Volume 1
Capítulo 63: ISTO NÃO É UM ADEUS
Kai se sentiu automaticamente bem após deixar a sala de reuniões. Sabia que tinha ouvido por tempo demais, e quanto menos ouvisse, melhor.
Havia quebrado sua própria regra, a de se envolver muito. A de perguntar muito. A de ficar muito.
Voltou para o salão dos Echanti e se surpreendeu ao ver as marcas da batalha, mas nenhuma reminiscência dos soldados de Carmim.
Adentrou os túneis cilíndricos do lugar, sabendo exatamente aonde ir.
Sua bengala reta pendia amarrada por uma corda cheia de nós à cintura. Ele se pegou apertando o cabo dela. Na verdade, esta se tratava de uma espada. E Kai sentia uma conexão sobrenatural com ela desde o momento em que a forjara. Apertar seu cabo trazia a sensação de que não estava sozinho. Não mais.
Rapidamente chegou ao salão e diminuiu espaço para o lugar que separou como seu.
Teve bastante tempo para pensar sobre sua vida, para tentar cuidar melhor de sua mente. Necessitava disso. Tomou decisões, e finalmente a hora de agir chegou. Estava mesmo disposto a arrancar a cabeça de Carmim se preciso fosse.
Entreabriu levemente a bengala, e a luz prateada da lâmina quase cegou seus olhos. Em seguida, um tom escuro tomou-a. Foi tão rápido que ele mal teve tempo de apreciar a beleza dela.
– Quando vi você esticando a mão e essa coisa surgindo, pensei ter imaginado coisas.
Kai se virou e encarou Cineáltas.
– Foi uma discussão e tanto – atalhou o mais novo.
– Seja sincero comigo, Kai, pois só vou perguntar uma vez. Onde obteve tais habilidades?
Kai franziu a testa. O tom não era nada amistoso.
– Como assim?
Cineáltas apontou para a espada.
– Eu vi as matrizes na lâmina de sua espada, e vi o tom negro dela. Isso... é algum vestígio dos poderes de Greylous?
Kai arqueou as sobrancelhas.
– Não estou entendendo...
O mais velho também franziu as suas. O garoto não estava mentindo.
– Tem ideia do que possui em mãos?
– Uma bengala...?
– Não dê uma de engraçadinho. – Cineáltas pigarreou. – Você provavelmente forjou essa espada, Kai, pois eu conheço cada projeto que havia aqui dentro desse salão. E ela não me lembra nenhuma que eu ou meu pai tenhamos feito.
– Ela possui um tom negro, sim, mas acredito que por conta da matriz que desenhei nela.
– Desenhou? – Cineáltas quase caiu pra trás. Logo se recompôs. – Vamos por partes. Primeiro: nenhuma matriz de runas seria capaz de mudar a coloração de uma arma, nenhuma. Esta aí...
O sujeito esticou a mão, afim de toca-la ao menos na superfície. Contudo, prestes a tocar, sua cabeça girou e uma estática gerou entre seus dedos e o cabo bege. Ao afastar a mão, a tontura logo passou.
– É como pensei... você forjou uma espada espiritual, Kai.
– Isso... eu não possuo tais habilidades, senhor.
– Estava pensando em alguém ao forjá-la? – Indagou o mais velho.
– Somente em mim mesmo.
– Eu devia imaginar... – Balbuciou Cineáltas, encarando tanto a espada que poderia criar um buraco.
– Você pode para de cochichar consigo mesmo e explicar tudo isso?
– Claro. – Apressou-se o mais velho. – Quando forjamos espadas, sempre temos alguém em mente, e dependendo da força de vontade do ferreiro, as espadas tem a capacidade de criar vontade própria, de terem um espírito. As emoções são sugadas por esses objetos, Kai, e são constantemente carregados pela força natural do usuário. Você criou uma poderosa arma, Kai, que tem desejos e anseios. Que tem uma forte ligação com você, assim como...
– Assim como Amencer.
Cineáltas assentiu.
– Mas Amencer é uma espada que se molda conforme o tempo. Ela é orgulhosa, só reconhece aqueles com força o bastante para empunhá-las. Sua espada... sua espada não será assim. Ela só será leal a você, e irá cobrar sua lealdade também.
– E por que diz isso?
– Por que o seu ferreiro ainda está vivo. Armas espirituais são leais aos seus criadores até o momento em que percebem que eles não estão mais neste mundo. Quando notam que é a hora de escolher um novo usuário, assim o fazem. Ela me repeliu instantaneamente quando tentei tocá-la. Está demonstrando lealdade para com seu criador, seu dono. Isto é, você a forjou para ser usada por você, não é?
