Volume 1
Capítulo 62: LIVRE DE AMARRAS
– Você enlouqueceu? – Gritaram vários vitanti juntos.
– Ainda precisa de alguns dias de descanso?
– É totalmente imperativo.
– Impossível.
– Inadmissível.
– Sacrilégio.
‘Parece que ele vai afundar por si só’ pensou Carmim, ainda massageando a garganta. Pegou Cineáltas encarando-o, e lutou para não desviar o olhar. Foi impossível.
Terong se levantou, espalmando as mãos para baixo.
– Vamos manter o respeito. Mael é nosso líder-
– Que precisa passar pela nomeação antes – Atalhou um vitanti magro de rosto aquilino erguendo o indicador incisivamente. – Não esqueçamos disso.
– E não esqueceremos, Grant. No entanto, vamos agir feito pessoas sãs. Acabamos de votar em Mael para líder, e já estamos questionando suas decisões. Percebem a imaturidade?
– Imaturidade? Então você apoia essa loucura? Deixar um lar que vivemos gerações após gerações. O lugar onde os pais de nossos pais, e os pais destes nasceram, viveram e morreram.
POW!
Todos viraram-se para Cineáltas, que tinha dado um soco na mesa.
– Até quando vamos fazer vista grossa pra realidade? Bastou alguns minutos de pé para Mael notar o que realmente acontece. Vamos ouvi-lo.
Grant se ergueu da cadeira. Aturdido e feito uma sombra, Kasuss seguiu o gesto do colega ao lado. Ortega revirou os olhos diante disso.
– E quem o nomeou a voz aqui? Por que deveríamos escutar um tolo que não sabe resolver as coisas que não seja com agressividade?
O líder Echanti fitou o outro, uma calma surpreendente em sua feição.
– N-não tenho medo de você. Não pense que sou como Carmim que pode ser intimidado por um mero-
– Cale essa sua boca, rato imundo. – Gritou Carmim, a voz ainda rouca. – De que serve um líder imbecil feito você? Sem contar essa rolha de tampar buracos. Será que não consegue pensar por si próprio, inútil? Deixe o líder falar.
Apesar de notarem o escárnio no tom de Carmim, alguns o olharam com ar de agradecimento. Kasuss vinha realmente se mostrando um desserviço para com o Sínodo. Grant sequer poderia ser adicionado à soma; era uma inutilidade ambulante.
Kai pigarreou. Não seria levianamente enganado pelo vitanti. Sabia de seu poder de persuasão. Bastaria um passo em falso e sua cabeça rolaria ali mesmo. O jovem tinha plena convicção em sua capacidade.
– Faço das palavras de Terong as minhas: vamos manter o respeito. – Retorquiu Mael. – De nada adianta bradar insultos e agir feito crianças num parque. Somos homens adultos.
Um silêncio se seguiu. As palavras de Mael foram direcionadas a todos, sem buscar apoiar um lado ou outro.
Ele se encostou na cadeira, passando a mão pelos cabelos negros. Virou-se levemente para a janela, encarando o sol artificial pairando bem no meio do céu também artificial.
– Eu entendo seus anseios e medos. Eu sei disso tanto quanto vocês, mas a realidade é esta: não temos mais como sobreviver debaixo da terra sem a proteção de Bulogg. Esta terra já não é mais jovem, e tudo aquilo que tanto nos auxiliou uma hora há de falhar. Precisamos de um novo lar, um lugar que possamos cultivar, criar nossos animais e filhos. Repito: uma hora tudo o que temos irá faltar. E esse dia está chegando.
Cineáltas assentiu, pesaroso.
– Em questão de poucos meses houve uma drástica baixa na pesca. Os rios que antes banhavam nossos quintais estão trazendo cada vez menos especiaria. Não sei o que pode estar acontecendo, mas a vasta terra que um dia foi tão rica também está em demasiada queda.
Uma tristeza sondou o lugar. Eles sabiam que era necessária uma mudança, mas estavam presos demais em suas raízes. Era custoso deixar tudo aquilo para trás.
– Greylous lançou uma praga sobre estas terras – anunciou Kai, despreocupado se tinha sido chamado ou não para a conversa. – Era o que ele vinha fazendo todo esse tempo.
– Que sabe sobre isso? – Perguntou Terong, bem mais ameno.
– Pouco..., mas também muito. Tudo foi um plano meticuloso, pensado por décadas, senão séculos. Mas houve um erro no plano dele, que é a vantagem de vocês.
Carmim sorriu maliciosamente.
– Me desculpe, moleque, mas o que seria essa vantagem? Não vejo nenhuma.
Kai balançou a cabeça meticulosamente, em tom de deboche.
