Volume 2
Capítulo 107: FORMAS DO DESEJO
O deserto parecia ter engolido o tempo. Dias e noites confundiam-se em uma só cor, um só calor, uma só exaustão. Kai andava sem saber mais se o horizonte era um lugar ou apenas uma ideia; cada passo era um acordo silencioso entre dor e vontade.
Ele pensava em justiça, mas não na dos reinos, nem na das leis humanas. Pensava na justiça que se mede pelo peso das mãos que seguram a espada, pelo preço das promessas quebradas. Quantos morreram para que ele ainda estivesse vivo? Quantas memórias ele carregava que nunca seriam redimidas?
“Ser forte não é vencer…” ele ecoou dentro de si, sem saber se era sua própria voz ou a dela. “Ser forte é continuar existindo quando tudo quer que você desapareça.”
Kai apertou os punhos. Sentia que, a cada respiração, algo mais antigo do que o mundo roçava seus ossos por dentro. Era como caminhar com uma fera enjaulada no peito, uma fera que sabia seu nome.
O vento trouxe um cheiro diferente. Não era poeira, nem sangue, nem o metal invisível das memórias. Era doce, denso… e perigoso. Como se o próprio deserto tivesse decidido revelar o que guardava debaixo de sua pele.
O horizonte estremeceu, revelando um inescapável brilho escuro. Por um instante, o ar se tornou líquido, dobrando-se em contornos humanos. Femininos. Altivos. Perigosamente sedutores.
E antes que pudesse reagir, Kai sentiu o chão se abrir dentro dele.
Não era o deserto, não era areia. Era dentro. Algo que ele nunca poderia controlar totalmente.
De dentro de ondulações luzentes, ela surgiu. Não caminhou, fluiu. Como se o espaço se curvasse por vontade própria para recebê-la.
Ela não era só bela, era impossível. Seus cabelos, longos e escuros, moviam-se como fogo negro, como se respirasse por si, os fios cintilando reflexos que lembrava universos distantes. A pele tinha o calor do deserto e a maciez de um fruto proibido. Atribuía um ouro febril, translúcido, que refletia cada partícula de areia como se fosse seu espelho.
As curvas não pareciam moldadas pela carne, mas esculpidas pela ideia de desejo.
E os olhos… os olhos eram galáxias em combustão lenta, estrelas morrendo e renascendo a cada piscada.
O cheiro era doce como mel e pesado como ferro quente. Cada movimento do quadril era uma promessa de algo que ele não podia nomear, e mesmo o ar parecia mais denso quando ela se aproximava, prendendo-o como seda úmida.
Kai sentiu o corpo reagir antes da mente. O peito apertou, a boca secou, a pele queimou – não de calor, mas de consciência. Cada centímetro dela expunha, sem esforço, tudo o que era frágil e humano. E, no meio da areia infinita, ele percebeu que estava sozinho, nu diante dela, não pelo corpo, mas pela alma.
Sua beleza tinha algo de errado. Era perfeita demais, humana de menos. Uma simetria tão absoluta que feria.
Kai cambaleou, a garganta seca. O corpo lembrava o desejo antes mesmo que a mente o compreendesse.
– Você… – a voz dele saiu quebrada. – O que é você?
Ela sorriu. O sorriso de quem nasceu antes do verbo ser.
“Sou o eco do que você deseja quando acredita que ninguém está olhando. Sou a lembrança do toque que o tempo te negou. Sou o fogo que ardeu quando o mundo ainda não tinha nome.”
Aquela presença o cercava, quase o despindo de dentro pra fora. A respiração de Kai tornou-se irregular. O deserto inteiro parecia pulsar junto ao batimento de seu coração.
– Pare… por favor – ele murmurou, a voz falhando. – Por favor… eu não posso… eu… – ele caiu de joelhos, a areia queimando sua pele como se lembrasse cada escolha errada, cada pecado.
Ela se inclinou, e a distância entre eles se dissolveu. O perfume dela – metálico, doce, quente e irresistível – o envolveu. Cheirava a tempestade e pecado, a coisa viva e impossível que ele jurou jamais querer novamente.
