Volume 1

Capítulo 61: COVARDES E SALVADORES

 

Ou o que?

Kai realmente não era o tipo que buscava briga. Ele até odiava esse tipo de pessoa que saia por aí caçando um pobre coitado pra se mostrar superior.

Mas ele estava frustrado consigo mesmo. Não se tratava mais de dar tempo a Mael. Era somente a irritação tomando conta dele. Irritação por não ter finalizado Carmim a tempo.

Percebeu que o tal Terong tinha um semblante pacífico, apesar de estarem se encarando. E notou também o sorriso maléfico de Carmim começando a se erguer.

Provavelmente esse tal Terong era alguém importante. Do contrário, Cineáltas teria levado um exército até ali, e não ele. Sem contar que a cobra tinha ficado mais calma quando ele chegou.

Terong era a última fonte de apoio capaz de evitar um líder ruim em Orquídea. Kai deduziu na hora. E decidir se gostava dele ou não ia muito nessa expectativa.

Contudo, todos os passos de Kai deveriam levar os outros a crer que ele agia sozinho. Que, em hipótese alguma, Cineáltas o ajudou porque quis. Isso iria desestabilizar o lado de Mael, já que o Echanti era seu principal apoiador dentre os chefes. Se tivesse que atacar o líder Echanti para justificar essa narrativa, atacaria.

‘Esse pirralho tem titica na cabeça?’ Carmim pensou consigo mesmo.

Terong ergueu uma sobrancelha.

– Acha que com essas feridas teria alguma chance contra mim?

Kai apontou para o ombro, sangue escorria da ferida feita por Frian.

– Isso? Ah! Isso não é nada. Deveria ver o outro cara.

– Acredito que ele deveria ser preso, Terong – Carmim atalhou, balançando a cabeça debochadamente. – Uma reunião deveria ser feita para definir a nova penalidade deles.

Terong ergueu uma sobrancelha, virando-se para o outro.

– Com eles, se refere a quem?

– Não está claro? – Carmim sorriu.

O estomago de Terong se revirou. Se existia alguém que gostava de Carmim, esse alguém já deveria ter virado cinzas há muito tempo.

– Não está – Terong cruzou os braços. – Principalmente se a história de que Kai Stone fez Ómra de refém for verdadeira. Admira-me que você esteja propondo isso tão descaradamente após induzir-me a pensar de outra maneira. Por algum acaso me vê como alguém insípido?

Carmim arregalou os olhos. Tentar manipular Terong não funcionaria. Nunca funcionou, afinal. O sujeito era esperto demais. E mesmo que não gostasse dele com toda essa conversa de seguir a cultura, o respeitava por simplesmente ter a capacidade de dominar as massas.  

‘Esse desgraçado é mais astuto que pensei.’

– Longe de mim, Terong... só pensei que-

– Todo o seu projeto de vida sempre foi tentar prejudicar Cineáltas, apenas um cego e tolo não enxerga isso. – Atalhou Terong. – Não sei do motivo da intriga entre vocês, e com certeza não quero saber, mas há questões maiores do que essa rixa antiga. E se fosse pra levar Cineáltas ao conselho, eu levaria você também, Carmim.

O sujeito arregalou os olhos, surpreso.

– Eu?

– Sim. Afinal, você invadiu o território de outro chefe sem o consentimento deste, e pra piorar estacionou tropas. Sabe que isso é quase um anuncio de guerra, não é? Deveria ter entrado em contato com o conselho antes.

– Assim como ele entrou quando falsamente deixou que todos pensassem que o filhote de macaco pelado tinha ido embora? – Rebateu Carmim apontando para Cineáltas.

– Um erro não anula o outro, Carmim. Eu sinceramente achava que você era esperto, que não agia com base em suas emoções. Deve ser por isso que nunca entendeu a razão. É prepotente demais.  

Entender a razão para os vitanti era algo sagrado, divino. Aqueles que a entendiam não somente detinham poder sobre o mundo ao redor, podendo moldá-lo com um só pensamento, mas tinham uma acuidade espiritual elevada. Eram os seres escolhidos por Eteyow, os seres com dom. Por isso estavam em tão poucos dentre os vitanti.

