Volume 2

Capítulo 69: TRAÇOS BUCÓLICOS

Kai e Batista já estavam a passos distantes da antiga capital de Atom, Fireas.

Um rastro se erguia da cidade: verde-musgo sobre um vapor doentio, influenciado diretamente pelas flechas de Kai.

O ar pestilento se erguia como o chapéu de um cogumelo, infiltrando e inundando mais e mais seus arredores.

A própria cidade já não era vista aquela distância.

Subiram um montículo de terra macilenta quando Kai deu meia volta e tornou a encarar o local por qual passara.

Sua mente ia e vinha no mesmo assunto: os tais alquebrados, produtos de uma magia profunda e mística. Kai já havia lido sobre algo parecido, mas nunca se encontrara com algo do tipo. Era estranho, mas lembrava-se de alquímicos e homens que dedicavam a vida para tais tipos de experiencias, e pelo pouco que Batista falou do tal terceiro rei, deduziu que o sujeito tivesse maquinações ainda mais incabíveis. Arrepiou-se.

Mais por medo do que iria encontrar – fosse pelas cidades destruídas, fosse pelas criaturas que a destruição e a doença que o sujeito causou haviam deixado. Não medo por ele. Revolta. Ele soube.

Mas mais e mais a situação ficava agravante, e ele tinha uma sensação cingindo aqui e ali. Não era medo. Era como se estivesse à espera de que algo ruim fosse acontecer.

Kai nunca foi de ter tais sentimentos frívolos e infundados. Nunca foi um sujeito de muita estima para ouvir seus sentimentos nem o dos outros. Mas sabia quando algo de ruim consigo acontecia. Ansiedade. Era essa a palavra pela qual procurou a manhã – ou tarde, ou noite, quem saberia? – toda.

Seu olhar vagou por toda a planície, quilômetros e quilômetros de um simples nada, apenas o cogumelo venenoso pintando a imagem de uma cidade carregada de tristeza, dor, ódio, perda e descrença. Já havia sentido o gosto amargo daquilo. O fel se precipitando goela acima. O estomago ardendo. A nuca pinicando. Ansiedade.

– Apreciando tua magníssima obra de arte? – a voz de Batista veio em um tom glacial, irrequieto e pleno de um deboche incontido.

Kai se virou, pouco a vontade. Reprimiu a vil vontade de subir barranco a cima e encher o rosto do sujeito de tapas. Havia poucas horas que chegara a uma conclusão sobre ele, e não era boa. Decidiu que não gostava do homem.

– Ser um tremendo idiota está no currículo dos Firenze?

Batista se virou, irritado.

– Não fale do meu povo, Kaule! – Kai notou a sutil mudança. Kaule, não Gmri. Que havia mudado? Nem mesmo ele sabia a diferença das duas palavras, mas estava claro pela mudança de tom que era pejorativo. Ou ofensivo. – Tu não sabe nada sobre nós, sequer tem noção pelo que passamos... e agora destrói nossos monumentos...

Kai bufou.


– Não seja criança, imbecil – Kai subiu o barranco, se aproximando perigosamente. – Tudo aquilo já estava destruído, era isso ou nossas vidas.

– Pois que fosse nossas vidas! – Bradou o Firenze, jogando os braços para cima. – Não serão nossas vidas de qualquer maneira? Tu cravaste um alvo em minhas costas... em nossas costas.

Kai soube que não estava incluso em ‘nossas’. Era o tom. As coisas vinham mudando.

– Deixe de besteira, Batista! Sua preocupação são apenas algumas paredes pichadas?

– Pichadas? – Batista berrou, empurrando Kai com as duas mãos. – Lave a boca antes de falar da história viva, Kaule! Anos e anos, gerações e gerações, nossa riqueza, nossa natureza. Tudo perdido. Tu es apenas mais um arauto do Indigno, não é? Não ficaria surpreso.

Kai se aproximou.

– Se você usasse um mínimo do seu cérebro, lembraria do que você mesmo disse – ele dedou o peito do outro três vezes.

– E o que eu disse, rasgador de céus?

