Volume 2

Capítulo 66: NOTA MENTAL: MATAR ENCANADORES DESLEIXADOS



Kai sentiu o baque do golpe. Muito chi foi preciso naquele único corte. Seu golpe mais poderoso: Kamaitachi.

Ele comprimia uma grande quantidade de chi num único ponto, criando um revestimento natural de energia vital em volta da lâmina. O fio tornava-se tão afiado que o próprio revestimento ficava invisível a olho nu. Quando balançava sua arma, um corte limpo e seco, tão afiado quanto a lâmina, era formado. Deste modo, o inimigo era incapaz de enxergar ou notar o golpe. Uma lâmina enorme de pura energia, talvez até mesmo com traços da magia elemental do ar.

Mas era óbvio que um poder tão abrasador, ainda em seus estágios primordiais necessitaria de tamanho esforço. Kai tinha acabado de cria-lo. Sequer o controlava direito. Sequer o controlava. Era necessário grande concentração para não perder o foco. Ou a energia acumulada voltava para o mundo, e o golpe não teria efeito algum.

No entanto, sua habilidade anterior como Manipulador de Mana foi um grande diferencial. Kai sabia o básico. Melhor, Kai sabia tudo o que precisava fazer e não fazer para controlar a própria energia. Ser um Manipulador de Mana era algo muito mais complexo do que apenas manipular mana. Era preciso o dom.

Kai respirou fundo enquanto a grande criatura caía lentamente, estrondando ao redor. Ele se apoiou em um joelho, a respiração voltando vagarosamente ao normal.

Antes que pudesse pensar em alguma coisa, ergueu-se, girando no próprio eixo, e erigiu a espada, em defesa.

O sujeito que o ajudou antes surgiu de repente, descendo um porrete sobre a cabeça de Kai. Faíscas saltaram diante do atrito entre as armas. A sobrancelha de Kai se ergueu.

Ele pressionou a lâmina para frente, contra seu oponente. A verdade é que ainda se recuperava do esforço da luta contra o monstro de antes, e sua respiração ainda não tinha voltado ao normal.

Kai inspirou fundo, o ar se tornando o combustível mais fiel de seus pulmões. Uma nova onda de entusiasmo inebriou-o.

Ele diminuiu espaço, dando golpes firmes e estocando rápido contra o outro que mal teve tempo de reagir. Logo o porrete voou para longe e Kai tornou a erguer sua espada. A ponta de sua lâmina encostou no queixo do sujeito. Ele levantou as mãos, aturdido e ofegante.

Aw söde ma mt’eri – disse, calmamente. – Não sou seu inimigo.

Kai franziu o cenho, surpreso por ele saber falar a língua universal. Mas se ele sabia a língua, queria dizer que Kai ainda estava em Reiqin. Ou não.

– Não foi o que pareceu.

O sujeito deu de ombros.

– Busquei testá-lo, Gmri, e admito que fui tolo.

Kai sorriu ironicamente.

– E então? Conseguiu o que queria?

– Decerto que sim. – Ele inclinou a cabeça numa mesura pouco formal. – Poderia baixar a lâmina? Me sinto pouco confortável.

Kai sorriu, regularizando sua respiração.

– Decerto que não. Me sinto pouco confortável.

A lâmina de Kai avançou um pouco mais, e ele notou a sutil mudança do outro, indo de calmo para impaciente. Qual era o motivo?

– Não sou uma ameaça, Gmri, ou não teria lhe dado a chance de vencer o Ednarg sued ad arret. Teria matado aqueles outros e ficado com os espólios para mim.

– São muitas probabilidades, mas todas no passado – Kai observou. – E se eu tivesse conseguido me livrar de seus amiguinhos sem ajuda alguma? E se eu houvesse sido comido pelo seu tal “Eduardo”? E se eu arrancar sua cabeça? Vê? Posso criar uma para o presente.

O outro deu um passo para trás, a respiração ficando mais alta.

– Decerto que sim..., mas não seria apropriado.

Kai o olhou dos pés à cabeça. Ele usava exatamente a mesma roupa que os homens de antes, só que mais surrado e com uma pequena diferença na máscara. Ela era pontuda na parte da frente, e havia fendas para os olhos, apesar de Kai não conseguir enxerga-los. Era um pouco maior do que Kai e seus ombros eram largos.

– Comece a falar antes que eu me zangue. Por que está tão impaciente? Parecia bem animado há uns minutos.

O outro balançou a cabeça.