Se você compreendesse a razão, estava um passo mais perto do divino. Havia aqueles que nasciam com a razão, como os generais e, consequentemente, o escolhido como Neru’dian. E outros a adquiriam conforme o tempo. Terong e Cineáltas eram esse tipo de gente. Carmim, não.

E isso o corroía por dentro.

– Não faz sentido ter essa conversa, no entanto – Terong suspirou. – Deixemos que o líder honorário decida.

– Acha mesmo que Tallanthin mudaria alguma coisa? – Carmim balbuciou. – Se suas ordens anteriores foram ignoradas desse jeito, avalie as próximas. Veja, eu realmente me padeço por ter de dizer isso, mas o homem está velho, não pode liderar mais...

– Não será Tallanthin quem dirá algo. E mais respeito com meu mestre.

Carmim se alarmou.

– Ah não? E quem vai? Há um novo líder honorário?

Kai soltou um bufo seguido de uma risada.

– Você nasceu ontem?

– Você! – Carmim apontou para Kai. – Dirija a palavra a mim mais uma vez e eu corto sua cabeça.

– Corta, é? – Indagou Kai.

– Parem! – Gritou Terong, sua voz vazando manti. – Os dois! Carmim, mais uma dessas e teremos um problema sério. Cineáltas! Controle esse seu moleque.

O líder Echanti pousou a mão sobre o ombro de Kai e apertou. Nem muito fraco que dissesse: ‘Estou com você’, e nem muito forte que dissesse: ‘Está encrencado.’

Foi neutro, que queria dizer: ‘Já chega!’.

Terong suspirou e pressionou as têmporas com o indicador e o polegar. Depois passou a mão no rosto diversas vezes.

– Não há um novo líder honorário, Carmim. Isto porque... Mael acordou.



***



O conselho se reuniu às pressas no Sínodo. Muita coisa havia acontecido recentemente: apoiadores de Carmim exigindo que esse se tornasse o novo líder do Sínodo bem como de toda a raça.

Apoiadores de Mael defendendo que o pedido de Abwn fosse atendido. Esperariam o tempo que fosse necessário por Mael. Mas era visível que a falta de um conselheiro espiritual estava causando brigas internas no Sínodo.


Isto é, haviam pessoas que apoiavam Carmim por puro medo do futuro. Por toda sua vida tiveram alguém que indicasse o caminho. Agora essa pessoa não existia.

Em contraparte, iniciou-se o murmurinho que Kai Stone ainda estava na Orquídea. Lógico, deduziram que Cineáltas estava por trás disso. Não associaram imediatamente a imagem de Mael, mas seu lado ficou bastante desgastado, com mais pessoas apoiando Carmim ao longo das semanas.

Terong estava ciente do que ele vinha fazendo em seu domínio. Induzindo o povo a acreditar que a era de Neru’dian já havia passado, que se quisessem sobreviver ao que viria, teriam de ter um líder forte, que não fosse tão gentil quanto os Eblomdrude. Mas nada que pudesse provar. Até onde sabia, Carmim poderia ter usado um de seus seguidores como cabeça da rebeldia em destaque.

E tudo teria sido diferente se Mael não tivesse acordado. Uma guerra estouraria, e Kai já estava pronto para matar Carmim, mesmo que não soubesse como faria isso. O homem não era alguém simples.

Na verdade, foi justamente um líder que deixou tudo em ordem por ora. Mesmo que este fosse honorário. Ficara claro que as coisas precisariam mudar. Mas não com Carmim na liderança. Eles afundariam antes mesmo de voltar a ver o horizonte.

E Mael acordou; o conselho se reuniu no mesmo lugar de sempre.

Ao redor da longa mesa todos estavam ali. Os chefes e também alguns membros importantes do Sínodo. Exceto Mael.

Tallanthin apoiava o rosto na mão. Uma discussão generalizada sobre Kai Stone estar ali havia começado assim que o rapaz deu as caras.

– Espero que haja uma explicação para isso, Cineáltas – berrou o vitanti gordo que Kai vira antes. – Uma explicação detalhada e coerente sobre isso.

Terong e Inseyftal tinham pequena noção sobre o acontecido. Isto é, Carmim os deixou a par: Kai fez Ómra de refém. Ameaçou Cineáltas e toda sua família. Mas a general estava duvidosa sobre isso, e Terong tinha seus pensamentos ambíguos.