– Sim..., mas há coisas que não entendo. Como consegue criar armas e vende-las?
– Nem todas as espadas são espirituais, Kai. Elas podem possuir o grande cerne de quem a forjou, mas ferreiros em sua maior parte criam armas para os outros.
– Então ferreiros conseguem controlar os pensamentos e emoções?
– Os melhores sim. Tem aqueles que forjam armas pensando numa pessoa em específico, e essa espada não se torna leal a ele, seu criador, mas à pessoa que estava nos pensamentos de quem a criou. É muito difícil, mas acontece. No que exatamente pensava ao forjá-la?
Kai balançou a cabeça, se afastando.
– Em como preciso ser forte, cada vez mais.
Cineáltas baixou o olhar, fitando o chão.
– Então a Amencer...
Kai assentiu. Já tinha decidido isso há muito tempo, mas deixou para falar somente quando a hora viesse.
– Não posso portá-la, senhor.
– Mas ela o escolheu.
– E eu aceitei. Mas nosso propósito já foi cumprido. Sou apenas um mortal, Amencer foi a arma de um ser ancestral, algo além de nossas compreensões. Não posso andar com ela por aí.
Cineáltas entendeu. Deveria ser um fardo e tanto. Alguns minutos se passaram, até que o mais velho ergueu o rosto.
– Olha, sei que você está odiando isso, que eu deveria viver com ela até minha morte. Mas ela é poderosa demais, eu sinto que com qualquer balançar dela, poderia destruir terras e continentes. Isso não é bom. Não pretendo usar a espada para subjugar os outros, quero apenas ser necessário para ajudar.
Cineáltas assentiu.
– Então precisa nomear essa sua espada. Espadas espirituais sem nome são difíceis de serem controladas. Vá por mim.
Kai assentiu. Já tinha um nome em mente, mas queria ver por si só o que ela poderia fazer.
Ele continuou pegando algumas coisas e indo aqui e ali de vez em quando. O mais velho respirou fundo e tornou a falar.
– E como desenhou a matriz?
– Bem... você disse que se eu compreendesse os detalhes das runas, poderia cria-las livremente com minha própria energia.
Cineáltas deu um passo para trás. Começou a falar algo, mas a voz não saiu.
Finalmente recuperou a respiração.
– Pare de brincadeira. Compreender o detalhe de uma runa levaria anos, conte-me a verdade: como fez a matriz?
Kai piscou. Desta vez, ele que achou que o outro brincava.
– Você falou pra eu compreender os detalhes, e eu compreendi. Vai me dizer que deveria ser difícil?
– Deveria ser difícil? Você se escuta? Não deveria ser difícil, isso é difícil.
– Mas você fez parecer fácil.
– Você está brincando comigo! Diga a verdade, Kai. Não ficarei bravo se disser que está mentindo.
– Como se sua opinião me fosse importante. – Pigarreou o mais novo. – Eu não costumo mentir, senhor. Quiser acreditar, bem. Se não acredita, não é problema meu.
E Kai se distanciou mais, indo até uma borda e se abaixando. Parecia irritado, mas Cineáltas não ficou ofendido. Na verdade, ficou envergonhado por ter sido tão condescendente.
Kai começou a remexer em algumas coisas e de repente pegou uma bolsa de couro marrom. Cineáltas notou algumas coisas na sua lateral, mas eram bem pequenas.
‘Isso... ele realmente compreendeu os detalhes das runas. O menino é um gênio ou o quê? Alguém comum levaria mais de dez anos pra começar a compreender sobre as runas. E ele... ele... ele aprendeu em dois meses.’
– Kai, não quero ofendê-lo, mas como fez isso?
O rapaz se levantou, a bolsa em mãos.
– Eu não sei, ok? É só que... eu tenho uma memória perfeita agora. Lembro de tudo, até de sonhos. E a facilidade que tenho pra aprender... É como uma...
– Benção...
– Maldição! Lidar com tantos pensamentos, lutar pra organizá-los, manter o controle pra que nada se embaralhe e eu me perca em mim mesmo. Não esquecer nem mesmo uma pontada que sinto num lugar distante do meu cérebro. E foi assim, feito um estalar de dedos, que consegui compreender isso.
Kai esticou a mão e cinco runas roxas pairaram instantaneamente na sua frente.