– Se tivesse uma espada matadora de Ednargs apontada para sua cabeça, entenderia minha hesitação. Não sou uma ameaça, Gmri.

Kai assentiu e baixou a espada, respirando fundo.

– Espero que não.

Ele tentou analisar a situação de modo mais frio. Isto é, sua respiração se estabilizava, e a emoção não tentava tomar o controle a todo momento.

Haviam duas possibilidades para que o homem tivesse o ajudado: 1) a criatura era tão perigosa que ele queria salvar a si mesmo. Mas para isso deveria ter uma noção básica da força de Kai, e matar aquele sujeito antes não foi uma demonstração suficiente.

2) Ele era forte, mas queria testar os poderes de Kai, e saber qual o nível de sua força. Para as duas ocasiões, ele deveria ter uma noção básica de quem era Kai, do porquê ele estava ali, quem estava por trás disso e qual era seu objetivo principal. Havia um, é óbvio. Ninguém ajudava ninguém sem um motivo por trás.

A segunda opção era mais interessante, principalmente pelo fato de o homem tê-lo atacado segundos antes.

Hesitante, o sujeito caminhou até o monstro, que espasmou.

Um assobio.

– Foi um corte limpo mesmo – ele se virou, como se conhecesse Kai há anos. – Os Kawa Kale matariam pra ter acesso a isso.

Ele enfiou a mão dentro das vestes, o que atraiu a atenção de Kai. Ele puxou-a para fora lentamente, a fim de mostrar uma adaga. Ergueu a mão e tirou um grande pedaço do corpo do Ednarg. A lâmina fatiou mais duas ou três vezes, e ele guardou tudo consigo.

– Ednarg sued ad arret. – Ele exclamou. – Espíritos da terra e do ar, seu corpo tem a capacidade de alimentar uma família inteira por anos.

Kai guardou a espada e caminhou até suas coisas, que estavam jogadas pelo chão. Catou seu arco, suas flechas e sua bolsa. Após colocar tudo no seu devido lugar, virou-se para o sujeito.

– Corta o papo furado. Por que estou aqui? – indagou, a cara séria fitando o outro.

O sujeito se virou, inclinando a cabeça.

– Não vai nem perguntar o que são os Kawa Kale, a razão de eu tê-lo ajudado ou onde está? Ou quem sou eu.

Kai ergueu o rosto, um tanto irritado. Não gostava que o fizessem de bobo. Pior que isso, não gostava quando o tratavam como um.

– Estou em alguma dimensão abaixo da que estava antes. Os Kawa Kale devem ser os idiotas que foram mortos pela criatura, e a razão de você ter me ajudado está ligada à minha pergunta. Por que estou aqui?

O sujeito bateu palmas, assentindo freneticamente. Mas ele não parecia nem um pouco abalado, apesar de Kai não conseguir ver seu rosto.

– Suas respostas hão de serem respondidas, Gmri, no momento que precisarem ser respondidas. No entanto, tenho que leva-lo à um lugar.

Kai suspirou.

– E se eu não quiser?

O outro sujeito assentiu, sabendo que essa era um resposta pouco bem-vinda.

– A decisão é sua, tens o direito de ir e vir. Contudo, deve inteirar-se de que três tropas de Kawa Kale diminuem um espaço nomeado de Campos dos Asfódelos neste momento, tendo este como destino final. A motivação é única que não outra: sua aparição, cuja causou um impacto grande o bastante para ser visto nas quatro vastas terras. Perceba que não serão os únicos e que não hão de descansar até que tenham aquilo que desejam possuir; e tenha a plena certeza de que colocarão os quatro reis para marcharem atrás de ti e de teu rastro – e, indubitavelmente, não importa o tamanho de sua força, eles conseguirão o que querem. Dessarte, hei de realizar um questionamento: vem comigo ou prefere ficar?

Kai olhou adiante, sabendo que poderia ser um blefe. Mas como seu chi ia lentamente voltando ao normal, notou as sutis mudanças no ar. Encarou o homem, tendo a breve noção de que a situação não poderia ser tão ruim quanto aparentava.

De fato o único que não apresentou hostilidade fora ele, e se os tal Kawa Kale eram tão ruins quanto aparentavam ser, Kai não queria esperar para ver.

– Me fale desses sujeitos – disse Kai, trocando o peso de uma perna para outra.

– É como eu disse, a resposta será-

– Não me venha com estupidez. – Atalhou Kai. – Abre logo o bico.

O outro assentiu, pouco confortável.

