Volume 2

Capítulo 105: O DESERTO E O DELÍRIO

O deserto silenciou. Era o mesmo vale que a Sibila ruíra, mas parecia outro – mais vasto e vazio. Mais vivo.

A compreensão de toda uma vida atingiu Kai de maneira sorrateira, amplificando algo que ardia em seu coração. O temor por aquela vida pesava, uma vida triste, tomada e esvaída. Foi assim que Onaé cresceu, foi desacreditada e se tornou Veela, que mais tarde se tornou a Sibila. 

A principal tristeza de Kai foi perceber que ela era uma boa menina e se tornou uma jovem de coração bom, apesar dos caminhos que tomou. Sua profanação veio através de um ato régio de quem não consegue se calar perante as injustiças do mundo. Até mesmo na ruína, Veela quis vingar os mortos.

Crianças e povos inocentes foram destroçados, e ela quis protegê-los, mas se perdeu no meio do caminho. Trouxe mais ruína e destruição do que a que tentava impedir. Isso era triste.

E mesmo que no início seu propósito fosse justo, Kai não podia perdoá-la pelo que se tornou, afinal, mesmo em meio à escuridão que se apossou de seu coração, ela sabia o que fazia. Matou para saciar a própria ganância. Ser ruim num mundo onde há pouca luz realmente era fácil. E ele nem a perdoaria nem a respeitaria, apesar de seu passado conturbado.

Cambaleando, Kai ficou imerso em lembranças e memórias que não eram suas mais uma vez. Revivia os dias antigos numa terra distante a cada milisegundo, e isso era demais para uma mente já conturbada.

Afinal, ele próprio tinha de lidar com seus demônios, que ameaçavam mais uma vez se rebelar contra si.

A areia, ainda quente, sussurrava embaixo dos pés, e cada passo parecia arrastá-lo para baixo, como se o chão quisesse lembrá-lo do peso das vozes que ainda ecoavam dentro dele.

Ao passo em que ele tentava lutar contra isso e toda inconformidade de estar passando por momentos temerosos, sua própria mente lhe pregava uma peça.

Uma voz ardil, como a sua, mas mais raivosa, cantarolava em sua mente e ouvidos, como se trazidos através do sussurro do vento inquietante. Ele parecia notar algo pelo canto do olho, mas não havia nada exceto areia e mais areia. Mas a voz estava ali, lhe dizendo diabices mórbidas sobre como seria bom descansar de vez em quando.

Se acalentar no abraço da areia… descansar a cabeça por meio segundo… morrer… 

Coisas assim.

Era sua mente lhe pregando peças… só podia. Porque caso não fosse…

Ah! Poderia ser a Sibila. Talvez ela não tivesse ido completamente. Talvez fosse sua voz ressoando nos recônditos interstícios de sua mente – seria mais fácil acreditar que se tratavam de uma centena de sussurros fragmentados, sem rosto nem corpo, dizendo o que ele já sabia, o que ele fingia esquecer.

Caminhou pelo que pareceram horas, os sussurros se tornando mais audíveis e uníssonos, mais concretos. Antes eram palavras ao vento, mas agora formavam sentenças desalentadoras.

Ele caminhava sem ver um fim ao horizonte cruel, apenas amarelo e amarelo… nunca mudando, nunca perdendo sua secura. Não havia som de vento nem de areia se remexendo, exceto os sons da voz que se precipitava pela sua mente.

“Desista.”

“Faça uma trégua.”

“Pare um pouco.”

“É sua ruína.”

E a cada vez que as coisas eram ditas, algo crescia no peito de Kai. Algo como um desafio robusto, que se recusava a ouvir ordens, mesmo que viessem do seu subconsciente ou seja lá de onde deveriam vir.

E quando os dias passaram e ele não fazia nada além de se arrastar, preso no seu discernimento de não desistir, a voz parecia mais inquieta, pois não carregava mais o tom habitual de gentileza.

As frases eram mais duras, mais desanimadoras. E quando ele olhava pelo canto, jurava ver…, mas não podia ser. Era… tinha de ser sua mente se quebrando, resultado da longa batalha mental com a Sibila.

Mas Kai não era tolo. Ele vinha pressentindo isso desde antes da batalha contra o Ministro. Havia esse mal que borbulhava no seu âmago, crescendo e sendo alimentado pelo seu desejo e raiva que surgiram feito brasa no palheiro.

E esse mal cresceu, robusto e concreto, se alimentando não somente das emoções mais ruins e nojentas que se apossaram do peito de Kai, como também o alimentando a sentir isso. O impulsionando a sentir raiva, tristeza, medo… tudo aos borbotões. Tudo numa intensidade sem tamanhos.

E houve um momento em que não era mais um simples sussurrar, apenas um vulto no canto do olho ou uma sensação de estar sendo vigiado.

Primeiro a voz vinha como um sussurro trazido pelo vento. Em seguida, quando ele pensava não ser o bastante, passava a ver uma figura estática e distante, parada, sempre o encarando, e não importa em que direção ele fosse ou olhasse, a figura estava sempre virada para ele… e se aproximava.

No início era apenas um ponto negro no distante areal reluzente sem sol. Aos poucos foi se tornando aquilo que ele temia.

E a voz era serrilhada, intrépida e vil. Kai não era bobo… ele sabia no que estava se metendo no momento em que aceitou os termos… não enlouqueceria pelo deserto, mas iria enlouquecer por algo mais vil e diabólico.

