Volume 2
Capítulo 68: FIREAS E OS ALQUEBRADOS
– Que merda é essa? – Kai indagou.
Diante dele, um sujeito muitíssimo parecido com ele, matava um Ednarg, num lugar exatamente igual. Ou ele estava ficando louco ou tudo isso era uma loucura, ou eles estavam a pregar uma peça nele.
– Eu falei que era bem mais fácil mostrar do que falar.
– Isso não é só mostrar... isso... isso...
– Eu sei. Mas acredite, tenho lembranças de minha infância, essa pintura sempre esteve aí. Para os atonianos e para os Firenze, as pinturas são uma forma de escritura, de passar o legado, a história. Não brincaríamos com algo tão importante.
Kai se aproximou, erguendo uma mão, claramente afetado.
– Sou eu?
Batista deu de ombros.
– Quem sabe? Apesar de raros, matadores de deuses já passaram por estas terras. E sempre foram uma espécie de bom agouro, Gmri. Agora entende a razão e a importância de você se encontrar com o sacerdote? A importância das escrituras, das pinturas. É uma enciclopédia viva. Mesmo que tenha tentado, Abeeku não foi capaz de execrar isso. O resto de nós ainda vive. Nem mesmo os feitiços malditos e procrastinadores do terceiro rei foi capaz de destruir a história viva. Eles vivem tanto nestes escombros quanto em nós. É nosso orgulho, nossa honra. Agora vamos.
Enquanto o sujeito dava as costas, Kai observava os detalhes minuciosos, gravando cada partícula daquela pintura em sua mente. Nunca a esqueceria. De repente um medo aterrador o envolveu. Medo do desconhecido. Que mais que essas pinturas revelariam? E se fossem todas uma trajetória do futuro dele?
Entrementes, partes das canções cantadas por aquelas criaturas luminosas surgiu em sua mente. Heróis milenares, arauto das dores, o enviado pelo redentor. Tudo isso era demais para ele.
Kai nunca acreditou em destino. Não era algo que se fizesse presente no livro de crenças dele. Mesmo após Mael esclarecer algumas coisas, como por exemplo os vários caminhos do homem, principalmente daqueles com uma missão, o dom, e que a escolha de qual caminho seguir era subjetiva, não algo definido.
Mas uma coisa era fato: as pinturas falavam sobre um passado que tornaria a se repetir no futuro, ou falavam sobre um futuro que se repetiria muitas vezes em um outro futuro?
– Quem as fez? As pinturas? – Indagou Kai.
Batista parou o passo, e o vento soprou suas vestes. Ele tornou a caminhar para perto de Kai, encarando a imagem riscada na pedra gasta.
– Não sei. E não tente tirar a verdade de mim, esta é minha única verdade. Nunca me foi dito e, agora que você fala, parece que foi criado uma espécie de proteção acerca da criação destas pinturas. É algo que você pode perguntar ao sacerdote.
Kai se virou para Batista, um tanto irritado.
– Parece que você confia bastante nesse tal sacerdote. Você o idolatra?
– De maneira alguma! – Rebateu o Firenze. – Ele é apenas o homem que nos deu uma chance, que nos permitiu viver um pouco mais, mesmo que escondidos. Ele avisou que algo de ruim aconteceria, e eles sabiam, mas resolveram confiar na própria força, na proteção do ser místico. Tolos... tolos!
– Esse seu sacerdote segue a mesma religião, não é?
– Sim... por quê?
– Você não percebe a ironia dos fatos, Eliyahu. Tem contigo um ódio por atonianos, pelas escolhas deles e, principalmente, pela escolha de servirem um deus místico, que virou as costas para eles quando mais precisaram. E agora me revela que seu sacerdote, o homem que deposita tanta confiança e fé, é um seguidor de tal deus, e se não for muito para deduzir, quem sabe é dele que advém suas habilidades de advinha. E cá está você, seguindo à risca tudo que este homem diz, mesmo odiando o deus e a fé... a religião. É curioso. Irônico.
– Não se engane. Odeio esta fé cega e sem escrúpulos, sim, mas a única razão de fazer o que faço é em consideração ao sacerdote.