“Pode sim, Kai” sua voz era sedutora, cortando e arrepiando a pele dele. “Sempre pôde. Só fingiu esquecer.”
Ele tombou, afundando na areia quente, tentando agarrar qualquer vestígio de lucidez. Sua mente foi inundada por memórias do momento do contrato, firmado através do sexo… ele desejou aquilo de novo, indo contra sua própria vontade, a que gritava dizendo o quanto aquilo era errado.
Ela inclinou o queixo dele e lhe deu um beijo morno, inundando sua boca com sua língua macia e poderosa.
Quando o soltou, ele lutava contra o desejo renovado.
“Kai… você sabe o que me pertence. Você sabe desde o primeiro dia. Não lute comigo.”
Ele engasgou, sem ar.
– O que você quer de mim?! – Kai gritou, o desespero rasgando cada sílaba. – O que… o que quer que eu faça?!
Ela sorriu, um sorriso que era ao mesmo tempo promessa e sentença. Cada movimento parecia coreografado para confundir sua mente, seduzi-lo, esmagar sua resistência.
“Apenas me aceite…” sussurrou, beijando-lhe outra vez, deixando-o louco com o perfume de puro desejo. “Apenas ceda. Não é mais sobre força ou justiça. É sobre o que você deseja, Kai. O que você sempre quis.”
Kai se contorceu, caindo totalmente no chão. Suas mãos se enterraram na areia, tentando escapar da realidade que o cercava. O calor da presença dela queimava seu peito, sua mente, seu corpo. Ele chorava, não por fraqueza, mas por não querer se perder, por não querer ceder a algo que sabia ser mais antigo e mais vil do que qualquer guerra já travada.
– Eu não posso… eu não posso. – implorava, a voz falhando, lágrimas misturadas com suor. – Por favor… pare… me diga… o que você quer de mim?!
Ela se ajoelhou diante dele, a luz ao redor pareceu se curvar à sua forma. A boca se abriu num ricto suave que não precisava de som:
“Quero o que você já me deu. Seu corpo, sua mente, seu espírito… e tudo que há entre eles. Mas não se preocupe, Kai. Ainda há tempo… para resistir.”
Era desejo. Era medo. Era rendição.
Quando ela ergueu o rosto e os olhos de estrela o encararam, ele viu – por um instante – não o corpo, mas o vazio infinito que se escondia dentro dela. Um cosmos devorando mundos. Um abismo com o rosto da beleza.
Então o chão tremeu, não por seu peso, mas por algo maior se aproximando. A voz de ameaça perdeu o tom absoluto por um instante, substituída por algo distante… um farfalhar de esperança, tênue, mas presente.
A areia começou a se tornar pálida, quase cinza. Havia vultos distantes sobre ela, caminhando sem pressa, com passos que não deixavam pegadas.
Kai arqueou o corpo, tremendo, a areia queimando suas mãos e joelhos. Ele mal respirava, olhos fixos na forma que ainda pairava diante dele, altiva e impossível de ignorar. Então, tão de repente quanto surgira, ela se afastou, dissolvendo-se no ar como se fosse feita de fumaça e luz – a lembrança do calor e do olhar queimava mais do que o próprio deserto.
No silêncio que se seguiu, algo mais se moveu nas sombras do vale. Vultos surgiam entre as dunas, figuras encapuzadas e esguias, passos tão silenciosos quanto a própria areia queimada.
Kai levantou a cabeça, ofegante, observando o timing exato dos acontecimentos.
A forma dela desaparecera, deixando apenas o eco do perfume e da promessa de poder que o havia tentado. Mas o deserto agora não parecia tão vazio. Vultos surgiam, se aproximando, como se viessem oferecer não socorro imediato, mas a lembrança de que a resistência ainda era possível.
Kai respirou fundo, o coração batendo descompassado. O deserto ainda o testaria, ainda exigiria dele cada fragmento de força que lhe restava. Mas, por um instante, ele se permitiu sentir algo que não era medo: vigilância, companhia, lembrança.
E enquanto os vultos avançavam silenciosos, a figura dela já não estava mais lá. Mas ela voltaria, pois ela teria o que queria, de um jeito ou de outro. E seria ainda mais decisivo que antes.
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