– Que nem mesmo Abeeku foi capaz de destruir aquilo. Nada seria capaz. Diga-me, quanto tempo faz que aquela névoa está parada ali?

Batista se virou para a cidade, irrequieto.

– Quase vinte anos...

– Pois bem! – Kai sibilou, chegando bem próximo do Firenze. – Imagino que com toda aquela combustão, muito gás e outros venenos foram usados na destruição da cidade. Se nem mesmo a névoa de um rei foi capaz de destruir sua preciosa história – repito! Se nem mesmo após quase três décadas, a névoa foi capaz de corroer aquelas construções, simples flechas não serão. Agora preste bem atenção: mostre logo a droga do caminho antes que eu perca a paciência e arranque sua cabeça fora, seu animal infantil de merda.

Batista deu um passo para trás, afetado. Sabia que vinha sendo um saco. Ele mesmo tinha se surpreendido com Kai Stone no início, com todos seus feitos, e até mesmo esteve inclinado a segui-lo, mas logo viu que o rapaz era um imbecil.

Isto é, na sua opinião, ele não tinha respeito algum por ninguém, nem mesmo pelas memórias dos outros. Agia sempre com o rei na barriga, como se fosse o invencível. Mas não era, ele lembrou. Não era. Quem era invencível não ficaria à beira da morte para simples Kawa Kale, apesar de ele mesmo não gostar de encontrar com os sujeitos.

Mas a opinião dele era essa; não gostou mesmo do Gmri, que agora era apenas o Kaule.

Contudo, mesmo com o ar irritante de superioridade, com aquele ar arrogante de esclarecido, Kai Stone provou o ser mesmo. Lembrou-se de palavras que nem mesmo ele Eliyahu Batista, o Firenze, lembrava ter pronunciado. Era algo bobo, mas que foi deixado para trás.

Kai passou empurrando o ombro em Batista e se distanciou mais e mais.

Horas se passaram e finalmente sentaram-se para descansar. Kai ficou bem distante de Batista, irritado.

Cansara do homem e sequer tinha o interesse de seguir viagem com ele. Mas necessitava de respostas, e sabia que o lugar para onde estavam indo as tinha. Quando finalmente ficou mais escuro, tanto que sequer viam a cidade e seu imenso chapéu de cogumelo, um vento arrebatou os cachos negros de Kai.

Mesmo de máscara, ele notou a imundície em si mesmo. Odiava sujeira, mas estava acostumado, vivendo essa vida de nômade.

Tirou de dentro das roupas um broche, cuja roxa cor bruxuleante reluzia mesmo a escuridão daquele outro mundo. Kai passou o polegar pela extremidade, tateando as linhas da linda Orquídea. Sua mente rapidamente vagou por Tir’Tegeirian. Parecia a um milhão de anos atrás.

Lembrou-se de Fioled, de como as coisas haviam acabado entre eles. Ela pediu que Kai ficasse; ele recusou. Ela disse que o amava; ele agradeceu. Uma triste história de amor não correspondido. Tudo o que Kai mais queria no mundo era ver a garota bem, mas não podia jurar um sentimento que não era capaz de sentir. Não podia. O respeito era válido.

– Parece distante – disse Batista, tirando Kai de seu torpor.

O rapaz suspirou guardando novamente o broche. Assentiu sem dizer uma palavra.

Mais algum tempo se passou e Batista tornou a falar.

– Como é nas tuas terras?

Kai não respondeu de imediato, mas podia ver, podia sentir o que o outro pretendia. Ele respirou fundo.

– Se isso for um pedido de desculpas, você é péssimo nisso.

– Eu... – Batista estava prestes a responder, mas parou abruptamente, baixando a cabeça. Alguns segundos depois, tornou a falar: – Sinto muito. Deixei emoções tomarem conta, fui irracional, e quase descontei em ti. É como disseste: aquelas estátuas dificilmente seriam destruídas por aquilo, e fui demasiado angustiado neste quesito. Obrigado por me salvar, e minhas sinceras desculpas.

Kai assentiu, limpando a garganta.

