Volume 2

Capítulo 99: COLOSSO

Boquiaberto, olhos arregalados, Kai assistiu a fenda se alargar como se o próprio mundo estivesse sendo rasgado. Dela, um colosso emergia. Pedra sobre pedra, rachaduras flamejantes em cada junta, ele crescia até engolir o horizonte.

A criatura se moldava aos poucos, torpe e irregular — como se a terra tivesse vomitado uma fortaleza viva. Cada movimento era um tremor. Lava escorria pelas costuras das pedras, como sangue por cicatrizes reabertas.

As criaturas menores guincharam em pânico. Pisoteavam-se, se mordiam, se empurravam numa fuga desesperada. Medo e brutalidade, entrelaçados num mesmo impulso animal.

Kai não desviava o olhar. A cabeça do colosso parecia um erro — informe, quase parte do torso. Seus olhos, pequenos e iridescentes, espreitavam em todas as direções. Era impossível compreender como aquelas pedras se mantinham unidas, como algo tão monstruoso podia estar de pé.

E, no entanto, estava.

O gigante ultrapassava os maiores castelos que Kai já vira. Trinta e cinco pés ou mais — impossível saber com exatidão. Seu braço, uma muralha torta de protuberâncias desiguais, se ergueu como se desafiando o próprio céu. E quando girou o corpo, Kai teve certeza de que desabaria. A cabeça tombou levemente para o lado, mas não caiu. O corpo girou inteiro, com peso e propósito.

A fenda parou de crescer. Agora parecia pequena diante da coisa que havia liberado.

Então, o colosso estendeu uma de suas mãos deformadas em direção à massa de criaturas.

E o massacre começou.

Kai assistiu, imóvel, enquanto a retaguarda era esmagada como formigas sob um trovão. As criaturas gritavam — não por coragem, nem por raiva. Apenas horror. E mesmo que estivesse a salvo por um momento, o suor frio desceu pela nuca de Kai, e um pensamento indesejado se formou, arranhando sua mente como presságio.

Ele tentou expulsá-lo. Pensar naquilo era um convite ao azar.

As hordas eram varridas. Algumas eram tragadas por uma fenda horizontal que se abrira na “cabeça” do colosso — uma boca? Um abismo? Era impossível saber. O importante era que devorava. E devorava sem fim.

A vanguarda e o centro enfim escaparam da zona da fenda. Mas isso não foi alívio.

Agora vinham em sua direção.

Kai firmou a mão no cabo de Vento Noturno. Seu corpo ainda pulsava de energia — intoxicante, quente, eletrizante. Ele sabia que podia vencê-los. Mesmo em maior número, mesmo mais fortes que os batedores de antes. Mas eles não vinham para lutar. Só queriam fugir.

E fugir, para eles, era passar por cima dele.

Se houvesse neles qualquer resquício de instinto de sobrevivência, Kai seria apenas mais um obstáculo.

Mas sua mente estava em outro lugar.

Enquanto via monstros sendo devorados por um monstro ainda maior, seu pensamento era apenas um: Que ele não me veja.

Rezou. A qualquer deus, a qualquer força, a qualquer mentira reconfortante que o universo pudesse oferecer.

Mas sabia o bastante para não esperar facilidade.

O colosso terminou de obliterar a retaguarda... e se virou.

A boca na cabeça se abriu. Um som irrompeu como o rugido de um continente sendo partido ao meio. Se pedras pudessem gritar, era assim que soariam: arranhadas, partidas, agudas — com o gosto do fim na garganta.

Kai soube, ali, que nada de bom viria disso.

O braço restante do colosso se moveu. Primeiro para trás. Depois, veio como um trovão despencando do céu.

Rochas fumegantes cruzaram o ar como meteoros. Fogo rasgou a tempestade amarela.

O mundo explodiu em caos.

O céu rugia em chamas.

Labaredas caíam como chicotes vivos, carbonizando criaturas aladas antes que pudessem guinchar. Rochas em brasa rasgavam o ar e explodiam contra o solo, cuspindo fragmentos e fogo para todos os lados. Onde caíam, nasciam crateras fumegantes, rios de vidro e faíscas mortais.

A cada impacto, o chão tremia sob os pés de Kai. A cada trincado incandescente que se formava, o mundo parecia mais perto de ruir.

Ele não esperou.

Saltou, girou, correu. Passou por entre colunas de fumaça e pedras ferventes. Desviou da morte por um fio, por um instinto, por sorte — ou pela soma dos três.

Atrás dele, tudo se tornava um mar abrasador. Criaturas guinchavam em dor, seus corpos retorcendo-se, carbonizados, ainda tentando correr, mesmo sem pernas.

O cheiro era de carne queimada e poeira quente. O ar cortava os pulmões como vidro derretido.

Kai ergueu o rosto por um instante.

E sorriu. Um sorriso seco, ferido. Um sorriso de quem entende — sempre pode piorar.