– Justiça, Altruísmo, Lealdade, Honestidade e Respeito... você consegue criar as cinco runas principais. E com apenas um pensamento... como isso pode não ser uma benção?
Kai pigarreou. Ninguém entenderia.
– Tudo tem um alto custo, senhor. Não é prazeroso, não é bom. Não há nada que eu me esqueça, nada. Lutar para ficar de bem com os próprios pensamentos, foi algo custoso. Muito, muito custoso...
– Então você conseguiu?
Kai negou.
– Não totalmente. Não. Ao menos consigo dormir sem temer acordar e explodir tudo.
– É um avanço.
– Que foi custoso.
O silêncio caiu sobre eles, e ficaram sem ter o que conversar. Cineáltas estava mortalmente envergonhado de si, por dizer coisas que sabia causarem efeito ruim no rapaz.
– Fico impressionado, com memória boa ou não, com o seu aprendizado. Você sempre se mostrou capaz, e poder lidar com isso sozinho, só mostra que nenhuma habilidade é valiosa sem um grande coração e mente por trás. Não torne suas conquistas inválidas.
Kai assentiu. Lutou para entender isso também. Sabia que se não colocasse sua cabeça no lugar e subjugasse o próprio pensamento, iria morrer. Iria se perder.
Ele finalmente pegou um manto negro e um capuz. Passou a bolsa por baixo do manto e um arco grande e curvado cheio de adornos prateados por cima do manto. Colocou uma aljava cheia de flechas e finalmente luvas.
Cineáltas franziu a testa.
– Que é isso?
– Está na hora.
O homem inclinou a cabeça.
– Hora de quê?
– De ir embora, Cineáltas. Já prolonguei demais minha estadia aqui.
– Mas você não pode ir embora sem se despedir dos outros.
Kai sorriu, esticando a mão. Parecia cansado, apesar de melhor do que antes.
– Isso não é um adeus.
***
Mael estava sentado na cadeira que fora de Abwn, na biblioteca pessoal dos Eblomdrude.
Ainda trazia consigo o semblante cansado. Vestia roupas leves e, com uma mão, segurava um punhado de papéis.
A luz da lua artificial atravessava a claraboia, evitando o uso de lamparinas.
A porta circular brecou com vento; ela costumeiramente ficava fechada. Mael, por sua vez, não ligou para isso. Permaneceu observando os papéis.
– Então parece que chegou a hora – disse ele, sem levantar os olhos dos papéis.
– Hum. – Respondeu Kai, parado sob a escuridão do vão.
– Gostaria de agradecer e-
– Poupe seu tempo – interrompeu-o Kai. – Você sabe que eu faria tudo isso mesmo que não fosse um plano de seu pai.
– Então você soube...
Kai sorriu.
– É, ele me contou algumas coisas.
O rapaz caminhou lentamente pelo lugar, observando os livros e as estantes. Estava tudo no seu devido lugar.
– Sinto muito tê-lo metido nisso. Há coisas que nem eu mesmo sei. Mas acerca do xamã... sei que você queria me alertar sobre isso, e sei também que deveria tê-lo alertado que já sabia. Apenas... apenas me desculpe.
Kai assentiu. Não parecia ressentido.
– Tudo isso já passou. Derrotamos Greylous, e seu povo está vivo.
– Espero que algum dia eu possa ver as coisas desta maneira.
Mael se levantou e caminhou até a escrivaninha. Pegou algo de dentro de uma gaveta voltou ao vão anterior.
– Há muita coisa a ser dita, mas o principal delas é obrigado. Tem coisas que quero te contar, por isso pedi que viesse antes de partir.
O vitanti se sentou na grande poltrona, mas Kai permaneceu em pé.
– Quando desmaiei, recebi a visita de Bulogg.
Ele esperou que o rapaz abrisse a boca e arregalasse os olhos, surpreso. Mas a única reação dele foi assentir levemente.
– Além de me explicar o meu dever para com os vitanti, ele também me alertou sobre você. Você tem uma missão, Kai. Uma missão de vida, e esse é seu cerne.
Kai sorriu, mas o gesto não chegou aos seus olhos.
– Sinto que vou ser metido em mais desses grandes problemas.
Mael balançou a cabeça e suspirou fundo.