Esse mal fora prenunciado, mas não tomou nenhuma decisão, apenas aguardou, pois a decisão deveria vir de Kai. E em seu momento mais íntimo e sombrio, ele aceitou os termos, assinados com uma jura de sangue e libido. Kai cedeu aos desejos mórbidos aos quais pensava ser quase imune. Mas nenhum homem o é. E por isso são todos falhos e pecadores.

Agora ele pagaria o preço com juros. Mas isso não o perturbava muito a não ser o som da voz serrilhada. A presença constante de estar sendo vigiado… de não saber de onde os vários olhos o perscrutam. Mas ele sabia sim. Vinha de dentro.

“Não há mal nenhum em desistir.”

A voz sussurrou num tom gentil e melodioso. Mas Kai sabia sua verdadeira natureza. Não… não era a Sibila… não mais. Nem sua mente. Era o mal.

Esse mal vinha destruindo suas defesas mentais aos poucos, esperando pelo momento oportuno. E quando a Sibila destruiu a muralha, o mal adentrou. Mas não podia fazer muito, a não ser que Kai aceitasse esse mal…

E por não aceitar, a figura se aproximou mais. E disse mais coisas. Mais verdades doídas.

Contudo, fosse por Kai não ter desistido tão fácil ou por qualquer outro motivo, a figura sumiu. Kai persistiu em seu longo e árduo caminho, sem saber ao certo aonde iria. Qual o propósito disso tudo, afinal?

Após dias caminhando e sobrevivendo apenas de água, Kai finalmente resolveu descansar num dos mantos troasiano.

Ele fitou o horizonte por longo tempo, sem perspectiva alguma. Por que fora enviado ali? Qual seu propósito?

Vez ou outra só imaginava como teria sido sua vida se tivesse decidido ficar em Orquídea.

“Nada fácil.” Pensou. Mas lembrava de seus amigos, os que haviam ido e os que ficaram. Não teve chance de uma conversa com Oren, mas isso não remoía seu coração. Estava em paz. Nem estava arrependido por ter deixado Fioled após sua declaração. Cada vez mais tinha certeza de que não amava a menina o suficiente para ficar com ela pelo resto da vida.

Contudo, o que o remoía era a conversa com Abwn. Apesar de dizer que seu caminho era apenas seu, não tinha tanta certeza agora.

A crença dos vitanti sobre protetores e um ser supremo só ganhava força para ele. Contudo, lhe parecia que os tais protetores só agiam conforme os próprios motivos. Não havia outra explicação a não ser essa.

Seria fácil demais atribuir culpa a eles pelo seu estado atual. Mas não faria isso. Sequer acreditava que existissem e, se fosse o caso, não gostava de saber que tinha alguém controlando seus passos, não depois de tantos anos sendo coagido.

Kai dormiu, e teve sonhos nada bons. Mares ferveram, luas se partiram, cidades queimaram sem fogo. E o mal cresceu.

Ele não acordou bem, com uma dor de cabeça severa. Continuou seu passo, mas quando achou que seria assim por um tempo, algo mudou.

“É curioso como o vazio sempre te encontra, Kai.” A voz surgiu do nada, sem aviso. Kai fez uma careta, mas não respondeu. Tentava ignorar. A areia se moveu sob seus pés, como se o deserto tivesse engolido um riso.

“Você chama isso de coragem? Arrastar-se entre as dunas, sangrar por fantasmas? Há um nome melhor para isso: teimosia. E teimosia é orgulho cansado.”

Kai pigarreou. Estava cansado demais pra isso. Apenas sua mente… apenas sua mente…

“Não finja mais…”

– Cale a boca! – rugiu ele, fúria cortando cada palavra.

Por um instante, a voz se calou, e Kai se sentiu quase livre. Mas o silêncio durou pouco.

“Mas se eu calar, quem vai preencher o buraco dentro de você?”

Kai permaneceu em silêncio, com os dentes cerrados, arrastando-se, atento a qualquer sinal daquela presença.

A voz repetiu, lenta e certeira, cada palavra mais provocativa que a anterior. Kai rangeu os dentes:

– Não quero te ouvir!

“Quer sim. Desde o primeiro dia em que chorou por algo que não podia salvar. Eu vi, eu estava lá.”

Um grave som reverberou em sua mente, algo entre asas batendo e um coração enterrado.

“Sabe o que o universo faz com heróis, Kai? Ele os digere. Um por um. E você… ah, você seria delicioso.”

Kai riu brevemente, sarcástico.

– Não vou cair nessa. Céus, o que tenho de tão bom que vocês divindades corrompidas querem sempre possuir?

O riso serrilhado da voz retornou, cruel e íntimo. 

“Algo. Mas não há como cair, pois eu sou o chão. Quando você despencar, será em meus braços… de novo.”

Kai sorriu amargamente, ciente do peso e da obscuridade naquelas palavras.

“Você é o último lampejo de um sol moribundo, e nem percebe. Se invertêssemos os papéis – isto é, se eu é que entrasse dessa vez – eu te mostraria o que vem depois da luz. Não há dor lá. Só a verdade nua. O calor do que fomos antes do tempo.”

Kai apertou o peito, sentindo intimidade e ameaça na voz. A voz mudou de tom: mais baixa, quase um segredo entre amantes.

“Eu não quero te destruir, meu pequeno fogo. Quero te libertar.”

– Libertar? – Kai riu, sarcástico e sombrio. – E o que você acha que vai acontecer se eu aceitar? Que vou me curvar e agradecer?

O silêncio respondeu, pesado, e a voz sussurrou:

“Veremos.”

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