– Então admite que o deus existe?
– Nunca disse o contrário. Minha reversão para com ele é exatamente esta: ele existe e permitiu que seu próprio povo perecesse. Permitiu e não estendeu a mão. Ele foi omisso. E eu o odeio. Não tenho fé nele, nem acredito que tudo isso possa fazer parte de algo maior. Tenho plena convicção de sua existência, mas para mim é nada mais do que um psicopata, um titereiro, um jogador de chaturanga barato.
Mais e mais Kai percebia as razões e os motivos de Batista. Ele parecia um sujeito amargurado, apesar de não poder negar a força dos ‘presságios’ de seu sacerdote e até da força das pinturas, fazendo de tudo para que se concretizasse.
Eliyahu Batista nada mais era do que um homem realista, alguém que não tentava ir contra a verdade, e até aceitava ela. Mas tinha suas próprias crenças, seus próprios motivos.
– Você diz que esse tal deus é um titereiro. Então admite que você mesmo é uma marionete, não?
Batista se virou, pouco confortável. Ele passou um longo tempo encarando o chão, depois se virou para a parede e, por fim, para Kai.
– Todos nós somos, Gmri, até mesmo você.
Kai deu de ombros.
– Isto nunca me foi um motivo de dúvida.
– Que bom. Torna as coisas mais fáceis.
– Mas e você? Não fica incomodado com isso? Em ser feito de marionete e, mesmo tendo plena consciência disso, aceitar a vida como ela é.
– Sou um Firenze, uma raça que mais sofreu na mão de Abeeku, até mais que os atonianos.
– E o que isso quer dizer?
Batista se aproximou, inclinando a cabeça.
– Sei minhas origens e raízes, e é por isso que nunca mais voltarei para elas.
– Mesmo que isso signifique ir contra sua fidelidade ao sacerdote?
Batista pareceu pego de surpresa, e isso foi meio confuso até para Kai. Ele não tinha pensado por esse lado. Isto é, seu ódio por tudo o que Abeeku representava era imenso, mas e quanto ao tal deus? A divindade.
O Firenze tinha uma grande quantidade de ódio em si, e isso era evidente a cada alerta e acusação de Kai.
Ele se empertigou e se virou.
– Vamos, Troas ainda está longe.
Quanto mais adentravam na cidade mais ficava evidente para Kai como ela deve ter sido imponente. Fosse pela qualidade dos materiais, fosse pela miríade de suas cores. Mas o fato é que eram lindas construções, onde mesmo os escombros e os restos mantinham o detalhe e a particularidade.
Há quanto tempo o lugar estava assim? A névoa parecia encobrir tudo, e Kai não conseguia sondar com seu chi. Era como se a energia fosse ofuscada por algo.
Batista entrou em vielas abandonadas e em passou por ruas largas e estreitas. Todas da mesma maneira: destruídas e aos pedaços.
Numa das sondagens de Kai com o chi, ele notou uma presença. Virando-se rapidamente no eixo e agarrando o cabo da bengala, apertou os olhos.
– Batista, há algo de estranho.
Ouviu o sujeito se virar logo atrás e suspirar.
– Deve ser algum bicho.
Kai ergueu uma sobrancelha. Eliyahu falou que a cidade exalava uma espécie de névoa queimante e alucinante. Como algum ‘bicho’ poderia existir ali? Como poderia sobreviver?
– Muitas das criaturas ciscas são cegas e se movem através da força das tempestades. Por vezes se perdem e acabam vindo parar aqui. É raro apesar de comum.
O rapaz ouviu a explicação, mas alguma coisa dizia que era mais do que uma criatura cisca. Ele tinha tido essa sensação antes, quando enfrentou um Bulgu. Era um arrepio, como se o perigo espreitasse. Fechando os olhos, respirou fundo e liberou seu chi.
A aura saiu em espécie de onda, de sonar. Tudo estava escuro, mas ele conseguia sentir, ter noção de tudo ao redor. Uma casa toda destruída à direita, um beco interditado por escombros à noroeste, outro beco cheio de...
Abrindo os olhos rapidamente, Kai sacou a espada e se virou para Batista.