– Existem escolhas, Kai, caminhos. Não é como se sua missão estivesse imposta e você tivesse de segui-la. Você pode decidir se quer ela ou não, pois isso é o nosso livre arbítrio. Mas cada um de nós vem para essa vida com uma missão estipulada, um plano de vida detalhado. Mas nem todos tem a sábia decisão de seguir isso, e está tudo bem. Existem aqueles com missões de vida mais poderosas do que outros, e no início há de parecer que não existe uma escolha; mas sempre existe, e você tem uma. Quando chegar a hora, vai descobrir o seu cerne, sua missão de vida mor. E Kai... é tão lindo.
Kai rapidamente se lembrou das palavras de Abwn. Um arrepio o acometeu.
– Os homens não tem uma fé tão compacta, cada um deles tem aquele a quem acreditar.
– Não são deuses, como levianamente pensam. Há um único deus, aquele que criou tudo e todos. Os protetores, como Bulogg e tantos outros que você encontrará, são apenas emissários, seres que se afeiçoaram com as partes de Eteyow, o ser único. E como há seres pro bem, há pro mal também.
Kai assentiu.
– E como eu ia dizendo, nunca tive afinidade com nenhum dos protetores dos homens. Não porque sua força é pequena, mas porque simplesmente não senti nada. Só que aqui... tive a imensa sensação em cada parte de minha estadia, que havia algo operando, um ser invisível e poderoso. E a fé de alguns de vocês... o que quero dizer é que acredito em suas palavras. Mas ainda preciso consertar minha cabeça, Mael. Greylous fez grandes estragos.
– E isso faz parte da missão de vida, o seu cerne. Você é um homem de grande coração, Kai. Tem tanta compaixão, que acaba esquecendo de si mesmo. Você é o tipo de pessoa que age quando precisa agir, mesmo que tenha de matar por isso. Mas não brande sua espada levianamente, sempre em prol daquilo que acredita. E isso é tão lindo; mas pode ser sua ruína também, pois lhe causa grande sofrimento ver aqueles que não podem se defender, sofrendo injustiças. Mas há algo que existe em você, que muitos de nós não temos: amor e compaixão. É um sentimento digno de um homem, necessário em reis. E você descobrirá isso.
Mael esticou a mão, revelando um cubo retangular do tamanho de um dedo. Na face, uma orquídea havia sido desenhada.
– Isto é um seat.
Kai ergueu um sorriso travesso, pegando o objeto nas mãos.
– Outra criação dos anões?
Mael sorriu.
– Na verdade não. Dei a ideia para alguns gnomos, e eles criaram pra mim, quando visitei as Terras Escondidas.
Kai finalmente ergueu o rosto, surpreso.
– HAHAHA! Esperei essa reação há algum tempo. Gnomos são mais habilidosos que os anões, mas são uma minoria e estão, infelizmente, em extinção. As guerras gnômicas causaram isso. Mas não estamos aqui para falar de gnomos.
– Não, não estamos. Que é que isso faz?
– Manda mensagens instantâneas, basta que duas pessoas insiram sua energia. O alcance é quase infinito, não foi testado nos reinos élficos e no dos anões. Em contrapartida, só pode ser usado três vezes, e então explode. É bastante útil, você vai notar.
– Isso é bem importante. Suponho que tenha um propósito.
– Correto. – Mael concordou com a cabeça. – Você fez muito por nós, Kai. Nem sei se alguém em Orquídea teria a capacidade. Quero que saiba que há um lar para que voltar, há amigos aqui. Isso é algo que deve simbolizar nossa conexão. Eu o tenho como um irmão, Stone. Basta inserir seu chi, e vamos saber que precisa de nós, ou que precisa informar algo. Conquanto, seja meus olhos e ouvidos; seja um Púrpuro Externo.
O pedido pegou o rapaz de supetão. Ele não esperava ser considerado um Púrpuro. Tinha lido sobre eles enquanto esteve nas prisões subterrâneas. Um Púrpuro passava por diversos treinamentos e missões para enfim se tornar um soldado de elite, o mais alto posto almejado pelos guerreiros.
Um Púrpuro Externo era ainda melhor... ou pior. Não sabia muita coisa sobre esses, mas ao que Cineáltas deu a entender, eles eram uma tropa especializada com o mundo exterior. Mesclavam-se entre as diversas raças, fazendo todo tipo de missão dada pelo líder deles. Mael queria ele nessa tropa.
– Não quero colocar uma coleira em você – ele esticou a mão e entregou um broche reluzente. – Mas caso aceite, aqui está a sua identificação.
