Volume 2

Capítulo 65: CORTE AFIADO DA DEUSA DONINHA

 

Tudo girava e perdia o foco. Kai tentou acionar seu chi, mas os objetos luminosos ao redor de si não permitiram.

Ele se tocou que estava diminuindo e não o contrário, pois cada vez mais ia se aproximando do chão, ao passo que ia ficando mais distante do mesmo.

Por um tempo que não soube determinar, ficou apagado, e quando tornou a si, os céus se partiram como se tivesse sido rachado.

Os objetos luminosos ao redor dele sumiram e, em contraste, tornou a acessar seu chi. Sua respiração ficou pesada, com a velocidade em que caia.

Era estranho, mas sabia que tinha parado de diminuir, pois não sentia a sensação estranha pulsar por todo o corpo, como se fosse forçado a crescer antes da hora. Na verdade, fora forçado a diminuir.

Kai envolveu o corpo inteiro com chi, mas a velocidade da queda foi muito grande. Não conseguindo voar, ele caiu no chão formando uma imensa cratera. A zoada foi demais até para ele, que ficou com enxaqueca.

Respirou fundo e notou o ar faltando em seus pulmões.

“Mas que droga é essa?” pensou ele.

Chi fluiu por suas veias, lutando para bombear seus pulmões, e sua respiração se regularizou por ora.

A poeira baixou ao passo que ele lutou para subir pelas laterais da cratera que se formou sob ele. Mas seus pulmões arderam, gritando de dor. Ele fez uma careta e se curvou, tentando novamente regularizar, mas desta vez foi pior.

Cuspiu um punhado de sangue, e sua cabeça girou. Numa hora pra outra ele estava caindo de novo no chão e lutando contra a própria respiração. Que diabos era isso? Estava sendo devorado pela mudança de ambiente, nem a aura opressiva de Bulogg fizera isso nele.

Mas buscou se acalmar. Um dos principais pontos de controlar o chi era a calma, já que a respiração era ponto chave dessa habilidade. Então ele fechou os olhos. Não é como se perdesse a calma facilmente.

Ainda deitado, fazendo o mínimo de esforço para não desperdiçar ar e ficar tonto novamente, atentou-se em perceber as sutis mudanças do ambiente.

Ele não precisou de muito pra perceber que a massa era o principal causador disso. Faltava gravidade. Gravidade, Kai, gravidade.

Era por isso que sua respiração estava tão inconstante. Como ele poderia regularizar um fator comum? Algo natural?

Não era como se não tivesse gravidade, era como se ela fosse menor em relação ao mundo real.

O que ele deveria fazer, afinal? Havia ar ali, só não o suficiente. Então horas, talvez, se passaram. Kai lutava para se adaptar ao ambiente, e bilhões de coisas passaram por sua mente.

Quem levou ele ali? Foram as coisas luminosas? Aquele lugar era povoado? Era perigoso?

Muita coisa surgiu e se foi em sua mente na velocidade da luz, ao passo que ele estudava cada partícula de ar, fazia cálculos e lutava pra não perder a calma e, consequentemente, a sanidade.

Quando teve certeza de que sua respiração estabilizara e que, pelo menos por pouco, havia conseguido se adaptar ao lugar, decidiu se levantar lentamente.

Pontinhos brilhavam diante de seus olhos, e Kai atrelou isso ao fato de não estar totalmente adaptado. Se fosse realmente uma questão de gravidade, nada que fizesse poderia contrapor isso.

A gravidade era uma magia singular e duvidosa. Os usuários eram, em tese, matemáticos e cientistas que estudavam para depois atrelar as magias em si mesmos. Kai sabia uma coisa ou outra.

Para ele, a gravidade tratava-se de uma força natural, um campo onde os homens, com suas magias, feitiços e afins, não tinham total compreensão. E, mesmo assim, o homem havia subjugado, tornando aquilo mais seu.

E era assim que a magia atuava.

Só que Kai não era um matemático. Um cientista. Um mago.

Sabia mesmo era de anatomia humana e, se seu corpo não tivesse uma quantidade x de ar, ele iria morrer. E sua cabeça começava a doer.

Kai escalou lenta e pausadamente a parede da cratera, não se importando muito com a sujeira. Pousou para fora dela, respirando pesado.

Tinha tanto tempo que não se cansava assim. Caiu sobre um joelho, seu corpo inteiro tremendo e gotas de suor pingando por sua testa.

Entrementes, ouviu passos se aproximando. Como não respirava direito, não conseguia manter o Radar Sensitivo, que era como chamava a habilidade de perceber energias vitais.

Isso despertou um medo profundo, que ele achou já estar esquecido.

Piscou firme, o suor banhando seus olhos e o ardor irradiando em sua alma.

Escutou o tilintar de metal, mas era algo menos abstrato. Limpou os olhos e, cambaleante, se ergueu, forçando a visão.

Imbuiu os olhos com chi, tentando se manter são. Será que seria uma visagem?