Para ele, pareceu uma atitude tomada às pressas. E realmente foi.

– Você sabia da permanência dele por todo esse tempo, de outro modo não teria levado Terong até lá. Espero que tenha um motivo bem importante para isso.

Cineáltas franziu a testa.

– Não devo satisfação nenhuma a você, Karuss.

Karuss se empertigou.

– Deve ao Sínodo!

– Você é apenas um covarde. Assim como sempre foi.

– Não mude de assunto.

– Mudo! E ainda digo mais: Carmim invadiu meu território com uma tropa de 300 soldados. Isso é crime legislativo.

– Ah, pelo amor de Eteyow! – Carmim jogou os braços pra cima. – Vai continuar com essa história até quando? O moleque ameaçou explodir seu filho.

Todos arregalaram os olhos, virando-se para Kai. Um novo burburinho começou, vários falando ao mesmo tempo.

‘Isso. Mesmo que não seja verdade, conseguirei desestimular os apoiadores de Mael. Nunca que ele ficará contra o amigo.’ Pensou Carmim.

– Eu sabia! – Berrou Karuss, pressuroso. – Esse menino é uma desgraça. Desde que chegou aqui só trouxe isso com ele: desgraça. Ainda ousa ameaçar um chefe de vila. Não à toa todos esses humanos são asquerosos.

Uma enxurrada de comentários se iniciou, muitos olhando diretamente para Kai. Carmim havia conseguido. Tinha desestabilizado aqueles que deveriam ser o ponto onde reside a calmaria, onde os problemas hão de ser resolvidos.

De repente Kai sentiu um medo e pesar profundo. Pesar por ver como Abwn fazia falta; e medo pelo que seu amigo teria de enfrentar no futuro. A antiga geração estava parcialmente corrompida, e muito provavelmente a futura ia por esse caminho. Bastava ver como Oren agia. Tudo por medo.

Uma risada seca produziu ecos, fazendo o falatório diminuir. Todos se viraram para Kai.

– Qual o motivo da risada, nekedoh? Pensa que tem direito de fala aq-

– Vocês são patéticos! – Anunciou Kai, interrompendo o outro. – Todos vocês. Sinto pena dos vitanti.

Um silêncio pairou. Alguns pareciam prender suas respirações. Não se sabia ao certo, mas o misto de emoções era diverso. Alguns ali até mesmo concordavam, só que no fundo, bem no fundo de seus corações. Não ousariam pronunciar sequer uma palavra de apoio. Afinal, era um curo nekedoh falando!

– Veem esse asco de vitanti fazer o que quer, em silêncio. – Ele apontou para Carmim. – Temem um homem covarde, de palavras vazias e atitudes parciais. Se calam perante isso. Se julgam cheios de justiça, mas ao primeiro sinal de problema, se escondem atrás de seus títulos. Nenhum de vocês difere dos homens que conheci. Dos humanos tão odiados.

Ele olhou ao redor, encarando bem o rosto de cada um.

– Há poucos aqui a quem respeito. – Passou seu olhar por Cineáltas, Tallanthin, Athiná, Ilygaid e Inseyftal. – O resto não passam de tampões.  

– Não precisamos do seu respeito!

– E nem eu quero que precisem! Decidi ficar em Orquídea porque sabia que isso aconteceria. Antes de mais nada, eu nunca mataria Ómra, mas precisei tomar medidas desesperadoras. Diante do primeiro sinal de problema, dariam o cargo pra Carmim, que sequer liga pra vocês. Ele manipulou pessoas; planejou e orquestrou uma guerra civil. E vocês se calam, preocupados porque fiquei mais do que um ou dois meses aqui. Não ligo se me odeiam, mas se eu precisasse exterminar todos vocês agora mesmo, exterminaria, tudo pra garantir a sobrevivência do povo vitanti.

Kai cuspiu no chão, uma raiva incontida subindo por sua face.

– Que ultraje!

– Prendam-no!

– Cortem sua cabeça, isso é um delito grave!

– Ele está ameaçando nos matar.