Kai esticou a mão, removendo a luva e tocando no objeto. Era feito de Ferrofosso, com o desenho de uma linda Orquídea a desabrochar. A flor era tingida de uma coloração roxa, que não estava arranhada ou desbotada. Ele assentiu para si mesmo. Não ficou compelido a aceitar ou recusar. Estava calmo com o que decidisse, e sabia que Mael aceitaria sua decisão.
– Então eu aceito.
Mael sorriu e pegou o broche, colocando-o habilmente sob o manto negro do rapaz. Passou a mão pelo leve tecido branco que ele usava por baixo do manto. Esticava-se ao toque, e era firme. Cabia bem em Kai.
– Um quimono que lhe caiu bem, bom amigo. – Ele tocou duas vezes no broche, que se acendeu levemente em um tom lilás. – Eu, Mael da linhagem Eblomdrude, comandante geral dos Púrpuros Externos, general dos exércitos vitanti na batalha da Sequoia contra o grande Xamã, atual Neru’dian, líder dos novos vitanti, chefe das casas unificadas da Orquídea, declaro você, Kai Stone, um Púrpuro Externo por meritocracia e legitimidade.
As palavras pareceram ser gravadas no broche, que brilhou intensamente até cessar.
– Gostaria que ficasse pelo menos até a nomeação – declarou o vitanti, após um longo silêncio. – Mas sei de seus deveres.
– Ficarão bem sem mim. Diria que até melhor.
Mael sorriu, pesaroso.
– Terei o apoio dos líderes.
O rosto de Kai tornou-se impassível.
– Não confio em Carmim. Espero que tenha cuidado.
Mael abanou o ar com a mão.
– É melhor tê-lo ao meu lado do que contra mim. Sei que qualquer passo em falso será uma oportunidade para ele, mas não como se eu não soubesse lidar com a pressão – O vitanti pigarreou e depois ergueu um sorriso malicioso. – Até prefiro que seja assim.
Kai jogou a cabeça para trás e soltou uma risada sincera.
– Acredito que assim está melhor.
O líder vitanti esticou novamente a mão, entregando outra coisa a Kai.
– Quanta bugiganga você tem aí?
O comandante acertou um cascudo na cabeça dele, que sorriu.
Mael tinha uma placa de um metal brilhoso em suas mãos. Runas redondas e bem traçadas brilhavam sob a luz do luar, na lateral da placa. No meio, um desenho que ora parecia de areia, ora de pequenas pepitas de ouro, se mexia levemente. Um cervo branco de chifres com várias ramificações, olhava imperante para a frente, sobre um vasto campo verde, que ondulavam ao vento. O pelo do cervo também ondulava, e vez ou outra seus olhos negros encaravam Kai, como se realmente estivesse vivo.
– Isso...
– É élfico, Kai. Uma espécie de chave. Em caso de ir naquelas terras, dê-lhes isto. Somente quem a tem, é capaz de adentrar no lugar e não ser morto instantaneamente.
– Não sabia que os elfos eram tão ariscos.
– E não são, mas são flanqueados dos lados, atrás e na frente por lugares perigosos. Fazem fronteira com seu inimigo mortal, os anões. E nos seus portões, o Rio dos Aflitos também faz passagem. Do outro lado há o Grande Amarelo, e lá é uma terra sem lei. Todo cuidado é pouco.
– E se eles me matarem antes que eu possa tirá-la de meus bolsos?
– Tenho a sensação de que isso não vai acontecer.
Kai sorriu. Passara a acreditar que conversar com Mael era tão bom quanto conversar com Ardara e Gunter, pessoas que considerava seus irmãos.
Inevitavelmente, criou um vínculo com o vitanti que não pensou que criaria jamais. Na presença dele, era fácil ser você mesmo. Pelo menos era isso que Kai acreditava.
O líder vitanti se aproximou, tocando na cabeça do amigo e sorrindo gentilmente.
– Que os plínios o consagrem, meu querido amigo. Vá com a graça de Eteyow, e que seu caminho seja iluminado pelas chamas ignífugas do destino. Fique bem.
Em resposta, Kai puxou o amigo num forte abraço e sorriu.
– Estou feliz que esteja vivo, meu amigo. Isso é um até breve.
Então o rapaz se afastou e passou pela mesma porta cujo entrou no início daquela noite.
***
Kai se despediu de todos que achou que deveria. Falou com Tallanthin, o avô de Mael. O velho sujeito lhe entregou um punhado de ervas e raízes, afirmando que eram ótimas para recuperação mental e espiritual. Dada a experiência anterior com agrião, poderosa erva curadora de ossos, ele não ousou negar. Tinha certeza que seria útil no futuro.
