Volume 2

Capítulo 64: HERÓIS MILENARES E O ARAUTO DAS DORES

 

Bulogg estava mais sombrio do que Kai esperava. Era a primeira vez que o rapaz andava sozinho naquelas redondezas desde que saiu de Neve Sempiterna.

E sobrevivera o dobro de tempo do que aquela vez.

Também o perigo iminente não se mantinha tão firme e opressor como se lembrava, mas Kai ainda sentia aspereza no ar. Em escala menor, mas sentia.

Tinha uma teoria sobre isso. Quando esteve em Bulogg, sempre acompanhado por um vitanti, era como se a aura protetora que os envolvia se estendesse para ele também. Ele se sentia seguro e, seus sentidos alertando-o para correr a cada mínimo barulho eram quase inexistentes.

Agora, sentia a pressão constante. Era como se o perigo o espreitasse a cada esquina, a cada brecha entre as árvores.

Como se olhos o fitassem, esperando que baixasse a guarda, prontos para cravar suas presas em sua jugular. Mesmo assim, seu chi o ajudava a suportar mais do que ele provavelmente poderia.

Outro fator também é que o ecossistema de Bulogg era único, alheio aos reinos nas suas fronteiras. Neve Sempiterna era frio, e em Bulogg o clima era quase o oposto, apesar de úmido.

Apesar disso, suas roupas eram leves, o que ajudava com o calor. Da outra vez que fora preso pelos Gorilas, foi picado por um mosquito e a ferida inflamou tanto que ele pensou que fosse morrer. Ele poderia ter chegado à ideia de que Bulogg era uma Floresta Tropical, mas infelizmente não sabia como definir o bioma de lá.

Desta vez, não havia mosquitos. Haviam caranguejos.

Mael o alertou que as criaturas que participaram da batalha estariam tentando retornar ao seu habitat natural, e ele encontraria um ou outro excedente.

Essas criaturas não tinham culpa, ele sabia. Apesar de alguns como os Bulgu e os batedores, serem criadores de problema natos. Mas não era da natureza dos caranguejos criar problemas. Eles esperavam e, somente quando tudo estivesse acabado, iam para cima daquele fraco demais pra poder se defender.

Empoleirados sobre galhos e nas copas das árvores, Kai notou que uma grosa o seguia com olhos vendados. Ele ouvia seus maxilares batendo e seus olhos famintos traçando um alvo em suas costas. Podia ouvir seus corações batendo numa frequência diferente do habitual. Diferente dos humanos. Eles não atacariam. Tinham medo dele. Sentiam que estava tão feroz quanto antes. Sentiam a mana de Greylous nele. Sentiam a vontade imensa de matar sendo suprimida. Sentiam o perigo e o medo em seu mais puro estado.

Kai seguiu.

Se pegou pensando em Fioled. Ah, doce Fioled. Estava linda na última vez que se viram. Na última vez que... Bom, não queria pensar nisso e se martirizar mais por ter de deixar a menina.

Mas foi necessário, fez sua escolha e não se arrependeria dela. Nunca foi de se arrepender. Mas pensar na boca de Fioled na sua, os toques e carícias. Pensar em seu cheiro... Droga!

Estava apaixonado, era fato. Mas pensava em amor como uma escolha, não um sentimento. Sabia que poderia escolher amar Fioled, seria simples e fácil com ela, mas não podia. Simplesmente seu povo não permitiria, e ele não a traria para o mar de confusão que se tornou. Não poderia.

Parou diante de um lago pantanoso e escuro. O fedor era quase impossível de se acostumar, e o ar bolorento, estagnado, o fez sentir um arrepio.

Ficou encarando a água parada por um longo tempo, o musgo sobre um tronco quebrado dentro do lago balançando lentamente. Sabia que tinha algo ali. Com a afinidade que criou com o chi, podia notar a presença de praticamente qualquer ser vivo, desde que este não escondesse dele.

O chi era, afinal, a energia vital de todo ser vivo. Não havia como esconder sua própria vitalidade, só se estivesse morto.

E Kai sentia o ecossistema ondulante do pântano. Pois aquilo era um. Sentia os pequenos seres, tão inofensivos quanto moscas, se espreitarem pelas raízes cheias de musgo e pelas plantas pantanosas e fétidas.