– Não sei o que são, mas são muitos, se prepare.
Quando calou a boca, teve a ligeira impressão de que deveria esquivar para o lado. Não. A impressão só surgiu após ele ter pulado.
Ele rolou e se levantou, a espada em mãos. Uma criatura parecida com um caranguejo surgiu. Não... era diferente. Podia ser humanoide, mas estava toda maltrapilha e sua pele toda queimada, em carne viva. O rosto era largo, lembrava um pouco um equino, e tinha um porte físico atlético. No entanto, parecia totalmente incapaz de gerar pensamento, consciência.
A criatura gritou, e vários outros surgiram.
– Abeeku... reis... atom... rainha Althama... salve-nos...
– Carne... comida...
– Cheiro bom... carne boa e limpa... vida...
Meia dúzia de criaturas apareceram sibilando e sussurrando palavras à esmo. Kai se virou para Batista, correndo até ele.
– Que diabos são essas criaturas?
– Droga! – Gritou Batista. – São alquebrados... fiéis remanescentes da antiga fé de Atom. Foram tão expostos ao veneno do terceiro rei que se tornaram uma outra coisa.
– Pensei que a cidade fosse fantasma. – Rosnou Kai.
– Não lembro de ter dito isso. – Rebateu o Firenze.
– Você não me disse muita coisa.
– Não seja ingrato! Eles não eram tão importantes assim para que eu lhe contasse. E se você não tivesse se demorado tanto nas pinturas já estaríamos fora de Fireas.
– Ah! Agora a culpa é minha? Você é que é um imbecil. Tsc! Como os derrotamos?
Batista balançou a cabeça.
– Não pode fazer mais daquele corte invisível?
– Acha que tenho uma fonte inesgotável de energia?
Enquanto conversavam, o primeiro alquebrado que surgiu avançou, berrando aos quatro ventos.
Kai notou que a névoa ao redor dele era expelida, e achou isso um tanto curioso.
O alquebrado abriu os braços, e teve um deles decepado por um giro hábil de Kai. Um corte limpo e seco, que sequer sangrou. A criatura olhou para a ferida e urrou, batendo os dentes podres.
Kai suspirou pela boca e sugou o ar pelo nariz. Com um novo inflar de pulmões, apertou bem o cabo da bengala e um segundo mais tarde balançou-a horizontalmente, com toda a calma do mundo.
O alquebrado parou de gritar no momento em que sua cabeça pendeu para frente e o corpo caiu para trás, duro, levantando poeira e névoa.
“Como ele consegue esse nível de corte limpo com apenas um golpe? É a espada?” Pensou Batista, retirando o porrete.
Balançou-o a frente do corpo e atingiu em cheio o peito de um alquebrado. A criatura deu dois passos para trás e sibilou.
Vendo que seu golpe não causou efeito algum, segurou o cabo com as duas mãos e girou-as em sentidos contrários. Instantaneamente partes pontudas surgiram por toda a extremidade grossa. Não só isso, o porrete se alongou, transformando-se numa borduna, com cabo longo.
Ele olhou para o lado de Kai e viu o rapaz indo para cima de dois alquebrados bem maiores que ele.
“Que homem insano! Isso é coragem ou bravata? Não... ele sequer liga para o tamanho do inimigo, isso significa que confia em si mesmo!”
Totalmente alheio aos pensamentos de Batista, Kai desviou de um alquebrado passando a espada pela barriga dele. Haviam muitas aberturas, que ficavam evidentes a cada ação das criaturas. Para Kai eles tinham apenas força e estatura, e o fato de terem sido fiéis em sua vida anterior frisava o fato de que não tinham qualquer habilidade.
Desviou de um agarrado e enfiou a espada até o cabo no peito do alquebrado. Ele berrou e o sangue verde escorreu pela lâmina, chiando. Naquele momento Kai soube que não deveria entrar em contato com as criaturas.
Num instante estava perfurando o alquebrado, no outro era arremessado para cima. Foi pego pela gola por um outro alquebrado e jogado longe. Sua espada ficara fincada no corpo do outro, que permanecia vivo.
