não agiria assim pra sempre, mas estava cansado demais para ser educado.
Trinta segundos depois o sujeito pegou sua nuca e o ergueu, apoiando um cantil em sua boca. Kai não esperava que realmente fosse beber água. Estava esperando algo menos... limpo. Mas se surpreendeu e quase engasgou quando sua garganta foi preenchida pelo liquido mais do que bem-vindo.
Batista afastou o cantil, e Kai notou sua preocupação pelos temores do corpo e pela agitação. Era provável que o sujeito estivesse até mesmo sem uma máscara.
– Precisa de mais?
Kai limpou a garganta e tossiu, pontadas surgindo nos olhos, acima dos ouvidos e em toda a rede de neurônios e sistema interno de seu crânio.
– Não – disse, por fim. O outro se afastou, mais calmo e tomou o trote lento. – Obrigado.
Kai acabou ficando nauseado pelo chacoalhar, mas não reclamaria. Sentia-se um peso morto para o outro, que fazia de tudo para leva-lo, fosse como fosse.
O rapaz acreditava se tratar de algum tipo de carruagem, mas sua dor de cabeça e a taquicardia eram tantas que não tinha nem cabeça pra se concentrar. Em circunstancias comuns, teria descoberto na mesma hora, mesmo que estivesse parcialmente cego. A esta altura ele já sabia que teria sequelas, só não sabia o tamanho delas. Ou sabia e não gostava de admitir tanto quanto deveria.
Horas se passaram até que finalmente pararam. Em determinado momento, Batista veio até ele com uma tigela em mãos.
– O que mudou? – Kai perguntou, lembrando-se que o sujeito fizera a mesma pergunta quando se conheceram. A ocasião era outra.
A resposta do Firenze não veio logo, mas sua voz estava distante quando falou.
– Como assim?
Kai ergueu a tigela quase que imediatamente, e não disse nada. Esperava que fizesse sentido.
– Já deve ter notado a mudança de clima. Estamos seguros, podemos fazer fogo... sua circunstancia exige isso.
Kai assentiu e tomou o que é que tivesse dentro daquela tigela em três goles. Rezou para que não fosse carne de Ednarg, mas, àquela altura já não se importava.
Colocou a tigela de lado e suspirou.
– Eliyahu, preciso que me explique o que aconteceu.
Kai esperou tanto que achou que não haveria uma resposta. Já estava pronto para se estressar, mas percebeu algo muito contundente para aquele momento: o homem que não economizava com palavras, estava sem seu principal arsenal. A presente situação de Kai dificultou entender o outro, pois era muito observador. E isto o ajudou a focar em outro sentido que pouco usava: a audição.
Focou-se tanto que, sem notar, estava concentrando chi nos ouvidos. Notou a pulsação de Batista se elevar, e ele respirando fundo, lutando para se acalmar. Que é que tinha acontecido?
– Batista – Kai disse novamente, controlando o tom da própria voz. – Quero que me diga o que aconteceu.
– Então n-não se lembra?
Kai deixou que aquela pergunta se assentasse. Ele queria entender os motivos.
– Pouco.
– Quanto?
Por que Batista se recusava a responder à pergunta? Kai queria saber a razão por ele adiar as informações. Mas não falou nada sobre suas dúvidas, resolveu seguir o rumo dele.
– Lembro-me de cairmos no buraco... na fenda. E lembro que chegamos a uma gruta, ou talvez uma caverna... não sei ao certo. Me lembro de resistir a uma vontade imparcial dentro de mim; pelo menos tentei. Lembro de caminhar até aquela fonte de energia e ser consumido por ela. E então – Kai parou de falar, erguendo os dedos e roçando-os no tecido em seus olhos. – Então estava jorrando energia, e foi isso o causador de minha enfermidade. Mas nada faz sentido... explique, me ajude a entender.
Batista limpou a garganta mais vezes do que Kai gostaria de ter ouvido.
– Sauveg Mauror Nimu!
– Como? – Kai estreitou os olhos, se esquecendo que estava com eles fechados. Sua cabeça recebeu duras pontadas.
– O Destruidor de Mundos Menor. Cada corpo e cada ser deste mundo recebe um nome no antigo tianderi, língua dos atonianos, Firenze e dos povos de lá. Cada uma dessas coisas recebe esse nome pois são obras da natureza, um lembrete vivo e constante de perigo. Eram adorados e cultuados por povos tão antigos quanto os do Indigno, o desmerecedor de nomeações.
“O Destruidor de Mundos é um corpo celeste constituído por massa e densidades impossíveis de serem medidas; não tem consciência; não tem vontade; vive apenas para destruir e criar. A cada destruição, vem uma nova criação, e é assim que o ciclo segue. Você foi chamado pelo Destruidor de Mundos, e não conseguiu resistir ao seu comando. Mas não entendo...”
Kai ouviu que o tremor em sua voz. Ele tremia tanto de medo quanto de pavor. E parecia prestes a ter um piripaque.
– Que é que você não entende?
– As profecias, as inscrições... você!
– Eu?