– Abwn também planejou bastante, e isso foi a linha tênue entre sua extinção e sobrevivência. Se hoje estão aqui se reunindo em busca de uma solução, agradeçam a ele e, melhor ainda, ao seu deus por terem essa oportunidade valiosa.
– O menino é um lunático... – Balbuciou alguém.
– Não há como retomar o que foi perdido, e é bastante incomodo ter de se mudar nesta altura do campeonato – continuou ele, alheio ao comentário. – Mas vocês têm uns aos outros, e desde que estejam todos juntos, haverá sempre um lar para que retornar. Então parem de agir feito crianças birrentas e aceitem sua realidade.
Novo silêncio pairou. Ninguém ousou dizer nada. Estavam todos cansados, tanto de falar incansavelmente, sem obter nenhuma nova perspectiva, quanto de discutirem pelos mesmos motivos sem dar sossego.
Mael notou isso. Não tinha uma esperança renovadora ali. Era isso ou nada. E ele estava apto a tomar a melhor decisão para seu povo.
– É uma sugestão, carregada de uma verdade aterradora. Não vamos sobreviver sob as novas circunstancias. Não haverá solo para pisar, plantar e colher. Tudo há de ruir, e nós precisamos mudar. E já.
– Levaria meses para que nos adaptássemos ao novo cotidiano. Como pretende prosseguir com isso? – Indagou Ilygaid. Como era um dos mais velhos no Sínodo, muitos ali o respeitavam. Nem por isso deixou de ser alvo de olhares acusadores.
– Não estão realmente pensando em apoiar esta loucura, estão? – Indagou Kasuss.
– E qual ideia você tem? – Perguntou Ortega. Depois de Cineáltas, este era um dos líderes mais imponentes ali. Talvez mais ameaçador que o próprio Carmim. – Porque não vi você dar sugestão alguma, só indo contra tudo o que Mael disse.
– Já coloquei o plano em curso. – Disse Mael.
Olhares assustados e curiosos varreram o rosto dele. Carmim o encarou por um bom tempo, buscando algum traço de hesitação. Não havia.
– Com que direito você-
– Com o direito de general e líder das tropas externas. – Interrompeu Mael no meio de uma acusação velada do líder Grant. – Lembre-se que antes de líder de todos os vitanti, também sou um general, e um dos vitanti de campo mais antigo de toda Orquídea. Passei por lugares que você nunca imaginou passar, sequer sonhou com lugares como esses. Vi e vivi tantas coisas que sua mente abobadada e limitada sequer poderia imaginar. E com esse poder, ordenei que meus soldados ao redor do continente buscassem já um lugar para o qual pudéssemos chamar de lar.
Terong fitou Mael, surpreso. Ele não achou que as coisas tivessem tão avançadas. Imaginou até que levaria tempo e muitas reuniões como essa para que simplesmente ordenassem alguma coisa.
Mas Mael agiu, utilizando de ferramentas dentro da lei. E essa era a diferença entre um líder e alguém que queria liderar. Mael não buscou aquilo pra si, mas visualizou o futuro de uma raça, antecipando planos e justificando ações, pois sabia que seria acusado como foi agora. Ele apenas agiu, sem precisar comunicar ou pedir uma opinião. E se porventura isso funcionasse no futuro, ele receberia toda a glória. Não que ele a quisesse.
– Então não temos escolha? Mal foi nomeado líder e já quer que nos ajoelhemos?
– Acho que entendeu errado, Kasuss – Mael atalhou. – Você tem uma escolha. Não vou proibi-lo de ficar em Orquídea, mas como líder, e sei que a nomeação há de acontecer em breve, tomei e tomarei todas as decisões em prol do meu povo. Quem quiser vir comigo, que venha. Se não quiser, afunde-se com aqueles cegos demais para ver o que está por vir.
Alguns se encheram de novas emoções. Mael não se mostrou ser alguém com uma verdade absoluta. Um pai que tenta educar os filhos por sua superioridade de aprendizado e vivências. Ele estava disposto a permitir que os vitanti tivessem a escolha de errar. Ele permitiria isso, mesmo que isso os levasse à uma ruína sem precedentes.
E Mael deixou isso bem claro.
– Assim que houver a nomeação, criarei um novo conselho, com novos membros. Sempre achei que quantidade não superava capacidade, e isto se mostrou verdade nestes últimos dois meses. Esse conselho esteve repleto de pessoas que sequer tiveram a capacidade de tomar decisões em unidade. Me desculpem falar isso, mas vocês falharam, e se mostraram as pessoas mais incompetentes que já conheci na minha vida.
