Volume 2
Capítulo 100: ONDE AS PEGADAS SOMEM
O céu não existia. Só a areia.
Tudo era bronzeado, turvo e arranhava. Um véu grosso de poeira envolvia o horizonte — e o tornava mentira. Nenhuma sombra era sombra, nenhum vulto era o que parecia. Os pés de Kai afundavam lentamente no solo rachado, que parecia gemer com cada passo.
O mundo era cor de morte.
À sua volta, as dunas dançavam em espirais errantes, mudando o relevo como pensamentos que se desfazem no instante seguinte. Lá embaixo, enterrado em algum ponto entre o presente e o delírio, estava o manipulador mental. Mas Kai andava como se não caçasse nada. Como se só caminhasse para dentro.
Uma forma se desenhou à frente: três figuras caminhando contra o vento — um adulto e dois pequenos ao lado. Braços dados. Risos apagados.
Quando ele piscou, virou redemoinho.
Kai não parou.
A ventania trouxe o cheiro de carne assada, canela e lenha… Mas sumiu no instante seguinte, tragado pelo calor seco.
Ele apertou os olhos. Não por causa do vento.
A areia zunia como vozes sem rosto. Em algum ponto entre o estômago e o peito, um calor pulsava de leve — como um bicho dormindo, virando-se sob a pele.
– Já estamos sonhando, ou é só você fingindo que não sente nada?
A voz não veio pelos ouvidos. Veio de dentro.
Kai não respondeu.
O vento respondeu por ele: um sussurro sem palavras, levando embora mais do que trouxe.
Kai parou de repente, observando o mundo ao redor.
A tempestade rugia acima, atrás e à frente, indiferente à tudo. Quanto tempo ela começara essa busca?
Tinha a impressão de que ficou mais tempo andando em círculos, fugindo de monstros e lutando pela vida do que caçando aquilo que mexera com sua mente.
Isso agora era apenas um eco do passado, perdido com as areias e toda a merda.
Mas, talvez em decorrência de nunca esquecer de nada, ou de subitamente perceber que estava mais perto do que jamais estivera antes, Kai não desistia.
Desistir significava que não havia nada pelo que lutar. Iria contra toda a moralidade de Kai, e ele gostaria de manter pelo menos um pouco.
E ele não podia simplesmente desistir, deixar pra lá. Tudo o que o cercava era uma tempestade cisca ininterrupta, estendendo-se até sabe onde.
Ademais, a criatura não permitiria que ele simplesmente se fosse, iria pôr a perder todo seu esforço. Ela era tão orgulhosa quanto ele.
No momento, a única coisa que ele podia fazer era caçar a maldita e rezar para que esse inferno acabasse. Depois ele poderia dormir por horas e viver um dia de cada vez. Tentar, quem sabe, encontrar uma saída desse outro inferno.
O vento açoitava o rosto de Kai indefinidamente. O deserto não acabava — estendia-se como uma língua ancestral que lambia os veios profundos da terra, faminta por histórias já esquecidas.
A mente de Kai labutava, exaurindo e se forçando a esquecer — algo que ele sabia ser impossível — de coisas amargas demais para ficarem tanto tempo labutando.
Kai pensava nas mais invariáveis coisas: desde a quantidade exorbitante de energia que aqueles sacos de couro continham, até a misteriosa história por trás daquele colosso. Tudo em vão, claro.
O ambiente parecia ter sido propício para não fazê-lo esquecer. Um ótimo somatório.
Novamente ele olhava para o alto, e se perdia. O vento soprava alto, mas não dizia nada; apenas gemia através das dunas como se chorasse por algo que nem mesmo ele sabia ter perdido. Os grãos de areia cortavam o rosto de Kai como lembranças mal cicatrizadas — pequenas e incontáveis, como cada palavra que ele nunca conseguiu esquecer.
Ele já desistira de tentar preencher sua mente. Seria inevitável não pensar.
A paisagem parecia viver, mas não para acolher. Olhando para trás, mais e mais distante daquela tempestade formada pelo colosso, um som vazio e soturno rugia, e sombras oscilavam, como rochas secas se inclinando feito espantalhos tombados, testemunhas mudas de quem ousou passar ali antes dele.
O céu, opaco e distante, se confundia com a tempestade, turvando e ondulando sobre si mesmo. Tão diferente do céu roxo e policromático. Não havia começo nem fim, apenas o eco constante de um mundo que parecia existir apenas para sussurrar que ele estava sozinho. Não que Kai se surpreendesse — a solidão não o tocava mais como faca, mas como neblina: insistente, fria, persistente.
