Volume 2

Capítulo 106: ECOS DO DESEJO

Esse lugar parecia infinito, e o tempo já não tinha nome. Cada amanhecer e cada anoitecer se confundiam, porque não havia sol ou lua aqui. Kai se arrastava pelas dunas como se o próprio chão tentasse engolir seus pés. 

A areia ardia sob os dedos e os calcanhares, lembrando-o do peso da memória, de cada rosto que não podia esquecer. 

A voz vinha se comunicando bastante, apesar de sua figura permanecer distante e pouco aparente. 

Kai esquecera de muita coisa nesse ínterim. Algumas vezes lutava para lembrar quem era, o que estava fazendo ali e porquê estava ali. Qual era sua culpa? O seu pecado? A sua dor. 

Mas lembrava-se logo, como o claro lembrete da febril maldição de Greylous que sempre persistira em surgir. Era Kai Stone. Fora resumido ao tamanho de uma molécula, e pagava o preço por um crime que cometeu em uma cidade que não nasceu. Justiça

Sempre tão lado a lado com a honra, a verdade. Sim… alguém lhe fez mal, e ele agiu como seus princípios sugeriram. 

Ele lembrava-se do homem que matou. Foi um ato de justiça, sim. Necessário. Mas os outros, cegos em sua própria moral, decidiram seu destino. Um ato por outro. Ciclos de punição que jamais terminam. E agora, naquele deserto sem tempo, Kai se perguntava: se a justiça é um jogo de espelhos, qual espelho eu deveria seguir?

Cada passo era lento, doloroso. A areia ardia sob seus pés, mas era a memória que queimava mais. Ele ponderava a fraqueza do ser humano, sua própria fraqueza: o quanto uma mente pode resistir antes de se partir? Quanto tempo um coração pode carregar culpa, medo e dor antes de ceder?

E ainda assim, caminhava. Não por esperança, não por glória, mas porque havia algo dentro dele que se recusava a se entregar. Um pequeno fogo teimoso. A coragem talvez, fosse isso: não ausência de medo, mas a persistência apesar dele. 

Kai refletiu sobre o mundo que deixou para trás. Nas cidades, nas pessoas que amava, nos rostos que nunca mais veria. Pensou nos princípios que tentou manter, nos códigos que seguira, e percebeu a cruel ironia: a virtude e a justiça que ele tanto valorizava eram, muitas vezes, armas para punição ou sofrimento. 

Ele matou quando não viu outro caminho. E nem piscou. Não perdeu noites de sono. Não temeu perder a alma. Porque achava ser justo. E foi, pois foram mortes de pessoas ruins. Mas até os maus devem receber esse tipo de punição? 

“Solidão… fraqueza… dor… tudo isso é apenas parte do mesmo jogo.” Pensou. “O mundo não recompensa os justos, e a verdade não salva ninguém. Eu estou só, e isso… é tudo que posso confiar.” 

Isso era justiça. A que ele prezava. A que ele poderia confiar. Foi uma justiça mais terna do que a que ele deu aos seus inimigos. Mas… será mesmo?

Será que nesse caso a morte não seria mais justa e piedosa do que estar destinado a vagar indefinidamente por um imenso e amplo espaço de nada? Fadado a enlouquecer…

Kai não achou que estivesse disposto o suficiente até estar… e não estar. Porque viver no deserto poderia se configurar como o inferno em vida. 

Não havia nada. Nem construções, nem pessoas, nem vegetação ou comida. Apenas o deserto, a Tempestade Cisca… e o calor. O bolor. O inferno. 

Ele vinha analisando friamente a lista das piores coisas que poderiam lhe ocorrer, e sua mente não chegava à um consenso pois metade já havia ocorrido. Outrora fora torturado e dissecado. Foi possuído e sua mente foi quebrada em mil pedaços diversas e diversas vezes. 

Não obstante, foi envolvido por uma energia questionável e, para piorar, acabou tendo sua mente invadida de novo. Talvez fosse justo que depois disso tudo, uma ou duas cabeças tivessem rolado. Era sua forma de dar o troco. Não ia apenas assistir. 

Mas ele mesmo se colocara nessa situação. Pois quando as coisas estão ruins, tudo tende a piorar. 

Sua mente não era mais a mesma. Seu espírito não era mais o mesmo. Um mau… vil, obscuro e oriundo de um tempo antes do tempo, se saciava de seu ser… e daquilo que restava da sua mente. Não havia mais esperança. E caminhar indefinidamente durante esse tempo foi um meio de deixar as coisas claras. 

Então sim… a morte que ele deu aos seus inimigos foi mais justa e mais piedosa do que esse inferno que vivia agora. 

