Volume 2
Capítulo 76: GUERREIRO TENAZ
Kai lutou para se recuperar do que quer que Kesel tinha lhe feito.
Seu chi se esvaiu rápido, e ele começou a ficar tonto, o ar lhe faltando. Sabia que tinha a ver com aquela doença fedendo a morte; aquele bolor que corria em seu sangue e impedia seus pontos vitais de revitalizar o chi.
Mas Kai nunca foi de abaixar a cabeça e se dar por vencido. Nunca morreria sem lutar, mesmo que uma série de coisas ruins tivessem acontecido com ele desde que viera parar ali. Desde que pisara fora de Algüros, na verdade.
Imediatamente Kai forçou-se a viajar pelas suas memórias, quando leu o livro que Mael tão prontamente lhe deu.
Ali, naquelas páginas gastas e amareladas pelo tempo, havia nada mais do que uma série de instruções básicas para um homem iniciar nas artes do chi. Sim, era tudo básico, e quase nada foi tirado de lá por Kai, exceto as instruções sobre como cultivar o chi.
Lembrou de um capítulo repleto de imagens, com as mais básicas instruções.
Tinha de remover o veneno do corpo, ou morreria. Mas a única técnica que conhecia era necessária um vasto e cansativo repouso.
“Tenho que tentar aquilo...” Pensou.
Durante sua reclusão nos salões Echanti, Kai teve muito tempo para pensar e se aprofundar no chi, e o livro não o ajudou muito. Mas ele teve insights, revelações, como se o chi estivesse o instruindo.
Esse mundo de habilidade era tão vasto, que ele sabia que precisaria melhorar se quisesse estar entre os mais fortes. Encontraria sujeitos com habilidades que o forçariam a usar técnicas distintas.
Ele desenvolveu uma técnica capaz de remover venenos durante uma luta. Não sabia se isso daria certo, e ficou claro que esta ocasião foi uma baita conveniência do destino. Mas não acreditava em destino, nem era de esperar para ver.
Se levantou, a mão apalpando o peito que não parava de sangrar, incapaz de pelo menos estancar o sangramento.
Dobrou os joelhos e afastou os pés, na largura dos ombros, apertando os punhos e flexionando os braços ao lado do corpo.
Visualizou o veneno no corpo, lutando para não perder o foco. Logo toda sua percepção do mundo sumiu. Era só ele, seu Tanden e o veneno correndo vivo pelas suas veias.
A ferida pulsava, mas nem isso o tirou de seu torpor. Usar técnicas do chi exigiam concentração, e precisavam de um controle emocional adequado. Kai se forçou a isso também.
Feito uma serpente, ele se dobrou e se flexionou, imaginando o veneno se esvaindo. Como se compreendesse o que ele queria fazer, o chi agiu feito um membro extra, expulsando o veneno. Mas demoraria muito, e ele sabia que Kesel não iria esperar.
Então Kai enrolou o corpo, mudando alguns movimentos, e concentrou a energia num único ponto. Viu que o veneno começara a ser remanejado para lá, mesmo que com muita resistência.
Quando o chi iniciou o processo lento e automático, ele voltou a si, um pouco menos doente. Infelizmente, ainda não conseguia controlar o chi duas vezes ao mesmo tempo no próprio corpo. Isto é, ele não era capaz de concentrar o veneno num ponto do corpo e, entrementes, estancar o sangramento no peito.
Pelo menos o veneno não mais o inviabilizava.
Um ruído distante o tirou de seu entrevar, e ele se colocou numa posição defensiva quando ouviu Kesel caminhar lentamente.
Surgindo de dentro da fumaça, O ministro caminhou lentamente, já não mais com o manto sobre o corpo. Usava uma armadura laqueada de cota de ligas de metais, dobrados um por sobre os outros, de cor ônix fosco. No meio do peito havia um grande amassado, com um fumegar ainda se erguendo. A máscara de raposa havia sido destruída, e raivoso, Kesel a removeu, sem aparentar qualquer dano à Rajada de Fótons de Kai.