Uma série de pessoas falou ao mesmo tempo. Kai achou todos muito ridículos. Espalmou sua mão na mesa e todos se calaram. Retomou seu dialogo:

– Os vitanti não merecem líderes tão omissos e estúpidos quanto esses que vejo aqui. Após uma guerra com tantas perdas, vocês deveriam ter tentado se reerguer, esperado pelo acordar do seu líder. E se há um aqui que não esperava esse momento, não entendo o motivo de sua permanência neste recinto. Fiquei unicamente para evitar isso. Essa briga visceral pelo poder. Todos não passam de uma versão menos patética de Carmim.  

“Acredito que boa parte compreendeu e apoiou a decisão de Abwn de me querer aqui, como parte de seu entendimento acerca da razão. Mas isso em algum momento se perdeu. Anuviou suas mentes. Neste momento, não haveria sequer motivo para existir um Sínodo.”

– Isso é uma ameaça? – Gritou Karuss.

– Se você abrir essa maldita boca novamente, eu arranco essa sua maldita língua, gordo imbecil! – Bradou Kai. Cineáltas nunca o vira assim, tão revoltado. Karuss arregalou os olhos e comprimiu os lábios. – Isso é uma ameaça. Veja a diferença.

A risada de Carmim ecoou pelo lugar. Os olhares foram para ele.

– Veem o que estou dizendo? Se esse é o seguidor mais fraco de Mael, avaliem como pensa o tal ‘príncipe do éter’. É assim que Kai nos vê: peões, servidores incondicionais de Mael. Seguidores de sua vontade absoluta. Temos pensamento. Temos-

Ele foi interrompido pela mão de Cineáltas, que o agarrou pelo pescoço, apertando firme e o empurrando fortemente na parede. Alguns se levantaram nas cadeiras. Outros continuaram apenas observando a situação, analisando o que viria a seguir.

– Se disser mais um a... eu juro... eu juro pela vida de meu filho, que quebro seu pescoço aqui mesmo, seu porco nojento.

Carmim lutou para respirar, os olhos lacrimejando. Droga, ele não era páreo para Cineáltas. O sujeito sempre foi mais forte do que ele.

– Você está defendendo aquele que tentou salvar seu filho, Cineáltas. Deixe de ser ingrato. – Bradou Karuss.

– Ingrato? Isso nunca aconteceu. Kai nunca faria nada contra mim ou minha família. – Cineáltas estava irado. – Agora que Mael acordou, não ligo para o que pode acontecer...

– Cine, tenha cuidado com o que vai falar. – Alertou Terong.

– Não importa, Ter. Eu mesmo permiti que Kai ficasse em Orquídea afim de se tornar um mártir. Ele me alertou que isto poderia acontecer, essa guerra estúpida pelo poder iniciada por essa cobra... – ele puxou e empurrou Carmim na parede. – E pra evitar que eu sujasse minhas mãos... pra que eu não quebrasse esse desgraçado em mil pedacinhos, sugeriu que ele fosse o encarregado disso. Que ele levasse o  ódio do povo, a troco de nada. E quer saber? Nem me importo mais, só quero que Carmim diga mais uma palavra pra que eu acabe com a existência insignificante dele!

Cineáltas estava irado. Fervilhando em um ódio reprimido de anos atrás, quando o sujeito ameaçou seu filho.

– Isto é verdade? – Indagou um dos sujeitos, olhando de Kai Stone para Cineáltas.

– Temo que sim. – Tallanthin concluiu. – Cineáltas não é de mentir.

O clima sofreu uma adversidade e emoções. Alguns até mesmo observando Kai com outros olhos. A pergunta que não cessava em pairar no ar era: Por que esse nekedoh continuava se sacrificando tanto pelos vitanti? Que tipo de empenho velado em ajuda-los era esse? Apesar de ser sempre maltratado, ele não hesitava nem um instante. E continuava fazendo isso seguidamente. Já não estava na hora desse rapaz ser aceito? Ele já não mostrara sua lealdade, sua vontade de salva-los mais de uma vez?

Enquanto esses pensamentos rondavam na cabeça de alguns, outros iniciavam a ter até mesmo uma espécie de respeito por ele.

Entrementes, uma mão pousou no ombro de Cineáltas. Ao se virar, encarou olhos castanhos o observando por trás de óculos de aro redondo.

– Vamos manter a calma, meu amigo, há muito o que conversarmos. – Disse Mael, seguido por Arjuani.

– Mael! – Disseram alguns.

Um novo misto de emoções explodiu no lugar. Era a pessoa que esperavam por tanto tempo.