– Tu recebeste todo o dano, toda a onda de energia e de calor do Destruidor de Mundos, Kau- – Batista parou no meio da frase, respirando fundo e calmamente. – Kmuk! Tu recebeste a energia do Sauveg, e viveu.
– Mas isso...
– TU ENFRENTASTE A DUAS OBRAS DA NATUREZA, KMUK! – Berrou o Firenze.
Kai se alarmou e sua cabeça ardeu em dor. Ele não esperava por aquilo.
– E sobreviveu! – Pontuou, finalmente. – Corri para me salvar, após tuas muitas ordens para que eu o fizesse. Saiba que estive disposto a salva-lo, mas tu foste contundente em teu pedido, e eu acatei. Mas vi, ninguém contou a mim. Vi, com meus próprios olhos que o ser tem de me dar! Vi tu destruir as Erínias com rajadas de energia, num piscar de olhos.
Kai entendeu a insinuação velada do Firenze. Ele não era tolo. Àquela altura era de se esperar que isso tivesse acontecido.
De repente surgiu em sua mente uma memória, simples e singela. Criaturas altas, aladas e flutuantes, negras e cheias de pompa, com braços grandes e esqueléticos. Poderosas, exalando poder e aura. Elas quase mataram o pobre Firenze, mas Kai não conseguiu conter a força das rajadas de seus olhos, e lembrou de ver por aqueles mesmos olhos enquanto tornava as Erínias em pó. Seus gritos foram cruéis e dolorosos, agudos e cheios de pavor.
– Mas como? – Sua voz deu lugar a uma nova curiosidade. Elas nunca deixavam de surgir, e Kai foi forte para repreende-las até aquele momento.
– Não faço ideia, Kmuk! Mas, ó! Eram lindas rajadas de energia brilhantes e douradas, merecedoras do mais belo retrato de arte, dignas de uma demonstração eterna nas paredes do destino!
A dor de cabeça de Kai piorou. Nada disso fazia sentido. Rajadas oculares? Já era surpreendente o suficiente o que estava acontecendo com ele em seu Tanden.
– E o que são essas Erínias? – indagou ele, afastando a ideia de se tornar uma espécie de dispara laser ambulante.
Batista respondeu com um tom de voz decepcionado.
– Criaturas vindas do mais obscuro abismo, seres de escuridão projetadas para destruir. Surgiram após o rompimento da realidade.
Kai quase engasgou com a resposta.
– O que disse?
– Criaturas do abismo obscuro?
– Rompimento de Realidade.
Batista se alarmou.
– Isso não é relevante.
– Como não?
– Não... é... relevante... Kmuk. – Disse, pausadamente. – Você as destruiu num piscar de olhos, Erínias deveriam ser algo de outro mundo, e foram destruídas pela mesma energia que as sopra para fora do caos. Então isto não é relevante. Durma.
Batista se calou e Kai ficou matutando consigo mesmo sobre as informações recebidas e pelo jeito estranho de agir.
Longo tempo se passou até que ele pegasse no sono e, até lá, ficou pensando sobre a sua situação. Neste momento, Kai não se lembrava do acontecido, e lutava para se lembrar. Era engraçado que todo o resto que não era pertinente, estava guardado em sua cabeça, como um grande baú sem fundo. Era só acessar e PLIM, estava a sua disposição.
Mas as duas coisas que ele mais se esforçava para se lembrar, não vinham, sequer existiam. A primeira: sua infância, não lembrava de nada, e achou que com essa maldição, seria possível acessar pelo menos algo de seu passado. Não ligou muito.
Mas a segunda... não era como um imenso espaço em branco, de modo que alguém tivesse apagado com uma forte magia mental. Apenas não existia. Ele sentiu um aperto no peito, bem como algo se desprendendo.
Pela primeira vez desde que saiu da magia de Greylous, a Ilusão Onírica, ele, Kai, se sentiu leve, solto, sem todo o fardo que carregava, a forte e inebriante ilusão de nunca esquecer de nada. Havia uma brecha ali, ele notou; a magia de Greylous não era de todo poderosa e sem falhas, como o xamã costumava dizer. Ela tinha falhas, e uma chama se acendeu em seu peito, um regozijo novo, uma nova esperança de que essa maldição pudesse ser quebrada.
Mas aí ele adormeceu, e com isso sonhos vieram.
Ele estava parado na caverna, e começava a se mover. Uma estranha voz o chamava, numa língua estranha e desconhecida. Mas Stone tinha noção do real e do irreal, por isso notou que haviam traços e um sotaque distinto. Era o antigo Tianderi. A conversa com o Firenze estava fresca em sua memória; ele sequer precisava se esforçar para se lembrar.
Vozes sobrepostas umas nas outras diziam palavras em perfeita sincronia, num tom doce e amável. Como ele, Kai Stone, nunca deixava nada passar, logo percebeu que se tratava de uma afabilidade velada, uma isca.
“Um cântico...” percebeu ele, enquanto seu corpo se movia. Então foi puxado para fora do próprio corpo, a fim de observar o desenrolar da história.