Ele suspirou fundo e passou a mão enluvada pelos cabelos ondulados e negros, com algumas mechas albinas e pardas. Seu rosto severo era feio, com bubões e comichões em tom esverdeado, doentio. Somente seus olhos cor amarelo acobreado lhe davam um tom bonito em meio aquele bolor todo.
– Então sabe um truque ou dois, digno de um cão. – Ele cuspiu no chão. – Fiquei deveras encantado naquele momento em que mataste os Alquebrados sem remorso; à vista disso, vim com tanto entusiasmo a fim de lhe conhecer. Antes, o mataria rapidamente e fingiria um deslize perante Abeeku-kuär. Contudo, o que farei contigo... irei gostar, e terei cuidado para que não morra rápido demais.
Ele ergueu a mão enluvada e uma nuvem negra de mosquitos surgiu ao seu redor de algum lugar. Com um gesto da mão, a enorme nuvem, chiando e zumbindo, voou na direção de Kai, rápida demais para consumir e devastar tudo que estivesse à sua frente.
– Peste Negra – ele bradou.
Kai respirou fundo, ciente do que quer que aconteceria em seguida. Concentrou-se em seu Tanden. Era agora ou nunca, era certo que ficaria cansado mais rapidamente, mas tinha que dividir seu chi, ou só restaria seus ossos e mal.
Focou no chi imerso e dormente, esperando para ser acessado ao lado de seu ponto de pressão inicial, abaixo do umbigo. O uso excessivo de chi causaria uma redução da resistência, e se isso acontecesse no meio de uma luta poderia ser o fim. Mas não havia razões para ele se segurar, mesmo que perdesse um pouco do brio. Cada luta poderia ser a última, e se não desse o seu máximo, isso custaria sua vida.
Tinha de ter autocontrole, mas pra isso precisaria estar vivo. E havia toda aquela energia pulsando e latejando, querendo ser usada, querendo se apossar dele.
Mas as palavras tornaram a atormentá-lo. Aquele poder não era seu, e um pequeno deslize...
Kai enviou tudo isso para o fundo da mente, encaixotando numa urna, um objeto de estudo.
Chi foi liberado para criar um denso escudo de energia. Os mosquitos se chocaram contra ele, explodindo em nuvens de poeira negra.
Kai dispersou o escudo e avançou, executando um golpe novo. Seu punho foi envolto por uma densa aura azul, emitindo uma onda de energia que atingiu Kesel bem no peito, que recuou, alarmado.
– Doença de sangue – contra-atacou Kesel, fazendo brotar feridas em sua própria pele, ao longo de seus braços nus e rosto sorridente.
Foi a vez de Kai recuar, surpreso. As feridas inflamaram, tornando-se bolhas enormes. Kesel as estourou, lançando projéteis de pus e sangue.
Kai ergueu os braços e se envolveu numa pequena cortina de energia, não querendo usar mais do que deveria daquela energia misteriosa.
O pus atingiu seus braços e o campo ao redor, criando imediatamente imensos buracos na areia, devastando a pouca vida que ali havia.
Kai não foi capaz de escapar por completo do ataque. Tinha que se forçar a mais. Não era o suficiente.
Era mais do que o que ele poderia lidar. Já estava lutando para remanejar o veneno em seu corpo, e tentando estancar a ferida aberta em seu peito.
Atingido pelo pus, sua pele se abriu, como se veneno corroesse toda a carne. Kai urrou, mas concentrou o chi nos braços, uma forte dor de cabeça o inundando devido a alta concentração para se curar.
O chi cobriu a ferida, e ele expeliu o veneno recém lançado por Kesel.
A ferida ainda estava aberta, e Kai pendeu sobre um joelho, fraco.
– Doença de Sangue – disse Kesel, sorridente a uma curta distância. – Minha mais nova aquisição, criada por mim mesmo. Age em três estágios: a fase de contágio, que foi o que aconteceu agora, com o veneno se espalhando pelo seu braço. Agora vem a fase de incubação, onde a doença se desenvolve e causa uma dor intensa e muita fraqueza... He... em segundos estará implorando pela própria vida. A última fase é a de erupção, onde a doença explode em feridas sangrentas, consumindo sua vida.
Kai sabia que ele falava sério, e isso o irritou. Não tinha sequer causado dano no sujeito, e ele havia ficado irritado por causa de um pequeno ataque que mal surtiu efeito. Começava a sentir o cansaço...