BZZZ

Ouviu o bater de asas típico de besouros pantanais, mas soube no instante seguinte que não se tratava de um.

Levou a mão direita ao punho de sua bengala – que era uma espada, – e apertou firme, flexionando os joelhos. Encarou quando meia dúzia de seres alados de tamanho mediano, pouco menores que um humano comum, surgiram.

Tinham uma feição atrofiada. Seus troncos eram humanoides, gordos, onde asas menores que eles e pouco brilhantes batiam freneticamente em suas costas. A parte de baixo do corpo era totalmente negra e rechonchuda, com oito pernas aracnídeas e afiadas.

Kai se surpreendeu com o fato delas conseguirem se sustentar majestosamente no ar, mesmo com todo o peso excessivo.

Mas o que incomodou ele foi o fato de terem línguas grandes e afiadas, brilhosas nas pontas. Tinham olhos bastante peculiares também. Voaram na direção de Kai, e ele se espantou com a maestria de sua velocidade.

Fizeram uma curva suntuosa, mas Kai manteve as criaturas em vista. Soltou o cabo da bengala – que era uma espada, – seu chi ondulou, fortificando brevemente seus punhos.

Com a velocidade de um facho de luz, Kai sumiu de sua posição, deixando buracos fundos, mas perfeitamente desenhados no chão pantanoso.

O brilho de seu chi ondulou por seu corpo, um feixe azul percorrendo pelos seus olhos. Uma das criaturas olhou pra cima bem no momento em que Kai surgiu sobre elas.

‘Ele conseguiu me acompanhar nessa velocidade?’ pensou Kai, bastante surpreso.

A verdade é que ele agiu numa velocidade tão grande, que somente um combatente ou mago de atributos lépidos poderia acompanhar.

Mas acompanhar e reagir eram duas coisas diferentes, e a criatura sabia disso.

O ar ao redor de Kai mudou. Apesar de ter criado uma lufada de ar com a velocidade exercida, o ar cessou, como se não houvesse gravidade ali.

A criatura apenas observou quando o punho de Kai desceu, envolto em nada mais do que uma fina camada de chi. Os olhos dela se encheram de medo diante da figura aterrorizante do rapaz.

Para essas criaturas que não pareciam ter qualquer traço de inteligência, Kai nada mais era do que uma presa fácil. Mas o rapaz se mostrou o contrário. Seus olhos foram preenchidos por uma cor vermelha, quase doentia. E sua energia ganhou um tom roxo. O poder de seu soco destruiu completamente o corpo da criatura, que não teve nem tempo de reagir.

O impactou gerado pelo soco criou ondas de energia, que afastou as criaturas para longe, e gerou um buraco fundo no solo abaixo, pela pressão maior ainda. As árvores uivaram com a energia expelida. A floresta saiu de seu torpor, e pequenas criaturas deixaram suas tocas, fugidos e amedrontados diante da pouca energia gerada pelo rapaz.

Apavoradas e cheias de ódio, as outras cinco criaturas se reuniram, sibilando e esticando suas línguas num ataque conjunto e a distância.

Kai franziu a testa e tocou no cabo de sua bengala, pronto para retirar a espada. Contudo, notou um movimento pelo canto do olho, vindo do tronco parado no lago.

Enquanto caia, mudou sua trajetória e voltou para o lugar onde estivera antes.

As pequenas criaturas seguiram seu rastro, e ficaram surpresas ao notar esse movimento. Entrementes, uma imensa criatura coberta de musgo e flechas enfiadas em sua costa, surgiu, sobre o tronco na água.

Kai observou-a abocanhar com seus imensos dentes as cinco criaturas duma só vez, a língua de uma delas ficando pra fora, mas sendo logo sugada pela criatura.

Tinha a aparência de um jacaré, mas nas costas não haviam escamas, e sim um casco de tartaruga. Suas patas eram grandes, mais parecidas com a de um lagarto comum que de qualquer outro de seus primos répteis. Sem contar que eram seis; e imensas.

Kai observou o bicho mastigando sem pudor, enquanto encarava-o. A criatura se virou, um de seus enormes olhos o encarando. A pupila era de fenda, e a íris ao redor era cheia de um amarelo lindo.