Os próximos a visitar foram os mudanti. Tinham sido alocados numa área próxima da Cova, lar dos Eblomdrude.
Assim que chegou lá, foi recebido por Key’inant, que implorou por uma luta. Daisysia e Ysgarlad se opuseram entusiasmadamente, mas foi só quando Abong, o caudilho dos mudanti apareceu, que ele, Key’inant, desistiu de seu embate.
O líder mudanti não trocou muitas palavras com Kai, mas apertou sua mão e, com olhos marejados, conseguiu passar tudo o que estava sentindo. Era agradecimento. Quando Kai partiu do lar Eblomdrude, ouviu os gritos extasiados de Key’inant:
– Tudo bem, Kai Stone! Eu recuso seu duelo desta vez, mas da próxima irei mostrar meu verdadeiro poder! HAHAHAHA!
Kai sorriu diante das palavras do sujeito.
Após isso visitou Plumrose, que chorou bastante e agradeceu enormemente por seus serviços prestados na guerra. A menina ainda apresentou a mãe, Pliena, e o tio, líder do Clã Asuso, Ortiga. Por causa de Oseias, Kai tentou ao máximo não ter uma opinião formada sobre eles. Mas considerou que foi melhor do que esperava.
Ambos foram gentis e agradeceram mais ainda que a pequena Plum. Oseias ficou num canto, envergonhado. Kai decidiu não tornar a experiencia do rapaz algo mais constrangedor.
E, por fim, mas não menos importante, tornou a visitar os Echanti. Pegou as criaturinhas demoníacas brigando pra ver quem estava no vão de entrada, mas foram todos enxotados por bicudas e gritos da matriarca Echanti.
Ómra surgiu seguido por Hyvina, e trocou palavras amigáveis a ambos. Desejou um bom casamento também. Ómra prometeu que seu filho teria Kai como padrinho, e o rapaz não soube como recusar. Tudo no jovem Echanti era exageradamente excessivo.
Fioled não estava na casa, então ele partiu pra próxima e última visita.
Chegou nos extremos do Sínodo, e quase que uma pequena comitiva o aguardava. Boa parte deles era a Unidade Fronteira. Arjuani encabeçava-os.
– Achei que não viesse se despedir de nós. – Disse Zinério, um dos mais antigos Púrpuros. Tornou-se capitão durante a guerra da Sequoia, o que foi uma grande escolha na opinião de Kai.
– Quando nos conhecemos, achei que não passava de um nekedoh imundo, assim como os outros – o vitanti iniciou um monólogo. – Mas à medida que cumprimos nossas obrigações, vi o quanto você era dedicado e, melhor, obstinado. Sempre devolveu o fervor incontido dos vitanti com nada mais do que qualquer um poderia fazer: erguer a cabeça e ignorar tudo isso. E você deu sua vida por nós várias vezes, tomando o controle da situação de maneiras incontáveis. Nunca esquecerei o que fez pelos mudanti, nem pela Unidade Fronteira, ou pela filha do meu querido líder Echanti. Obrigado, vice comandante Kai. É um grande homem.
– É isso aí!
Liziero e outros dois tessaya deram um passo a frente. Eram Julenefutiazin e Midfordgard. Ambos apertaram os braços do lado do corpo e abaixaram a cabeça.
– Nós agradecemos enormemente por nos salvar antes, sr. vice comandante. – Disseram ambos, em uníssono.
– Maneta pediu que eu viesse em seu nome declarar nosso mais sincero agradecimento – completou Liziero, se debulhando em lágrimas. – Foi uma honra servir com o senhor. Espero que tornemos a nos ver.
E todos bateram palmas. Kai, no seu jeito tímido de ser, não soube onde pôr a cara. Arjuani se aproximou e deu um soco no braço dele. Depois puxou-o num abraço raivoso, mas cheio de afeto e carinho.
– Espero que fique bem, irritadinho. Saiba que sempre haverá um lar para qual voltar, e seu posto sempre estará lhe esperando, meu vice.
O canto da boca de Kai tremeu.
– Não tente se matar, ok?
– Como se isso fosse possível.
Kai ergueu uma sobrancelha.
– Você sabe que é.
– Tsc. – Respondeu Arjuani.
– Você estalou a língua? Pra mim?
A vitanti soltou um riso baixo, fechando tanto os olhos quanto era possível.
– Obrigada por tudo, Kai. Saiba que essa amizade foi algo que nunca pensei que pudesse acontecer.
O outro levou a mão ao peito e sorriu, fingindo afetação.