– Você é emotivo, Batista, e eu respeito isso, mas quando deixamos nossas emoções nos dominar... – Kai parou, lembrando-se de tempos atrás quando quase morreu por ser emotivo demais. Foi por uma boa causa. – Podemos causar a nossa morte, a morte dos outros ao redor. É perigoso.

– É demais para mim. – Revelou o Firenze. – Retornar a Fireas após longoo tempo é... é angustiante. Obscuro. Lembro-me como se fosse ontem e, ainda assim, como se fosse há cinquenta anos.

– Você era nativo de Fireas não era?

Batista alarmou-se.

– Como soube?

Kai limpou a garganta, buscando as palavras certas para dizer. Não queria se demorar demais numa conversa com um sujeito que pouco gostava.

– Sua cautela e delicadeza para se referir a Fireas; sou bastante observador, e seu tom quando falava a respeito da capital me pareceu como um velho homem que retornar para o casebre no interior cujo nasceu e cresceu. Nostálgico.

Batista assentiu. Mesmo na escuridão, Kai distinguiu os entornos do sujeito com seu sondar.

O homem pareceu lembrar de algo, tal e qual Kai lembrava-se há poucos minutos. Foi como se tivesse sido levado a outra época.

– Sinto-me agoniado e ao mesmo tempo irrefletido. Como se todo o sentimento do passado retornasse à minha memória, irrefreadas e incontidas. Pouco provável. Sinto-me compelido a dizer que estou afundando em profundezas noturnas e taciturnas. Eis o que são estes tempos: noturnos e taciturnos. Ainda que fossem dias de extrema beleza e riqueza, não para mim, mas para Fireas.

“Haviam grandes e imperiosas construções, e o tempo mudava, com cores destoando nos ares. Os campos que tanto caminhamos até agora eram repletos de coisas: desde cogumelos e terras prontas para cultivo, até construções e muralhas. Os prédios eram lindos; sempre à uma hora agradável, um gongo soava, o grande sino informando da mudança de ares.

“Então veio um dia caótico. Primeiro três trombetas soaram e um homem surgiu dos céus, todo branco, portando um arco e uma coroa flutuando em sua cabeça. Pensamos que poderia ser um enviado do deus cultuado nas cinco capitais; ledo engano. Uma única flecha dele foi capaz de exterminar metade de Umabel.

“Dois dias após a queda de Umabel, o sujeito apareceu em Mehiel e Nemamiah, mas nada fez. Apenas parou, observando enquanto outro surgia meio ao caos. Neste momento sua aparição em Umabel, e a relação com sua queda já haviam sido alertadas pelas capitais atonianas e Firenze. Contudo, o segundo homem foi descrito como vermelho feito sangue. Erguia uma espada voraz que queimava tudo. Destruiu ambas a Mehiel e Nemamiah após um dia junto ao seu exército. Um dia! Um único sujeito!”

Batista parou, como se a simples lembrança destes fatos causasse arrepios, acontecimentos imediatos, como se ontem tivesse ocorrido. Kai não duvidou que fosse isso.

– Então vieram os outros dois. – Sua voz tinha um quê de tristeza. – Tribeas foi engolida por uma escuridão perene, e ninguém nunca mais chegou a encontrá-la. Veio com um simples estalar de dedos. Fireas foi a mais afetada; pois aquele Voerg surgiu. Ele era maldoso, sem clemência. Destruiu Fireas, mas não num piscar de olhos. Ele nos aterrorizou, nos torturou... teria sido melhor ser engolido pela escuridão como Tribeas.

Kai observou, em transe.

– Os quatro reis – disse, sem prestar muita atenção.

– Os quatro reis! – Concordou Batista, a voz apreensiva. – Agora entende minha preocupação?

– Não tinham guardas, guerreiros, alguém que se opusesse a eles?

Batista se inclinou.

– Não entendes mesmo, não é? Podes ter a força que quiser, ser detentor de magias sobrenaturais e nunca vistas antes, mas não é páreo para os reis. Não é páreo para Abeeku. Eles são a força máxima, e o quanto antes entender, mais fácil será de sobreviver.

Kai guardou bem aquela informação. De repente ele soube algo mais sobre Batista: ele não era um guerreiro. Apesar de ter uma habilidade incomum, ele não tinha sequer capacidade de estar num duelo franco.