“Mas não foi culpa de vocês. Estavam com medo, sem perspectiva de nada. Não estou me colocando como o salvador da pátria, mas tenho ideias que podem nos retirar de uma catástrofe anunciada. Aqueles que sentirem vontade de me seguir: bem. Seguirei com meu plano mesmo que a minoria tenha o interesse de ter uma vida nova. E ao resto deixo apenas nas mãos de Eteyow.”
E outro silêncio se fez na sala. Ninguém ousaria dizer algo após palavras tão duras. Mael sabia que era necessário, pois ninguém ali era mais criança. De que adiantaria ele tratar todos com flores se o que eles queriam era apenas morte definitiva? Tinha de pôr os pingos nos is; e pôs. Tinha de ser sincero, mesmo que a verdade doesse. E foi.
Assim, tudo estaria em suas mãos. Não queria amedronta-los, mas era a verdade crua. Tinham de se mudar de Orquídea, ou em cinco anos todos ali seriam extirpados da face de Bulogg.
– Não há nada que possa ser feito, há? – Perguntou Kasuss, mais comedido. Mael sentia o medo do homem tomando-o a todo momento. Não precisaria de alguém assim, pelo menos não agora. Mas estava disposto a guia-lo para um lugar bom, que pudesse viver como sempre viveu.
– Não, velho colega, não há.
– E como há de funcionar isso? É como Ilygaid disse: deveria levar meses para ter um início.
– Primeiro eis o que vamos fazer: começar a se preparar para o inevitável. Assim que um lar for encontrado, já estaremos todos prontos para partir. Segundo: vou refazer o conselho, e me perdoem alguns que estão aqui, mas será necessária uma reformulação. Terceiro: essa reformulação há de acabar com o Sínodo; e acredito que todos aqui estão em comum acordo. Antes das duas últimas situações acontecerem, precisamos resolver outros assuntos; e lido com isso até mesmo como forma de agradecimento aos que hão de deixar este conselho.
“Vocês terão voz ativa em assuntos importantes, mas ao que se diz respeito às reuniões privadas, só saberão após estas ocorrerem, e se caso declararmos que é de interesse seu saber. Com isso, vou informar os membros do novo conselho.”
Alguns prenderam a respiração. Ninguém imaginou que Mael já tomaria essa decisão assim, em cima da hora. Foi tudo muito rápido, e isso mostrava a seriedade da situação.
– Você ainda não foi nomeado, Mael. – Grant pigarreou. – Não deve haver uma mudança de conselho enquanto isso não ocorrer. Siga as regras como de fato são.
Ortega franziu a testa.
– Você ainda não entendeu que haverão novas regras? Nós votamos nele para líder, que diferença isso faz ser anunciado agora ou daqui uma semana?
– A diferença é que as novas regras e os novos interesses só entrarão em vigor quando tudo for oficializado. É e sempre foi assim. Mesmo que não exista Sínodo, a civilização deve ser mantida. Já pensou se qualquer um decide passar por cima do que é lei, só pra satisfazer os próprios interesses?
– Só que ele não está satisfazendo os próprios interesses, não entendeu a seriedade disso tudo? – Indagou Cineáltas.
– Eu entendi melhor do que você, seu brutamontes atabalhoado. E continuo afirmando que a regra deve ser seguida.
– Isso tudo pra manter seu ego intacto, seu pedaço de vara pau? Só pra continuar sendo membro do Sínodo, é?
– Você me chamou de quê?
Outra discussão generalizada começou, com xingamentos vindos dali, e dedos sendo apontados de lá. Cineáltas se ergueu, gritando enquanto Grant recuou, amedrontado. Mas seu vigor retornou quando percebeu que Ortega e Terong tentavam acalmar o outro; isso deu confiança ao vitanti magricelo. Ele tornou a insultar Cineáltas.
O resto apenas encarava a situação como fizera no início.
Kai olhou para Mael, que suspirou, cansado demais pra tudo isso. Quando seus olhos se encontraram, sorriram ao mesmo tempo.
Finalmente os ânimos se acalmaram, e Mael respirou fundo. Tallanthin se levantou, com a voz ainda a ser obedecida ali. Mesmo com Mael acordando, tudo ainda precisava ser oficializado, e ele não era o líder definitivo.
– Tudo bem! A nomeação acontecerá dentro de cinco dias. Reunião encerrada.
Grant se ergueu, derrubando a cadeira e sendo seguido por Kasuss.
– E o caso desse moleque? Ele atacou deliberadamente um líder, sem contar que desobedeceu a nossas leis. E não me faça falar sobre essa menina!
Todos os olhos seguiram o dedo esticado do vitanti, caindo em Arjuani, que fazia seu melhor para ficar longe da conversa. Por um instante, pareceu a ela que todos esqueceram da situação do campo de batalha.