– Mas como... – Kesel balbuciou, aturdido.
Ele não entendia como alguém que lidava com duas doenças de nível grave, com um rombo no meio do peito, mal conseguindo respirar, tinha força para se manter de pé, e executar aqueles movimentos.
Parecia uma dança, mas Kai, que se pressionou a se levantar, começou a fazer movimentos com os pés e as mãos. Respirou fundo, e lentamente sua pele começou a queimar, e fedor também subiu.
“Ele está expelindo o Tumor com alguma técnica absurda... isso é mais do que Abeeku esperava. Será que Licor se enganou sobre suas habilidades?” Pensou Kesel, boquiaberto pelo que Kai estava fazendo.
O veneno saia em forma de vapor por seu corpo, expelindo fedor e doença. Nem mesmo os poucos mosquitos aguentaram e caíram ao chão, mortos.
Batista observou a distância, tentando acordar seu colega caído.
Kai continuou os movimentos, como se fosse uma dança.
– É chamado de Postura da Águia – disse Kai. – Remove o veneno e amplia minha capacidade pulmonar. Sabe, já que começamos a falar sobre nossas habilidades, achei que não seria nada demais me gabar um pouco, também.
– E pensou que eu fosse deixar? – Indagou O ministro, fazendo surgir sua foice em meio a um vendaval negro.
– Ah, não. Espero que não se decepcione.
Uma veia saltou da testa de Kesel. Ele estava mais irritado.
– Me decepcionar com o que?
Kai abriu os olhos, surpreso. Estava entendendo algumas coisas. Uma densa energia e aura vazaram, chicoteando os cabelos d’O ministro.
“Ele...”
Kai adotou uma postura ameaçadora, e Kesel sentiu um calafrio.
Com agilidade e destreza impressionantes, Kai diminuiu o espaço, com o corpo ainda expelindo o veneno. Acertou um chute circular em Kesel, que mal teve tempo de erguer a foice em defesa. Lutas a curta distância não eram seu forte, mas Kai não tinha a ver com isso.
Kai forçou Kesel, que não era bom em artes, a se defender com o que tinha. Mas o que quer que ele fizesse, não era capaz de acompanhar Kai com seus chutes e socos rápidos, que mudavam de direção e não davam sequer uma abertura.
Somado a rapidez, havia a força, que aumentava a cada golpe. Kai socou Kesel em sequência, partindo da boca de seu estômago, subindo pelo peito e terminando no queixo. O toque entre suas peles causou comichões nos punhos de Kai, mas ele nem ligou.
Deu uma joelhada na costela d’O ministro, transferindo seu chi para o corpo dele. O sujeito cuspiu sangue, desta vez vermelho, e arqueou.
Kesel girou no próprio eixo, assumindo uma postura pouco convencional.
Trocaram golpes e socos, e de vez em quando Kesel soltava algum feitiço capaz de derreter Kai até os ossos. Mas o rapaz foi esperto em evitar, e começou a usar seu chi para uma luta um pouco mais distante.
O impacto dos socos causava barulhos altos, e enviavam Kesel longe; este já estava ficando bastante irritado.
Numa série de investidas que desestabilizaram a concentração d’O ministro, Kai agarrou seus cabelos, e logo feridas brotaram de sua palma. Então era como ele pensou: Kesel era inteiramente venenoso. Esse tipo de poder... era perigoso.
Kesel, cansado de apanhar, abriu a boca, irritado, e soltou um urro. Uma nuvem de gás venenoso e amarelado saiu da boca d’O ministro, consumindo Kai em dor e lamentos e morte.
Mas algo aconteceu, fora durante alguns segundos, e tudo fez sentido. Kai ainda segurava a cabeça de Kesel, virada para cima. Ele tinha uma breve sensação do que aconteceria, então largou a cabeça do sujeito e saltou para trás, envolvendo-se num escudo bem mais denso que o anterior.
Uma nuvem de gás venenoso saltou da boca de Kesel, dando-lhe segundos louváveis de descanso.