E talvez seu maior ódio fosse esse. Ver tanta gente morrer, tanta maldade acontecendo, e não existir ao menos uma pessoa que se opusesse, que acabasse com a tirania velada do Indigno. Desesperança.

Absorvendo cada parte da história de Batista, Kai permitiu que o silêncio se fizesse presente, parte por estar cansado de falar, parte por estar cansado de andar, parte por estar cansado de ouvir Batista se maldizer. Odiava autocomiseração.

O silêncio finalmente se instalou, Batista se calou e o sono veio.

Kai sabia que era um sonho, pois não lembrava de seu início. Tudo tinha um início, afinal. Nada aparecia em um lugar simplesmente por aparecer, pelo menos não magicamente. Mas era um sonho, veja bem.

Ele estava parado numa bela cidade, observando seus muitos prédios altos, e pessoas lindas, de diversas características passando. Isso não o atormentou. Sabia da singularidade de raças, mas esta era detentora de uma assimetria magnífica.

Todos portavam um ar de superioridade, ainda que, em seus rostos, fossem gentis e sorrissem, sem qualquer ar da patética característica convencida de que tanto Kai sentia repulsa.

Seus aspectos, isto é, seres magníficos, cujo Kai não conseguia nem distinguir uns dos outros. Sua cor de pele era o de menos, mas eles quase pareciam como humanoides feitos de elementos, do próprio vento, da terra, do fogo e da água. Mas a singularidade era extrema pois, mesmo assim, não aparentavam nenhuma dessas características.

Era como se estes elementos os acompanhassem e, ainda assim, estivessem distantes. Suas características, isto é, seus semblantes, mesmo diferentes, eram todos os mesmos: dúzias... dezenas, milhares, todos eles sem exceção, tinham peles peroladas e rostos esguios, aquilinos, que entravam em contraste com seus cabelos brancos feito espuma de mar, que flutuavam ao menor impacto de um vento doce e macio.

Kai sentiu tudo isso, e ficou em paz. Mas isso mudou.

Primeiro uma trombeta soou, alta e imperiosa, mais que aqueles seres transitando por aquela cidade evoluída e imponente. E foi assim que aconteceu em seguida: toda a cidade pareceu parar. Foi surpreendente, mas foi o que aconteceu. Tudo ficou em imenso silêncio. Sem o som de conversas distantes e em uma língua distante; sem qualquer sinal das risadas e de todas as engrenagens daquela antiga capital luminescente.

No alto do céu uma estranha criatura surgiu. Mas era ofuscado por uma luz própria. Então um segundo e meio depois uma flecha percorreu a distância entre o estranho órgão vivo abaixo e o ser não identificado pairando acima.

Houve uma explosão e, em seguida, uma fumaça. Uma risada soou e Kai viu símbolos pairando na sua frente. Viu quatro figuras, ouviu sete trombetas e chamas queimando intensamente, nunca se apagando.

“Nós fomos corrompidos, corrompidos...” Uma voz cheia de eco, como se várias vozes falassem umas por cima das outras, soou. Haviam vozes de crianças por cima de vozes de mulheres e idosos e vozes roucas afinadas em uníssono. Como ele conseguia compreender?

“Fomos dilapidados, reduzidos a pó, a átomos, irascíveis, sem direito a resposta, resposta...

E o mau há de engendrar-se cada vez mais nos solos dormentes e fiéis das crias de Avohai, de Turest-mar, a insondável e inescrupulosa mãe;

Pois os filhos da perdição macularam a terra fértil e inocente, semeando nossas raízes, como quem
fecunda e avilta gérmens vis e indignos.

Ó enviado do protetor, devolva à terra sagrada tua glória, iluminando o porvir, sem parcimônia ou necedade. Devolva a pureza de nossos caules... caules... caules...”

Caules... caules... caules...

– Kaule! Acorde!

Kai despertou e se assustou com sua situação; o chão se abrira num buraco com diâmetros espaçados. Ambos rolaram escuridão adentro, a gritaria de Batista uma doce cantiga matinal. Que belo trovador.



Comentários