Havia em torno de seis sujeitos encapuzados, trajando roupas um tanto estranhas. Vestiam um conjunto de armaduras entre negro e prata, sem aberturas nas articulações.

Nas costas, longas capas surradas e, sobre seus rostos, máscaras de aspecto estranho, que impossibilitavam ter uma visão deles.

Traziam consigo grandes lanças sem lâminas.

Um deles berrou numa língua estranha e deu um passo a frente.

Kai continuou querendo acreditar que eram visões, algo que sua mente estava lhe pregando.

O outro, por sua vez, tornou a berrar e um ao lado dele fez o mesmo.

Era como se estivessem brigando entre si. Kai inclinou a cabeça e franziu a testa.

O primeiro sujeito berrou outra vez e, com um agitar de sua arma para frente, a ponta se desprendeu e uma corrente surgiu.

Na ponta da corrente, um objeto circular com fendas afiadas estalou. Meio segundo mais tarde, Kai notou que era uma caveira, pois esta cravou-se em seu antebraço. Os pontos diante de seus olhos aumentaram, e ele soube que não se tratava de visão coisa nenhuma.

Aquilo foi real e doeu pra caramba.

Os outros estrincharam em resposta e deram um passo a frente, agitando suas lanças. Kai sabia o que viria depois.

Ele ergueu a sobrancelha e, junto disso, um sorriso cansado e doentio. Em resposta, enrolou o braço ao redor da corrente, o que fez a caveira cravar mais ainda os dentes em sua pele.

O sujeito que segurava a arma olhou da corrente para Kai e inclinou a cabeça. O rapaz podia jurar que havia um misto de dúvida e alarde em seu rosto.

Kai puxou a corrente com toda força, e o sujeito que não esperava por isso foi puxado em sua direção. O rapaz esperava mais resistência, afinal, ele estava quase desmaiado e sequer usava chi. Mas agradeceu com um aceno quando o sujeito surgiu diante dele.

Cerrando o punho, acertou um soco bem na lateral da cabeça do sujeito. O capacete rachou, e seu corpo afundo no chão, produzindo um som único.

Os outros cinco deram um passo para trás, uma dúzia de gritos desesperados, Kai notou.

Isso piorou sua enxaqueca, e a tontura voltou.

Em resposta, os outros cinco, de modo sincronizado, agitaram suas armas e jogaram suas lanças para frente.

As pontas se desprenderam e, delas, várias caveiras batendo os dentes surgiram, cravando-se nas pernas, braço e peito dele.

Com isso, o rapaz caiu sobre um joelho, a tontura voltando. Sua respiração piorou, e sua cabeça girou, de modo que ele ouvia tudo ao redor.

Os sujeitos encapuzados se aproximaram, conversando. A voz deles serrilhava na cabeça de Kai, e tudo o que ele queria era fugir dali.

A falta de ar começou a se tornar insuportável. Sua cabeça parecia que ia explodir, e seu peito inchava de um modo nada agradável.

Podia sentir até mesmo suas veias se contorcendo, implorando por ar, por oxigênio.

Um deles se abaixou e prendeu correntes lisas nos pulsos, pernas e pescoço de Kai. Em seguida pegou a bolsa dele e a espada.

Outro se aproximou e puxou o arco das costas de Kai. Ao traze-la para perto do rosto, uma fenda na máscara se abriu, ficando parcialmente visível. Mas não se abriu totalmente, Kai percebeu um vidro que separava seu rosto do ar.

E seu rosto era... era estranho. Kai não sabia ao certo, por causa dos pontos diante de seus olhos, mas era diferente de tudo que ele já vira. Era um rosto anguloso, com fendas nas narinas e linhas verticais traçando toda a face.

Kai piscou e, num segundo, seu rosto já estava tampado novamente. Eles soltaram gargalhadas enquanto trocavam palavras entre si, totalmente alheios ao outro deles, que parecia ter morrido com a força do soco, pois sequer se mexeu. Eles também não se importaram de checar seu estado.

Entrementes, Kai encarava um ponto distante atrás deles. Não havia parado pra visualizar o lugar – essa não era a melhor hora, - mas sem nada pra fazer e estando numa situação particularmente diferente, ele olhou para o céu.

Acima deles, o céu alternava entre roxo, laranja e amarelo. Não havia sinal de sol ou nuvens. Ele olhou para o lado, buscando se acalmar e acalmar a própria respiração. Havia uma grande quantidade de cogumelos e plantas vermelhas, do tamanho de árvores.

Que lugar incomum. Ele encarou um ponto e, detrás do estipe de um dos cogumelos gigantes, um outro sujeito espreitava. Ele vestia as mesmas roupas surradas e mirradas de seus captores. O sujeito acenou para Kai, balançando os dedos e, em seguida, fez o sinal de uma forca. Depois levou a mão à barriga e jogou a cabeça pra trás. Estava rindo da situação.

Kai olhou para os outros, querendo saber se era coisa de sua cabeça ou eles também o viam ali. Mas eles pareciam criança que acaba de descobrir o pote de doces. Estavam todos perdidos na recente aquisição. Kai olhou de novo para o cogumelo e o sujeito havia sumido.