“Eu... eu acabei de ver o futuro...?” Ainda era incerto, mas ele soube que isso não estava certo, e que se continuasse a usar aquela energia...
Quando a energia se dispersou, Kai sabia o que precisava fazer. Mas foi pego de surpresa, se desestabilizando, por uma névoa tóxica conjurada às pressas por Kesel, envenenando o ar ao redor de Kai.
Kai sentiu seu chi se desestabilizar, mas manteve a calma. Ele se concentrou, lembrando de seu árduo treinamento, e agradecendo por algo que recebeu de Greylous. Essa foi a primeira vez.
Seu corpo se lembrava, os músculos mantinham uma lembrança celular de uma certa habilidade usada ainda em Bulogg. Kai lembrou da breve luta com Gh’varok e também agradeceu por isso.
Fora a primeira vez que bolara uma habilidade tão rapidamente, mas ele sempre foi bom em se adaptar e se modificar conforme o ambiente.
Kai sabia que não tinha as habilidades necessárias no momento, pois estava quase sem energia, e lutava pela sua própria vida. Em circunstancias normais, e para alguém tão conhecedor de seu corpo quanto ele, tal habilidade poderia ser mais destrutiva do que Kamaitachi.
Kesel sentiu o perigo iminente, e ergueu uma mão, com olhar intensificado e concentrou sua energia mágica.
– Desintegração Orgânica – gritou O ministro, ensandecido.
Uma luz escura emanou de sua palma, direcionada para Kai. A desintegração orgânica atingiu Kai, causando um dano extremo ao seu corpo, que mesmo com um manto de energia, não evitou que sua pele se rasgasse e queimasse.
Mas Kai resistiu bem, concentrando chi em sua mão. Ela brilhou intensamente, mais vividamente que a Rajada de Fótons.
Uma energia térmica concentrada foi liberada em forma de raio, explodindo tudo ao redor. Era mais destrutiva que a rajada, pois focava em atingir as células e moléculas.
A habilidade de Kai foi capaz de passar por dentro da de Kesel, anulando-a. Ao atingir o ministro, queimou-o severamente, deixando sua pele mais bolorenta que antes.
– Fornalha Interna: Explosão Exotérmica!
Kai sabia que Kesel não morreria somente com isso. O sujeito irradiou em gritos desesperados e estridentes, cada vez mais horrorizado com a própria imponência.
A onda de choque causada pela habilidade causava danos ao redor, desintegrando até mesmo a areia dentro de um raio de 5 metros. As roupas de Kai não pareciam ser imunes a isso, mas ele não se importou.
Kesel parecia resistir bem, criando um escudo sobre o corpo.
Ciente de que não poderia manter essa habilidade por muito tempo, Kai aumentou a intensidade, superpondo sua energia térmica ao escudo negro de Kesel.
O raio de destruição aumentou, pois Kai estava passando dos limites, mas ele não ligou para isso.
Kesel caiu de joelhos, gritando e totalmente incinerado. Estava inteiramente carbonizado, sem qualquer pelo no rosto, e rugas enormes de queimadura aumentando em seu rosto.
Suas vestes haviam ficado pregadas à sua pele, fedor de metal e pele sobrepostos um no outro.
Estava duro, sem se mexer, apenas a boca aberta e os olhos arregalados, encarando o céu.
A habilidade exotérmica de Kai cessou, e a tontura o invadiu. Ele viu sombras, mas não tinha certeza se isso era bom ou ruim. Se era real ou não.
Caiu sobre um joelho, sua visão tornando a ficar embaçada. Essa habilidade estava no nível de Kamaitachi, isso ele tinha certeza.
Enviou uma camada de chi, fina e fraca, em direção d’O ministro. Ele ainda estava vivo.
Instintivamente e obedecendo um comando inconsciente, Kai se ergueu com uma agilidade na qual não esperava manter.
Sacou a espada e desferiu um único golpe no peito de Kesel.
– Kama’i: Corte do Vento Divino.
Kai embainhou sua espada lentamente. Quando a lâmina sumiu em se casulo, dez cortes surgiram no corpo d’O ministro, jorrando sangue e um grito fraco e seco, a vida se esvaindo.
Kai desmaiou, mas ficou em pé, totalmente alarmado.