– Obrigado pela parte que me toca.
– Não seja por isso.
A troca de farpas entre os dois rendeu uma gargalhada da Unidade Fronteira. E enquanto eles riam, Kai passou o olhar por cada um, observando se encontrava um certo alguém. Mas não a viu em nenhum lugar.
– Ela não está aqui, se é o que quer saber – sussurrou Arjuani.
O rapaz assentiu, pesaroso. Queria ao menos se despedir da amiga, mas tinha de ir. Ela simplesmente sumira.
– As coisas são como são. Deixei um recado pra ela na casa de seus pais, mas caso a veja, diga que sinto muito por ter ido sem me despedir.
– Acho que ela tem mais a dizer do que você.
De repente Kai se lembrou das acusações feitas por Ómra, deixando a menina totalmente envergonhada. Mas logo esqueceu disso. Olhou uma última vez para a amiga e se virou.
– Aonde pensa que vai? – Indagou ela.
– Embora – respondeu, apontando para a vila.
– Não a pé. – Ao dizer isso, ela apontou para cima, na direção de vários fênices voejando no topo da Orquídea. – Temos ao menos um último voo, não é, Zinério?
– Acho que sim, comandante.
Meia hora mais tarde haviam três fênices no ar de Tir’Tegeirian. Kai ia na do meio, com Arjuani ao seu lado. Outras duas flanqueavam-nos.
Em alguns minutos sobrevoaram todo o reino subterrâneo, observando aqueles pequenos pontos passarem feito borrões.
Kai notou que ficou tanto tempo ali, mas sequer chegou a conhecer metade daquelas pessoas. Pessoas que ele deu a vida incontáveis vezes. Será que sabiam sobre ele tanto quanto ele sabia sobre elas?
E assim passaram pelos túneis e passagens nas raízes, sendo levados até um lugar totalmente devastado.
Kai percebeu o pesar no rosto dos vitanti ao encararem o campo de batalha, tantos metros abaixo. Encararam o longo buraco feito pelo feitiço de Pelydryn, o jovem general que ainda permanecia em estado vegetativo após ter a mente remexida por Greylous.
O cheiro da morte instantaneamente penetrou no nariz de Kai. Ele não apagara a batalha de sua mente, ainda era atormentado pelo dia em que cortou Abwn ao meio com Amencer. Foi assim que conseguiram dar fim ao maléfico xamã.
Afastando estes pensamentos, Kai tocou no ombro da amiga.
– Aqui está bom – ao dizer isso, saltou da fênix, abrindo os braços e o vento açoitando seus cabelos e sua capa negra. Ouviu apenas o grito apavorado da vitanti logo acima de si. Não conseguiu conter a risada.
A poucos metros do chão, expeliu seu chi em torno de si, flutuando lentamente. Havia conseguido um controle melhor sobre o voo.
Pousou no chão com uma bela acrobacia e tornou a encarar o céu, nublado pelas copas das árvores. As frechas de luz solas perpassavam-na aqui e ali.
Logo a sensação de perigo retornou ao seu subconsciente. Era a primeira vez que estava em Bulogg sem o auxilio de outro vitanti, que era naturalmente protegido pela floresta. Eles não sentiam o perigo que o rapaz sentia.
Então começou seu passo rumo ao desconhecido. Antes que pudesse chegar na metade da devastação gerada na batalha, sentiu uma presença voejando logo acima dele. Sabia que não era Arjuani, pois os viu retornando pela passagem.
Ao ergueu o rosto, viu apenas uma fênix voando em círculos, indo lentamente até o chão.
Então a criatura pousou, e a pessoa sobre suas costas nem aguardou ela fechar suas asas.
– Então ia embora sem se despedir. – Gritou Fioled, marchando irritada na direção dele.
– Eu a procurei em todos os lugares, mas você sumiu.
Ela parou frente a ele, colocando a mão nos quadris e seu cabelo longo e negro voando ao redor dela. A luz do luar realçou sua pele roxa e os olhos cor de âmbar. Estava muito bonita naquela noite.
– Há um ano que nos conhecemos, Kai Stone, e você ia embora sem se despedir.
De repente ela era aquela Fioled irritadiça de um ano atrás novamente.
– São tantas coisas pra dizer a você que nem sei por onde começar. Primeiro achei um completo inútil e bobalhão por bater de frente com um gorila. Depois só tive pena de você, trazendo-o ao meu lar. Só que neste momento eu já o considerava um colega. E então... então tudo começou a desandar, e você se distanciou – ela disse isso diminuindo a própria distância entre eles. – Começou com essa sina de querer poder. Fez inimigos, mais do que poderia ter feito, mas continuou sendo a mesma pessoa que conheci naquele dia: um completo paspalho.