Percebeu que o cântico era diferente daqueles que vinha escutando até agora. Eles não o forçavam a fazer nada, nem se davam o trabalho de criptografar uma mensagem. Pouco a pouco as palavras que pareciam ser ditas a esmo, faziam sentido, e ele ficou pálido diante delas.
Apesar de estar apenas em sonho, um arrepio passou por todo seu corpo quando compreendeu cada parte daquele cântico, repetido diversas e diversas vezes. Ele entendia Tianderi.
Observou, estático, enquanto ele mesmo entrava nas águas, caminhava até a esfera de energia, e tocava-a sem comedimento. Foi tolo, caiu num feitiço simples. A esfera rugiu e explodiu.
Ele foi banhado pela energia, absorvendo tudo. Nem sequer um simples filete escapou. Ele era como um aspirador.
Então quatro criaturas surgiram daquela explosão. Eram altas e flutuavam. Suas capas esvoaçavam dando a impressão que possuíam asas.
Morte e sombras escapavam daquela imensidão escura que ficava por trás do véu negro em seus rostos. Elas flutuaram em alta velocidade, surgindo diante de um Kai atordoado sobre os joelhos. Ele gritava e urrava, segurando a cabeça.
Kai se lembrou dessa sensação, e sua cabeça começou a doer. Nem uma dor escapava.
Seus instintos o alertaram bem a tempo de desviar do primeiro ataque, então seus olhos brilharam, e ele levou as duas mãos, nuas, até eles, a fim de conter o que viria.
Mas ela saiu por entre os dedos, escapando como fachos de luz na janela. A energia era forte e surpreendente, e o teto, as paredes e chão racharam. Não, não só racharam, foram criados buracos fundos e negros.
Kai rolou mais uma vez, incapaz de conter o grito e a dor das mãos ao serem queimadas. Gritou e gritou, e a garganta do Kai observador doeu. Sentiu até mesmo o metálico do sangue.
Já haviam passados longos minutos e ele não entendia porque as criaturas esperavam e não atacavam. Até que ele, Kai observador, olhou para o centro onde a esfera de energia estava, e entendeu. Isso era um teste.
Erínias deveriam ser o ápice da força do caos, seres imprevisíveis e pouco amistosos. Impossíveis de serem lidos. Elas eram rápidas, e possuíam garras que não levavam somente carne, sangue e dor. Levavam vida, sugavam-na. Se quisessem, ele estaria morto. Mas elas aguardavam, esperando sabe-se lá o que. Bile surgiu na curva da língua quando ele entendeu o motivo. Não poderia esquecer, nem viver com isso.
Entrementes, o outro Stone não aguentou mais, e liberou a energia dos olhos. Elas sumiram num piscar de olhos, como o Firenze se gabou.
Não viraram pó, ou sequer gritaram. A única coisa que fizeram foi abrir os braços e jogar as cabeças para trás. Uma sensação de vazio inundou-o. Ele queria não ter entendido seus motivos. A ignorância deveria ser uma dádiva. Não foi a primeira vez que Kai tocou as pontas da solidão.
Ele era sempre o primeiro a saber. Quando seus amigos estavam entendendo o primeiro mandamento da arte da espada, ele já sabia cinco. Quando Gunter conseguiu conjurar a primeira bola de fogo, ele já podia criar várias chamas ao mesmo tempo. Quando Ardara aprendeu a cavalgar e portar um arco ao mesmo tempo, Kai já caçava sozinho sem a tutela de um mentor.
Tinha facilidade para aprender e melhorar o que aprendia. Houve um ponto em que nem precisava mais de mentores, e sentiu a distância afastá-lo dos amigos. Era chamado de aberração, de espertalhão. Nunca compreendido. Isso o impulsionava.
Mas que o impedia era o seu falso senso de dever com os Murphy; e sua idade. Ele achava que sua vida pertencia a eles, que deveria morrer em prol do sucesso dos Murphy; isso mudou tão logo quanto a vida de uma mosca: a perda do núcleo de mana. Esse foi o divisor de águas mor para Kai.
Escolheu viver sozinho, trilhando o próprio caminho e escolhendo as próprias batalhas. E nunca se sentiu tão só quanto no momento em que soube que deveria carregar mais, deveria carregar um peso e um fardo que não eram seus. E deveria controlar isso. O vazio era esmagador. Mas ele compreendeu o que deveria ser feito, apesar de isso não mudar o que sentia. Preferia não sentir; preferia ter continuado na cabana que Siobhan fez para ele.
Ao partir, sabia que seria assim, solitário, vazio, sozinho. Nem a presença de Fioled poderia mudar isso. Mesmo assim, um sentimento nunca foi tão bem aceito por ele quanto ali, naquele momento. No instante em que acordou e notou que mantinha a mesma linha de raciocínio de quando em sono. Estava fadado a uma vida que ele próprio trilhou. Não se arrependia nem tinha remorso, estava apenas sozinho demais para pensar em sequer sentir pena de si mesmo. E não sentiria, Kai Stone poderia ser chamado de qualquer coisa, menos de vitimista.