Ambos se encararam, tentando descobrir qual dos dois era mais perigoso para o outro. Os olhos da criatura eram de um predador natural, mais antigo do que qualquer uma das criaturas que pousou na face da terra. Kai soube disso. Ele sentia.

Mas a criatura também viu o perigo ao redor de Kai. Ele não era nada diferente de um predador.

Ambos se encararam até que a criatura terminasse de digerir os bichos alados. Kai ainda ouvia-os gritando, já no estômago.

Por mais meio segundo ficaram se encarando, Kai estava pronto para sacar sua espada e lutar contra o monstro. Mas o enorme réptil entrou na água, a cauda espinhosa balançando lentamente, e sumiu no fundo do lago.

Kai respirou fundo, agradecendo por não ter de lutar contra o monstro. Teria dificuldades, sem sombras de dúvidas.

Ele se virou para partir, mas a sensação de ser observado ainda não havia ido por completo. Havia algo ali, à espreita, pronto pra atacar.

Esperou longos segundos, fingindo encarar a água, sabendo que algo se aproximava.

Kai deu uma pirueta para trás quando uma criatura verde de seu tamanho surgiu, fechando a boca bem onde estava antes. A mordida iria bem no seu pescoço.

Ele respirou fundo e observou bem a criatura. Tinha cerca de seu tamanho, maior que ele dois ou três centímetros. Era verde e tinha quatro braços. Suas escamas eram mais parecidas com a de peixes do que a de algo mais sólido. Atrás, nas costas, enormes barbatanas se sacudiram, expelindo a água de si.

Seus olhos fendidos se fecharam numa membrana e depois a outra por cima. Kai havia lido sobre isso no bestiário dos Exploradores de Bulogg. Era uma Estriga, criaturas comedoras de almas. Tinham o fetiche de colecionar corpos de suas presas ao redor de si, mas eram tão burros quanto um pedaço de porta.

A criatura sibilou em uma frequência sonora quase ensurdecedora. Kai reprimiu o desejo de gritar, mas se fortaleceu com seu chi. Queria sair dali logo, então se acalmou enquanto a criatura diminuiu espaço entre eles.

Ao concentrar seu chi de maneira tranquila, ele visualizou um ponto. De repente, ele sumiu de onde estava, e a Estriga parou seus passos, alarmada, procurando onde ele estava. Kai surgiu logo atrás dela, cortando-a ao meio com sua espada. A criatura nem o viu chegando.

Ele respirou fundo, suor frio pingando por sua testa. Essa habilidade requeria três coisas importantes: paz, calma e muita, muita energia. Era um transporte de curta distância, algo que ele ainda estava aprendendo e desenvolvendo com a ajuda do livro que Mael lhe deu, aquele com habilidades de chi.

O custo era alto, e se ele quisesse viajar grandes distâncias, tinha de aumentar sua energia vital, bem como refinar seu chi e alargar seus meridianos e canais por onde o chi passava. Teria de bombear seu Tanden com ainda mais precisão e com uma energia tão pura quanto a de agora.

Necessitava de controle, treino e paciência. Assim como todas as suas habilidades.

Kai tinha desenvolvido muitas coisas, mas sabia que não poderia contar sempre com o chi, pois conforme se cansasse, ficaria mais e mais impossibilitado de usar a energia em longas batalhas. Mas para alguém que ganhara a habilidade de manusear a energia a pouco, se considerou bastante evoluído. Contudo, preparou outras maneiras de poder lidar com inimigos caso estivesse esgotado. No fim, havia um arsenal finito, mas que lhe traria suporte quando necessitasse.

Se focasse no desenvolvimento de novas habilidades e em refinar seu próprio corpo, gradualmente aumentaria sua resistência. Conseguiria.

Regulou sua respiração, inspirando e expirando o ar, bombardeando seus pulmões e seu Tanden com novas células, que buscavam recuperar a energia perdida no ataque há pouco usado.

Entrementes, como se esperasse a hora certa, raízes surgiram de diferentes lados e direções, vindo tão rapidamente atacar Kai, que ele sequer poderia reagir a tempo. Mas ele inspirou fundo, e soltou o ar, abrindo os olhos gélidos e mortais. Seu chi foi expelido em forma de aura, sua intenção assassina surgindo em forma de raios roxos e levemente esverdeados.