“E a guerra começou, você tinha que se meter em problemas. Trouxe a raiva de Ómra, e o ódio de Oren pra si, totalmente contrário ao que eu esperei de você. Mas continuou do mesmo jeito, ignorando todos os protestos e difamações que recebia. E quando você se sacrificou por mim... Kai, por Eteyow, eu quis te esganar, mas não tanto quanto quis esganar a mim mesma... por ser fraca e... e ser idiota... e ter sido tão estúpida ao ponto de fazê-lo acreditar que precisava me salvar.”
Neste ponto ela já estava chorando e se agarrando ao manto de Kai. Ele sorria levemente enquanto segurava seus ombros trêmulos.
– Passei meses achando que estava morto, com uma fagulha no fundo do meu coração acreditando... querendo acreditar que estava vivo. E você estava. E quando finalmente achei que poderíamos ter uma conversa sem ficar meses sem que você sumisse, você quase morreu novamente; e depois sumiu, e agora vai embora... Por que vocês são tão estúpidos?
Ele passou a mão pelos seus braços, sentindo o cheiro de cacau e lavanda vindos de seus cabelos. Ela soluçava, e ergueu aqueles enormes olhos âmbar para ele, enquanto seu rosto estava num ricto tênue.
– Você vai embora de novo, e tudo o que eu quero pedir é para que fique. Fique comigo Kai Stone, e não me deixe nunca mais, pois... pois eu te amo e não sei o que posso fazer sem você aqui.
Ela tinha conseguido parar de chorar, e encarava-o no fundo de seus olhos, tão corajosa quanto o dia em que se conheceram.
Kai sentia algo por ela, não podia negar. Se preocupava com a garota, só não sabia se era amor, se era a paixão ardente pela qual sempre pensou sentir por Ardara Murphy.
– Tenho coisas a fazer, Fioled. Infelizmente não posso corresponder ao que sente agora, nem sei se num futuro poderia. Sei que não quer ser tratada como frágil, e nem ser poupada de dores, mas...
Ela secou as lágrimas, entendendo o que ele queria dizer. Ficou séria, a sobrancelha franzindo. Kai sabia que tinha de negar isso. Não estava pronto para isso, mas céus... por que ela tinha de estar tão linda?
– Então não me negue isto.
Fioled inclinou a cabeça para cima, avançando com seus lábios suaves e entreabertos nos do de Kai, que aceitou o gesto. Lentamente seus lábios se encostaram e deslizaram um sobre o outro.
Ela tinha uma boca macia, e suavemente deslizou sua língua pela boca dele. Kai a trouxe para perto de si, preenchendo os espaços do corpo de Fioled com o seu, não conseguindo se desvencilhar daquilo. O gosto dela era ótimo, e o toque de sua pele somado ao cheiro tornaram toda a situação ainda melhor.
Kai não conseguia se desvencilhar enquanto suas bocas se aninhavam e criavam um vínculo somente deles. Suas mentes não pensavam em nada a não ser o quanto aquilo era bom. E se beijaram por longos minutos, que Fioled gostaria de eternizar para sempre. Ela queria ficar naquele aconchego, levemente completa pelos traços firmes e esguios do rapaz.
Quando se afastaram, ela pousou a cabeça em seu peito e sorriu, sabendo que aquilo era a única coisa que o rapaz poderia dar a ela, pois seu coração não lhe pertencia. Mas para ela, aquilo bastou. E as próximas palavras foram-lhe suficientes, não importando o que de fato Kai sentia ou deixava de sentir.
– Eu te amo, Kai Stone, e espero que algum dia sinta isso tanto quanto estou sentindo agora.
E ela se afastou, lutando para se desvencilhar do toque morno e ao mesmo tempo frio de Kai. Correu até sua fênix, gotas de lágrimas pingando por seus longos cílios, e alçou voo.
Observando a garota partir, Kai sentiu um aperto no peito. Sabia que o gesto provavelmente daria esperanças a ela. Não podia negar que adorou; mas ela era sua amiga e a última coisa que queria era magoá-la. Apesar das últimas palavras ditas, sabia também que seria difícil que a mocinha se desprendesse disso.
– Eu também espero, Fioled – pronunciou, pesaroso. – Eu também espero.