Enquanto no ar, ele observou o embate logo abaixo. Havia dois alquebrados mortos e outros quatro se precipitando para Batista. Mas o que chamou a atenção de Kai foi a estranha sensação de ser observado. Com a névoa, era impossível saber quem era, mas havia alguém, e estava só observando. Observando.
Kai se ajeitou no ar com uma pirueta e flutuou um pouco. Resgatou seu arco e uma flecha. Encarou bem o entorno dela, e seus olhos pousaram sobre uma runa. Imbuiu chi nela, e a runa acendeu. Em seguida colocou a flecha no arco e puxou a corda.
Enquanto ia em direção ao chão, notou tudo contra ele. O vento vindo em sua direção, que poderia diminuir a velocidade da flecha, a névoa que dificultava a visão, e até mesmo a máscara que impedia uma melhor visão. Mas ele tinha o chi, e isso foi o suficiente para que pudesse relaxar.
A flecha foi imbuída com chi, para proteger contra o vento batendo em sua direção. Então tudo ficou calmo e silencioso. De repente Kai estava nos jardins dos Murphy novamente. Matando um cervo e se retirando para os salões a fim de ouvir histórias ruins, piadas péssimas e bêbados cheios de si. Era bom.
A flecha foi lançada, indo numa rápida velocidade em direção de Batista.
Nesse interim, Kai sumiu e surgiu diante de Batista, que deu um pulo para trás, alarmado. O rapaz agarrou a gola do Firenze e se trouxe ele para perto.
– É bom que use aquele seu truquezinho de novo.
Batista assentiu e agarrou os braços de Kai. Ele parecia bem cansado, mas o redemoinho surgiu quase instantaneamente. Ambos foram engolidos e surgiram a mais de meio quilômetro dali.
Segundos após caírem num local sem névoa, uma explosão ao longe surgiu. E uma seguida da outra. Foi mais de meio minuto de explosão, com ondas vindo até eles.
Batista caiu ofegante.
– Que diabos você fez? A névoa era inflamável. Mais de mil anos de história... perdidos.
Kai colocou o arco nas costas.
– Cai na real Eliyahu. O lugar estava inabitável e vai continuar assim pelos próximos mil anos. Agora levante, temos que seguir viagem.
Desacreditado, Batista se levantou e encarou as explosões que finalmente haviam cessado. Um rastro de fumaça e névoa se ergueu.
– Praticamente assinaste um alvo em nossas costas. Agora eles hão de marchar até aqui.
Kai deu de ombros, limpando toda poeira de seu corpo.
– Antes tarde do que nunca.
Batista diminuiu o espaço, agarrando Kai pela gola.
– Ele irá nos dizimar, seu imbecil. Você poderia ter acabado com todos eles de um jeito simples e cauteloso, mas destruiu metade de uma cidade abandonada. E o maldito tem olhos em todos os lugares... isso é uma sentença.
– Quem está comedido agora, hã?
– Vá para o inferno!
Batista empurrou Kai e se adiantou para soca-lo. Kai desviou e deu um rapa nas pernas dele, que caiu feito bosta no chão.
– Deixe de ser criança e vamos embora.
Eliyahu se ergueu, irritado, e limpou as vestes. Passou por Kai e esbarrou em seu ombro. O rapaz não deu a mínima e pôs-se a segui-lo.
Distante dali, no outro lado da cidade, um sujeito sob um manto negro pousou lentamente sobre um prédio todo destruído. Retirou o capuz sobre sua cabeça e revelou uma máscara branca de porcelana com traços simples ao redor do rosto. Havia fendas para os olhos, que estavam totalmente ocultos.
O sujeito observou a cena abaixo: uma grande cratera e uma destruição em massa a partir de um certo ponto. Não restara nada.
Mas ele observou tudo, desde o momento em que dois viajantes entraram na cidade, foram atacados por os malditos alquebrados e um deles, o mais franzino, causou toda a destruição de agora.
Seus cabelos negros ondularam sob o vento uivante. A névoa não chegava nem perto dele.
– Hohoho! Parece que teremos mais diversão daqui pra frente. E ele ainda notou minha presença. Que interessante.