Ele varreu o olhar, buscando procurar o sujeito e, quando olhou diante de uma planta mais próxima, o sujeito estava lá. Ele acenou outra vez, mas agora apontava para um ponto distante. Ele balançou a mão e apontou outra vez.

Kai decidiu olhar pro lugar que ele apontava e, não muito distante dali, visualizou um corpo se precipitando.

Quanto mais se aproximava, maior ficava. Kai estava disposto a alertar os outros sobre isso, mas nem ligava mais. Não ia morrer, mas o sono começava a bater. E se ele se virasse e...

Despertou. A dificuldade de respirar começava a induzir sono. Ele olhou de novo para a região onde o outro estava e, a poucos metros dele, havia uma máscara. Não era igual à dos outros, não.

Esta era transparente na parte do rosto, e tinha hastes para prender na orelha. Kai fitou o sujeito, que deu de ombros e balançou a cabeça, mandando-o pegar o objeto.

Mas por que ele o ajudaria? Kai olhou novamente para o outro lado, a imensa criatura se aproximando. Os outros sequer notaram. Ele olhou novamente para a máscara e, em seguida, pro sujeito, que deu de ombros e balançou o indicador, tocando a parte de cima do pulso.

Kai começou a achar que ele era especial. Não no bom sentido.

Ele tornou a olhar para o outro lado e a criatura já se precipitava. E era imensa, a coisa mais feia que ele já vira na vida.

A criatura tinha um corpo de minhoca e vinha se arrastando, mas na sua face – como Kai quis acreditar que era – saíam diversas antenas. Não havia olhos, mas a boca era grande, cheia de dentes e fedorenta.

Quando um dos sujeitos notou já era tarde demais. Foi agarrado por uma das imensas antenas e levado à boca do bicho enquanto berrava e se debatia no ar.

Os outros derrubaram as coisas de Kai no chão, tropeçando nos próprios pés e se afastando.

Entrementes, Kai se decidiu: ele se arrastou lentamente em direção à máscara sob os gritos e berros dos outros. Lutou pra manter a calma enquanto se esforçava, o peito ardendo e a cabeça girando.

Era difícil se mover com correntes e a respiração lhe faltando, mas depois de muita labuta ele conseguiu se aproximar. Prestes a agarrar a máscara, sentiu algo agarrar sua perna. Quando se virou, todos os outros haviam sumido e, enroscado no seu tornozelo, uma das antenas da imensa criatura.

Kai apertou bem os olhos e antes de ser puxado até a boca da criatura, agarrou a máscara. No segundo seguinte foi arremessado bocarra adentro.

Tudo aconteceu num segundo: ele levou a máscara ao rosto, que se fixou e instantaneamente ar preencheu seus pulmões. Os pontinhos sumiram, e ele se sentiu aliviado por a tontura também se despedir dele.

O chi reagiu rapidamente aos comandos dele, não precisando nem ele pensar. Suas veias se encheram de ar, e a energia flui pelo seu Tanden, levando o oxigênio até seu cérebro. Chi fluiu por seu corpo e ele ergueu uma mão, prestes a ser engolido.

A bengala dele pulsou e vibrou, segundos depois saiu girando. Kai ergueu o dedo indicador e o médio, e a espada saiu de sua bainha. Quando sua mão tocou no cabo da espada, chi banhou sua lâmina.

Kai agitou levemente a lâmina e a antena que o segurava foi arrancada com um corte limpo. Sangue roxo jorrou e a criatura sibilou.

Ele caiu, girando no ar e pousando suavemente no chão. Assim que chegou em terra, pulou para frente, apertando bem o cabo da espada e concentrando bastante energia.

Seu rosto era severo, mas ele não estava com raiva. Estava em tremenda calma. Suspirou e arregalou bem os olhos.

Segurando agora a espada com as duas mãos, que continuavam presas pelas correntes, uma palavra se precipitou do fundo de seu âmago. Ele a treinou. Não somente isso, ele a desenvolveu, a criou. Era algo seu.

Golpes que detinham nomes eram tão poderosos quanto aqueles que não tinham, e por isso Kai se concentrou tanto. Ele precisaria de um segundo.

Ao precipitar sua espada para frente, o ar inteiro pareceu perder a pouca gravidade que tinha, e os céus estagnaram-se. A criatura, percebendo que corria perigo, não fez nada a não ser esperar. E diante disso tudo, ele pronunciou uma só palavra.

Kamaitachi.

E agitou a espada pra frente. Num segundo nada aconteceu, no outro, a criatura foi cortada ao meio horizontalmente. Fora um corte totalmente limpo, pois sangue não jorrou e diversos cogumelos e plantas no campo do golpe também foram estraçalhados.

Não houve zoada, não houve sangue. Não houve sequer traços de que tal golpe fora dado.

Um corte invisível e sem rastros. Esse era o Kamaitachi, esse era o golpe mais fatal de Kai Stone.



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