Enquanto alguns se levantavam e ia falar com o sujeito, temerosos e cheios de lágrimas nos olhos, Kai observou o amigo. Havia sofrido bastante. Estava mais pálido que o normal. Faltava-lhe um braço. Vestia roupas frouxas de cor bege.

– Acredito que há muito o que conversar. – Disse o vitanti.

Tallanthin se ergueu da cadeira, feliz.

– É muito bom vê-lo, meu neto.

– Digo o mesmo, querido avô.

Quando os ânimos se acalmaram, com aqueles de pé ganhando um assento na mesa, Mael se sentou na cadeira que ficava de costas para a parede. Aquela iluminada pelos raios solares artificiais.

Com ele, haviam cerca de 13 pessoas, dentre eles os seis chefes de província, Kai Stone, três conselheiros do Sínodo, incluindo os amigos de Abwn, Inseyftal, Arjuani e Mael.

As duas moças flanquearam o vitanti, decidindo ficarem de pé. Ele suspirou.

– Vamos saber o que aconteceu.

Então Terong, pondo-se a falar, explicou tudo. Mael coçou a cabeça quando acabou.

– Peço desculpas. Isso não teria acontecido se eu acordasse antes. E peço desculpas por Kai – Mael o encarou. O rapaz parecia bem mais relaxado. Ambos sabiam como era desgastante botar pra fora tanta coisa. E Kai tinha, normalmente, muita coisa a dizer. – Ele não costuma ser tão...

– Desbocado? – Atalhou Karuss, não perdendo a feia mania de interromper os outros. Kai lançou um frio olhar para ele. Sua paciência estava se esgotando.

Um sujeito de barba rala bufou. Era Ortega. Kai lembrava dele.

– O rapaz foi sincero. E sabendo sobre o que ele estava pronto para fazer... fomos injustos. – Ele bufou outra vez, como se fosse muito difícil admitir. –  Somos a droga de um conselho e, desde que essa situação se iniciou há dois meses, sequer agimos feito um. Sinto vergonha que foi necessário alguém de fora vir para nos alertar sobre isso. Sei que não foi de todo mal, Kai. Sei também que boa parte não foi literal.

Ele disse, mesmo mantendo uma carranca indistinta para o rapaz. Kai suprimiu o imenso desejo de dizer: ‘a parte em que eu mato vocês foi.” Mas parou quando notou o olhar divertido de Tallanthin. O velho tinha a habilidade de ler alguns pensamentos. Kai precisava manda-los pro fundo da mente.

– O problema é que nunca achamos que isso aconteceria – Terong falou. – Foi um problema atrás do outro, todos vindo em enxurradas. No momento, sequer temos uma proteção ao redor da Grande Sequoia.

– Claramente precisamos de uma mudança... – disse Carmim, a voz rouca. Ele massageava a garganta, encarando Cineáltas.

– Vai continuar com isso? – Sibilou o líder Echanti.

Mael ergueu a mão.

– Deixe-o expressar o que pensa.

Carmim saudou Mael com a cabeça.

– O Sínodo simplesmente não funciona. Este conselho não é útil. Tantas vozes que se silenciam... e pra quê? Uma mesura de enfeite?

– Há poucas horas você tentava obter o apoio dessas vozes silenciosas. – Karuss bradou.

– Bem, e de que isso importa agora, obeso? Mael acordou, será o Neru’dian. Uma salva de palmas e vivas, êêêêê! Mas isso não significa que vai ser do mesmo jeito. Nunca mais será como antes.

Ele tinha um ponto.

– Ficamos vulneráveis, muitos aqui sequer sabem da época em que não tínhamos uma proteção, nos primórdios dos vitanti. – Mael prosseguiu. – Mas sobrevivemos. Sem regalias, sem mordomias. Éramos andarilhos. Todo o Bulogg era nosso lar.

– Não pretende voltar àquilo, pretende? – Um sujeito parcialmente jovem indagou. – Muitos de nós nem viveríamos por muito tempo.

– Não, não pretendo, Goluch. Os vitanti evoluíram, nos atualizamos. Com o nível de entendimento atual, seria retrocesso voltar ao modo de antes. Mas necessitamos de uma mudança – Mael fechou o punho. – Algo que nos permita continuar indo em frente, não estagnar no tempo.