Mas ele não culpava ninguém nem a si mesmo… apenas sentia um remorso e arrependimento. Remorso por não apreciar devidamente e arrependimento…

… deveria ter feito Shimon sofrer lentamente. Sua morte foi rápida e limpa demais. 

Ele fechou os olhos, relembrando o momento em que cortou a cabeça do sacerdote. Um riso surgiu no seu rosto. Um vento inexistente atravessou seu corpo, trazendo um frio que não vinha do ambiente, mas de algo mais profundo, de algo que observava. 

Suave como a brisa que não existe, a voz surgiu…

“Kai…”

– Sai da minha cabeça. – respondeu ele, firme, mas cansado. 

“Você ainda acredita que está sozinho?” Insistiu a voz. “Tão ingênuo. Nenhum eco vive tanto tempo sem motivo.”

Sim… ele era como um eco agora… sem rumo, sem motivo… apenas sobrevivendo à exemplo do que foi um dia…

Apesar de enraivecido, ele percebeu algo com essa interação… analisaria depois. 

Cerrando os punhos, a areia sob seus pés tremeu levemente. Não podia ceder depois de tudo. 

“Mas se eu sair, o que sobra?” Continuou a voz. “A dor? O peso dos rostos que você nunca esquece? Ou aquele vazio que grita quando o mundo cala?” 

– Você não é real. – Kai murmurou, mais para se convencer do que para se afirmar. 

Uma risada baixa ecoou. 

“Sou mais real do que o ar que te sustenta. Sou o que existia antes que o ar soubesse respirar.” 

Então imagens que haviam se perdido há muito tempo – imagens que ele já havia sonhado – tornaram a surgir. Luas partidas, cidades queimando, mares fervendo.

Cada visão era uma acusação, cada cena um aviso do que aconteceria se ele cedesse. Poder. Ruína. Caos. 

“Esses foram os outros. Cada um acreditou que podia me conter. E cada um… foi lindo enquanto ardia.” 

Kai sentiu um riso amargo subir pela garganta, mas logo o conteve. Ele conhecia o perigo: não se tratava de força física, mas de algo que corroía o âmago de sua existência. 

– Não sou como eles. – disse, firme. 

“Todos dizem isso. Até que se apaixonam por mim.” A voz suavizou o tom, quase maternal. “Você quer lutar comigo, mas… e se eu for o único que ainda te ouve? A única que lembra o som do seu riso? Ah, sim… você tinha um riso. Frágil. Humano.” 

Kai respirou fundo. Podia sentir o peso de cada palavra, mas não cederia. Ele estava só, sim, mas a solidão era sua aliada. Estava acostumado com ela, sempre esteve. Ninguém poderia controlá-lo completamente enquanto ele tivesse consciência de si mesmo. Ou desistisse. 

– Você fala demais. – murmurou, quase para si mesmo. 

“E você sente de menos. Olhe para dentro, Kai – você sabe o que eu sou. O que sempre fui. Sentiu quando firmamos o contrato e, juntos, nos amamos. Sou a fagulha que se alimenta de astros. O primeiro sopro que queimou o nada e chamou de existência.” 

As visões se intensificaram, mundos desmoronando, corpos flutuando entre extensos campos de um nada, sustentados por nada a não ser brilhantes estrelas iridescentes e distantes. Bolas de fogo queimando e pulsando energia, irradiando poder, ser. Mundos inteiros mortos, lugares como o céu distante… 

Kai percebeu que a voz não era um desafio. Era um espelho de seus próprios medos e desejos. 

“Esses são meus filhos, meus amantes, meus hospedeiros. Todos juraram resistir. Todos imploraram no fim.”

Gritos, gemidos, dor, raiva, medo, prazer. Tudo em uma cacofonia escancarada de sons, como um baluarte desafinado. 

– E você quer que eu seja o próximo? – Perguntou ele, a voz firme, mas com um fio de exaustão. 

“Quero que pare de resistir. Quero que entenda que o poder não é um dom. É uma fome. E eu sou a fome que te escolheu.” 

O silêncio caiu. Kai fechou os olhos e respirou lentamente. Ele não era como os outros. Ele sabia a diferença entre sucumbir e compreender. Entre perder a si mesmo e aceitar o inevitável. 

“Lembre-se, Kai… Antes da dor, houve o desejo. E foi o desejo que nos uniu. Não lute contra o que já é teu. Abra-me. E eu te mostrarei o que resta depois do fim. Ama-me. E eu te mostrarei o verdadeiro poder, na palma da sua mão.”

Kai permaneceu em silêncio, refletindo sobre o mundo, a justiça e a sua própria fraqueza. Ele compreendeu, de maneira dolorosa, que a verdadeira batalha não estava fora, mas dentro dele mesmo. 

E, pela primeira vez em dias, sorriu amargamente. Não havia vitória aqui. Apenas resistência.

 

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