Com o general Saanp tendo sido morto na guerra, ela achou que isso seria enterrado com ele. Mas não poderia ser tão boba.
Rezou esse tempo todo para que ninguém soubesse sobre suas limitações. Acontece que os líderes tinham seus olheiros no meio da batalha. E não gostaram nada ao saber que uma Verband, clã daqueles condenados a nunca compreender a razão, acabou por compreender. E estavam esperando apenas uma chance para isso. Uma chance para tocar no assunto.
Carmim ergueu um lábio malicioso. Com a situação de Kai e Cineáltas, ele esperava resolver isso em outro momento. Apesar de não ser de seu interesse, quanto mais desestabilizasse o lado de Mael, melhor seria. E percebeu que a tal Arjuani era um grande componente no lado oposto.
O rosto de Mael ficou sombrio.
– É uma situação delicada, que merece mais atenção do que ser tratado às pressas.
– Você só quer tempo. – Balbuciou Kasuss. A paciência de Mael com o sujeito estava no fim. – E nem preciso tornar a falar sobre essa peste desbocada que é esse nekedoh. Ele me ameaçou!
– E confirmo que se estivéssemos em outro lugar eu já teria arrancado sua língua fora. – Falou Kai, lentamente.
Kasuss arregalou os olhos, agarrando o próprio peito.
– Isso é uma ameaça?
– Isso é uma promessa.
– Que ultraje.
– Não vamos começar novamente com isso! – Berrou Mael, sua paciência por um fio. – E há outras coisas com que se preocupar do que uma punição de vidas atrás.
– Mas isso é a lei. É a justiça.
– E a justiça já não foi feita? – Mael finalmente explodiu. – Anos e anos subjugando esse clã, que geração após geração, sempre deu o máximo de si. E tudo por quê? Por quererem a paz. Por sonharem com o próprio perdão.
– Foi por amar os humanos demais, e você sabe disso. – Alarmou Grant.
Isso parecia algo irritante, mas de todos ali, apenas Grant e Kasuss iam contra tudo. Pareciam duas crianças. Mas alguns notavam os traços de Carmim por trás deles. Ele foi bastante persuasivo nisso. Como não conseguiria trazer os membros antigos do Sínodo para seu lado e acreditava que Ortega e Terong não iam com sua cara, foi no lado mais fraco.
Ele sabia que os membros antigos do Sínodo seriam imparciais. Terong ficaria sobre o muro, e Ortega iria meticulosamente compreender a situação, apoiando o lado que mais lhe favorecesse. Carmim pensou estar vencendo nessa estratégia política, quando percebeu que apenas Cineáltas e Tallanthin apoiavam Mael dentro do Sínodo.
Poderiam haver outros senhores de clãs, mas nenhum com tanta importância quanto aqueles que ali estavam.
Mas o tiro saiu pela culatra. Carmim logo percebeu que os que escolheu, apesar de serem marionetes fáceis de se manipular, eram abestados ao extremo. Sua paciência com eles também estava em seu limite.
Com a acusação de Grant, Kai encarou Arjuani. Ela não fazia nenhum pouco o tipo de mulher inocente e digna de pena. Nem mesmo naquele momento abaixou a cabeça. Encarava Grant como se fosse um igual.
Mas sob o olhar de Kai, ela ruborizou levemente.
– E o que há de errado nisso? O que os humanos fizeram para merecer todo esse ódio?
– Extirparam nossa voz. Destruíram nosso lar. Nos escravizaram anos e anos. Só porque um deles lhe traz simpatia não significa que todos sejam assim. Duvido até mesmo que este seja de todo bom.
– E não sou. – Disse Kai, finalmente se levantando. Estava cansado de tudo aquilo. Não notou logo, mas já tinha tomado uma decisão também. – Ninguém é perfeito, e saber disso torna a vida leve, livre de amarras. No entanto, fingir que é bom, ser algo que não é e, até mesmo acreditar nas mentiras que conta para si... nem mesmo os humanos tem tamanha habilidade.
– Que é que você quer dizer com isso?
– Não é da sua conta. – Respondeu Kai, agindo feito menino. Mas ele adorava tirar esses homens do sério.
Grant bateu a mão na mesa.
– Volte aqui já! Você está proibido de sair desta sala. Está terminantemente preso! Prendam-no, este é um invasor. Alguém faça algo.
Mas nem Kai, nem ninguém deu bola pro que o vitanti falou. O rapaz apenas passou pelo arco de entrada, e se dirigiu pelos corredores afora. Era hora de partir, e ele nunca ficou tão aliviado com uma decisão como nesse momento.