– Kawa Kale são mercenários das terras infindas contratados pelo rei Abeeku Khan.  

– Então qual a razão para quererem tanto a mim?

– O trabalho de mercenários é esse: pegar tudo que aparentemente tenha valor para si, e quando aquele algo revida, eles destroem.

Kai assentiu, se lembrando das duas ocasiões em que enfrentou mercenários. A primeira vez foi nos salões dos Murphy, e a segunda em Bulogg, quando eles mataram metade de uma tribo vitanti.

– Os Kawa Kale tomam e destroem tudo que se opõe ao império de Abeeku, que é conhecido por seus leilões de pessoas e coliseus espalhados pelo império. Você provavelmente seria levado a esses leilões e seria vendido antes mesmo de Abeeku saber quem você é.

Kai notou a sutileza no fim da frase, quase como uma mensagem subliminar, algo escondido, a intenção lutando para se enfiar mais e mais no âmago do outro.

– Você não parece gostar muito do seu rei.

– Ele não é meu rei! – O sujeito gritou, a voz ficando mais serrilhada. – Abeeku é a personificação de tudo que é mau e ruim neste mundo, e seus Kawa Kale são a pequena extensão de tudo o que ele é capaz de fazer.

– Bem, você se veste como os Kawa Kale... – Kai observou.

– Abeeku não é meu rei. Visto-me assim simplesmente pela sobrevivência, mas não sou como aquela escória e muito menos um seguidor do rei indigno.

Kai assentiu. O outro pareceu se acalmar.

– Entendi. E não vai me contar o porque de eu estar aqui? Me parece que esse tal Abeeku tem um interesse por mim.

O outro inclinou a cabeça, prestes a dizer algo, mas tornou a assentir. Olhou para o ednarg e de volta para Kai.

– Eu perguntaria como você concluiu isso, mas aparentemente tua habilidade de entender a situação nos mínimos detalhes é enorme. É como diz: Abeeku quer tudo aquilo que seja novo e interessante para si, e tu não foge do padrão. É forte; e quando os Kawa Kale chegarem aqui, trarão mais dos seus para pegar o sujeito que matou um Ednarg.

Ele olhou para a criatura que parara de espasmar e depois para o céu. Sua atitude tornou a mudar.

– Matar um Ednarg sued ad arret! – Ele tornou a exclamar. – Orimá! As palavras estão se cumprindo pouco a pouco, e o tempo há de dizer quem é quem tal e qual os ventos sussurram as verdades reveladoras do mundo. Adiantemo-nos! A viagem é longa e cansativa, temos pouco tempo.

– Eu não concordei em segui-lo.

O outro virou-se para Kai com a rapidez de um gato selvagem.

– Tuas respostas serão respondidas em breve, mas necessito que venha comigo. O grande sacerdote há de dizer e predizer todas as tuas conquistas e o futuro provedor que o aguarda.

– Há perguntas ainda não respondidas... como devo chama-lo?

O outro deu um pulo, muito mais amigável que antes, e caminhou até Kai.

– Que cabeça a minha! Chamo-me Eliyahu Batista, o Firenze. Vamos, não há tempo a perder.

– E para onde seria, Eliyahu?

– Troas, o reino escondido. E por favor, chame-me apenas de Batista. Vamos, não há tempo para...

Uma enorme explosão surgiu não muito distante deles.

Kai e Batista se viraram, assustados. Uma imensa tropa se adiantava para eles, e destruíam tudo o que tocavam.

Batista correu até Kai e tocou em seu ombro.

– Não queria fazer isso, mas se fez necessário.

Kai olhou para trás bem a tempo de ver o sujeito esticar a mão para cima e entoar um cântico. As mesmas vozinhas de antes começaram a soar e, para espanto de Kai, as mesmas bolinhas luminosas.

Então Batista tinha algo a ver com a presença de Kai ali. Mas antes que pudesse pensar em dizer algo, a voz das criaturinhas soou em seus ouvidos.

Mere-lere-lou!
O Herói Milenar despertou!
Venham aos campos agora
Mostraremos nossa esmagadora vitória.

Não se sinta discernido,
O outrora mundo distante
Aquele destemido
O irreparável destino de antes.

Os versos não fizeram sentido e a cabeça de Kai rodou. Eles foram sugados para o chão, numa espécie de redemoinho antinatural. O ar faltou nos pulmões de Kai e, antes de apagar, fez uma nota mental de nunca mais entrar em lugares como aquele. 



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