– E o que sugere? – Perguntou Athiná, falando pela primeira vez.

– Primeiro: que o Sínodo acabe.

– Acabe? – Perguntou Karuss. – Acabar t-tipo matar?

– Deixe de perguntar bobagem, Karuss. – Ilygaid falou. – O Sínodo não deve mais funcionar como constituição primária dos vitanti. Estou certo, Mael?

O vitanti assentiu.

Houve alguns burburinhos. Mas ninguém ousou tornar a falar como antes. Mael ficou satisfeito ao menos com isso. Ele já tinha grande respeito antes, e agora como próximo Neru’dian, sua importância ficou em evidencia.

– Posso saber como funcionaria? – perguntou Goluch.

– Com a extirpação do Sínodo, haveria uma pessoa no topo, atuando como único líder. Haveria um conselho, mas estes não deveriam ter voz maior do que o líder.

– Um único líder? Mas já temos o Neru’dian.

Mael suspirou.

– Pessoal, nesta altura do campeonato vocês já deveriam saber que o Neru’dian é apenas um líder espiritual. Ele não deve ter mais voz que os líderes de província, que formam o verdadeiro comando de Orquídea. Mas sabendo dos últimos acontecidos, vocês se dividiram, deixaram que suas diferenças fossem maiores do que nosso próprio povo. Falhamos como líderes, a mudança precisa vir.

– Suponho que o líder seria você. – Anunciou Carmim, a voz rouca e um sorriso um pouco sem graça.

Mael negou.

– Minha única missão é ser o Neru’dian, como bem me foi informado e como trabalhei a vida toda para tal. Nunca tive a intenção de lidera-los. Eu proponho que deveria haver uma votação e, assim, o novo líder iria ajudar o novo conselho. Óbvio, como Neru’dian, eu faria parte dele. A decisão é de vocês.

Kai observou enquanto aqueles olhares duvidosos e cheios de angustia fitavam todos os lugares, menos Mael. Até nesta situação eles hesitavam. Que bando de incompetentes.

Terong se ergueu, fitando todos no lugar, até que seu olhar pousou em Mael.

– Antes de qualquer decisão, eu gostaria de tomar a voz. – Alguns assentiram e ele prosseguiu: – Sei que isso deveria ser resolvido por meio de votos secretos, com os possíveis candidatos sendo escolhidos também. Mas acho que está claro quem deveria ser o líder desta nossa nova Era. Não existe, entre nosso povo, quem mais se sacrificou nesta guerra. Perdeu o braço, perdeu o pai, perdeu os melhores amigos... perdeu seu povo... e nos liderou para uma vitória, nunca desistindo ou abaixando a cabeça.

“Quero ter a certeza de que quando as coisas tornarem a piorar, você vai estar lá por nós, sendo quem nasceu pra ser: um líder. Meu voto é e sempre será seu, Mael Eblomdrude.”

Cineáltas se levantou de repente, assustando Ortega, o rosto um misto de emoções.

– O meu também.

Ortega que se recuperava do susto, coçou a bochecha e encarou o homem.

– Hum. – Disse, assentindo.

– Meu também.

– E meu.

– Sim.

– Cuide bem de nós.

Quase como unanimidade, todos se ergueram, alguns poucos ficando sentados. Foi quase pois Carmim sequer deu o trabalho de dizer alguma coisa. Houve aqueles hesitantes, mas todos, exceto o chefe do clã Arruda, confirmaram seus votos.

Pouco a pouco a animosidade diminuiu. A tensão tão presente, baixou. Era isso que um líder fazia. E o líder deles havia sido escolhido.

Carmim continuou encarando o chão, frustrado. Parecia com um misto de derrota, como se aquilo fosse girar em torno dele, não do bem de seu povo.

Todos começaram a bater palmas, felizes por Mael, que permaneceu inalterado. Chegou a encarar Kai, que sorriu para ele.

– Tudo bem, pessoal, vamos prosseguir com a reunião. – Todos se sentaram, um a um. Quando o barulho cessou, Mael continuou. – Com isso, temos que falar sobre a nova mudança que deve existir. Precisamos abandonar a Orquídea.

Um silêncio mortal acometeu a todos ali. Kai permaneceu indiferente. 



Comentários