As raízes foram desintegradas como se fogo vivo a queimasse, como se tivessem se chocado contra um escudo invisível e poderoso. A intenção de Kai seguiu, desmanchando e queimando as raízes, fazendo o caminho pelo qual vieram.

Uma árvore rangeu, e um corpo surgiu. Havia um monstro se camuflando, com a fenda dos olhos tremendo e da boca apavorada, espumando. A intenção de Kai foi tão grande que desintegrou a criatura, uma única lamúria restando no ar.

“Tenho que sair daqui...” Pensou ele, cansado por ter usado tanto chi.

Essa fora outra habilidade, a Intimidação. Com apenas sua intenção, Kai buscava desencorajar os inimigos, querendo evitar banhos de sangue desnecessários.

Mas mesmo num nível inicial, requeria grande energia. A sorte é que Kai sempre foi uma pessoa muito imponente. E diferente das outras habilidades, Intimidação se alimentava somente das emoções do usuário. Estar calmo era um diferencial, mas ter uma confiança inabalável, era necessário.

Ele começou a caminhar, fazendo um caminho para fora daquele lugar. Nem lembrava o que o levou ali, pra começo de conversa. No entanto, só queria ir embora, fazer seu caminho para fora de Bulogg.

Até agora não tinha tido tanto problema, mesmo que tivesse suado um pouco com a Estriga e o monstro camuflado.

Deu um passo para fora do pântano e se viu numa clareira totalmente diferente, o ar ao redor havia mudado. Antes, nem sequer um raio de sol passava pelas copas das árvores congênitas. Podia-se sentir o cheiro de mofo e da morte presentes no pântano. Podia-se sentir a vida lutando para sobreviver ali. E mesmo na morte, há vida.

Mas ao pisar na clareira, foi como se sua energia se recuperasse. Como se um enjoo e a vertigem antes presentes tivessem se ido. A luz do luar o iluminou, ele notou vários pontos brilhantes ao redor, feito vagalumes.

O gramado ao redor era rente e verde, e as árvores pareciam aconchegantes. Ele observou quando um desses pontos luminosos se aproximou, grudando em seu braço. Não lhe fez mal, eram completamente inofensivos. Mas sua nuca não parava de arder. Algo o incomodava.

Dali a pouco uma pequena canção começou a tocar piamente. Era baixa e breve, e ele notou a frequência e o ritmo.

Sha-la-la-la! Reis do céu e da terra
se divertem sem parar.
Sha-la-la-la! Heróis milenares
retornam para nos salvar.


Sua nuca ardeu novamente. Se sentiu inebriado e, ao mesmo tempo, confuso. Ouvia e entendia as vozes, ao mesmo tempo que nada ao certo parecia falar. Apenas uma cigarra distante soava.

Si-si-si-si-sim!
É o rumor do outro mundo.
Pli-pli-pli-pli-plim!
É o arauto das dores.
Si-si-si-si-sim!
Venha para o reino do profundo.
Ding-ding-dim!
Apenas repare nossos temores.
SIM!
Acabe com o oriundo,
SIM, DIGA SIM!
Seja a luz do submundo!

Kai arregalou os olhos, extasiado. Algo estava errado. Antes que pudesse reagir, uma forte luz brilhou sobre si. Ele ergueu o rosto, brevemente sendo cego por ela. Apesar disto, ele percebeu que a luz surgia do céu distante, como se alguém o iluminasse de propósito.

As vozes se intensificaram, cantando a música num ritmo frenético e ensurdecedor. Entrementes, os pontos luminosos se pregaram mais e mais ao passo em que Kai tentava retira-las de si, começando a ficar nervoso e pálido.

Então o mundo começou a ficar maior. As árvores ao seu redor aumentaram, tudo ficou enorme.

Ele levou longos segundos, no entanto, para perceber que ele é quem estava encolhendo. Encolhendo e caindo. Tentou ativar seu chi, mas sua energia tinha se esgotado. Começou a encolher e a cair, as luzes continuando a ficar pregadas em si.

Kai encolheu, encolheu e encolheu, ao ponto de todo o redor sumir, e novas cores assumirem. Ele só pôde observar enquanto tudo mudava e sua mente girava em turbilhões de pensamentos. Que diabos estava acontecendo?



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