E em certos momentos, esse silêncio se rompia. Era diferente de qualquer silêncio. Não como as lembranças e vozes e cheiros e sons que constantemente arrebatavam Kai da realidade. Não um som concreto, como o vento. Mas algo mais denso.
Como se outro olhar pesasse sobre os ombros de Kai. Essa dualidade era ininterrupta.
Pois agora ele lutava com seu senso, caçando algo que brincava com ele, enquanto ele mesmo brincava consigo, flertando com as frágeis portas de sua sanidade. O silêncio era obsoleto. Proposital. Unânime. Não era ausência de som. Era causado.
Um silêncio que permeia a tudo e a todos que beiram o colapso. Algo que Kai pensou ter evitado.
O somatório das coisas.
A criatura era forte o suficiente para causar isso. Mas e ele, era forte o suficiente para resistir? Pensou que sim.
Mas estava sozinho. Ignorado até pela doce e acolhedora presença de sua fiel companheira.
O toque dela era quente, morno, mas vibrante. Tirise estava insatisfeita, e Kai não a julgava.
Mas ela era a linha tênue nisso tudo. A linha tênue entre ele e o sussurro abafado, disfarçado entre os batimentos de seu coração. Mas havia silêncio dela também.
E o outro silêncio arranhava as paredes de sua mente, com a insistência de uma unha em porta trancada. Ele não ouvia palavras. Ainda. Mas sabia. Como se algo respirasse com ele, mas por ele.
Retomou sua caminhada, deixando que a mente deslizasse por momentos do passado. Momentos com Gunter, Ardara, o velho Shiv… era tudo tão simples.
De repente sentiu o gosto de casa. Estava acostumado com o frio. Com a floresta. Os animais. As pessoas do Bairro Velho. Seus amigos.
A floresta.
Havia um tipo de silêncio diferente ali. Um silêncio acolhedor. Um silêncio caseiro.
Este silêncio era mordaz. Provocativo. Insincero.
A cada passo, o chão parecia mais profundo. As pegadas que ele deixava atrás eram levadas pelo vento num segundo, como se o exército recusasse sua existência. E às vezes, nas brechas do pensamento, Kai quase sentia que não andava sobre a areia, mas sobre suas próprias memórias: estéreis, imutáveis, e tão áridas quanto o mundo ao redor.
Durante horas ele caminhou. Seus pés urrando de dor. A areia pinicando seu rosto já não incomodava. O vento já não uivava. Apenas rangia, como um pêndulo cansado.
Kai seguia. Não pela esperança de encontrar, mas pelo peso de não poder parar. Diante de tudo em jogo. Morrer tentando ou se acomodar com a péssima realidade? Nunca foi de desistir mesmo. No passado, costumava gostar de um desafio.
A areia se tornava mais fina. Mais pálida. Como se tivesse sido peneirada por dedos antigos. Rasgava ferozmente. Ele não ligou.
O calor agora era úmido. Um suor que não vinha do corpo, mas da própria terra — vapor saindo pelas frestas do chão, como suspiros engasgados. O cheiro de canela voltara. Misturado com o de orvalho podre, doce demais, como fruta esquecida.
Agora, próximo da tempestade que antes urrava no norte, formas se dispendiam no horizonte. Não vultos. Não ilusões. Formas fixas, imóveis. Mais enviados para a morte inevitável?
Não… pareciam pedras… mas também pareciam corpos. Sentados. Curvados. Alguns com mantos que esvoaçavam, outros sem rosto. Todos voltados para um ponto côncavo nas dunas — uma clareira funda, ele podia ver. Engolida pelo vento.
Kai parou na beira do declive.
Abaixo, espraiava-se um vale de colchas e véus. Indiscerníveis na tempestade. Mas ele conseguia ver. Não sabia o por quê.
Tecidos suspensos sem ganchos, coloridos como línguas de fumaça. Não havia sol — aqui nunca houve. Mas a luz era dourada. Como memória. Como delírio. O silêncio ali era grosso. Vivo. Tão denso que parecia sussurrar atrás da pele. Mas de sussurros capciosos ele entendia. Vivera na pele.
Mas daí ele sentiu.
Um chamado que não usava voz. Um puxão suave, como lençol sendo dobrado — vindo de dentro do peito. Acolhedor. Como se num manto. Disfarçado.
Vento Noturno tremeu em sua bainha. Não em alerta. Não em protesto. Mas como quem segura a respiração antes de mergulhar.
Kai deu o primeiro passo para dentro dovale. E ao tocar o solo, a areia não cedeu. Ela o recebeu.
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