Vinte criaturas aladas, todas feridas, as asas queimadas e penduradas como trapos enegrecidos, vinham em sua direção. Caíam do céu num mergulho sem controle, desesperadas, famintas, cegas de medo.

Ele respirou fundo.

E afastou os pensamentos. Todos eles. O medo. A dúvida. O peso da existência.

Ergueu Tirise. Ainda embainhada.

E caminhou.

Não havia nada a dizer. Nada a temer. Nada a pensar.

Apenas fazer.

Como sempre fizera.

No campo de batalha, Kai encontrava uma versão mais pura de si mesmo — sem memórias, sem culpa, sem passado. A revolta ainda vivia dentro dele, sim. Espessa. Amarga. Áspera como sangue seco. Mas ali, no som do aço e no cheiro de morte, tudo se calava.

Ele costumava ser alguém calmo. Alguém centrado.

Mas isso morrera com as escolhas que fez. Com os olhos que fechou. Com as verdades que ignorou. A lembrança daquela vida ainda pulsava, presente em todos os aspectos, cheiros, modos e cores. Recente. 

Agora, era outra coisa. Um reflexo distorcido de quem um dia tentou ser.

Kai não se orgulhava mais de si. E não se lamentava tanto quanto deveria.

Ele estava só.

Mais do que já esteve.

Antes, a solidão era um estado. Um espaço familiar. Agora era um peso. Uma presença constante. Amarga, vazia, assustadora. Um eco que se recusava a morrer. Talvez porque ele soube como era viver repleto de companhia. Agora voltara a ser tudo o que sempre foi. 

E ele carregava tudo isso sozinho — a dor, o remorso, o medo do que viria. O que quer que sentisse... era só dele. E não havia ninguém para dividir. 

Mas o campo de batalha lhe dava algo que mais ninguém dava: silêncio. A trégua dos pensamentos. A ausência de arrependimentos. A ilusão de que tudo se resolvia na lâmina.

Ali, sob a sombra do colosso, entre monstros enlouquecidos e chamas dançantes, Kai era livre.

Por um segundo.

Por um golpe.

Por uma escolha.

Ele desembainhou Tirise.

E correu.

O primeiro inimigo não teve chance. A lâmina cortou em diagonal, suave como manteiga salgada. O corpo caiu em duas metades antes que o sangue soubesse o que fazer.

Kai já estava no próximo. 

Ele observou enquanto um pária alado — um dos poucos que fugira do ritmo desordenado dos seus — voava baixo o suficiente para que… Céus!

Kai se deixou levar pelos próprios pensamentos e, soltando uma gargalhada que ecoou pelos montes de vidro e areia, impulsionou-se na direção da criatura.

Enquanto isso, o colosso devorava tudo com fúria: tempestade, areia, vidro, pedras, monstros — nada lhe escapava. Agia como uma força desordenada da própria natureza.

Kai não se intimidou. Com Vento Noturno embainhada, golpeou duas vezes a cabeça do monstro alado. A criatura guinchou, submissa. Com um movimento rápido, ele encaixou a bainha da espada onde deveria estar o pescoço da criatura — um cabresto improvisado. Soltou outra gargalhada enquanto lutava para se ajustar sobre as costas quitinosas da fera, que batia as asas com velocidade surpreendente.

Enquanto os monstros se destruíam num frenesi de sobrevivência e o colosso sugava tudo ao redor, Kai percebeu duas coisas pelo canto do olho.

A primeira: a fenda no solo — aberta pelas estacas de sangue cristalizado — começava a diminuir. A sucção brutal reduzia seu alcance, aliviando momentaneamente os monstros que tentavam escapar.

Mas isso não era bom.

As criaturas próximas voltavam a voar livremente, e o comportamento preguiçoso do colosso diante do fechamento da fenda lhes revelou algo: uma das suas — que outrora abandonariam à morte — havia sido capturada.

Um garoto pálido, com um sorriso duvidoso, gargalhava montado sobre uma delas.

O riso de Kai perdeu a cor assim que percebeu o que viria a seguir.

O colosso, pressentindo o perigo, recomeçou sua corrida voraz. As criaturas mergulharam de volta no caos, mas as mais próximas de Kai não hesitaram.

Atacaram.

Kai inclinou a criatura sob si para que recebesse os golpes. Ele mesmo revidou com chutes e socos, tentando afastá-las. Mas só uma medida seria eficaz.

Desembainhou Vento Noturno e, num único corte, decapitou a criatura que montava. As asas pararam de bater. Ela caiu em espiral.

Kai não hesitou. Saltou de monstro em monstro, ceifando suas vidas como um espectro da morte. As asas tombavam. Corpos ruíam. Sangue jorrava. Kai seguia, fatiando sem distinção.

A fenda seguia diminuindo. O colosso já não mantinha o ritmo — na verdade, parecia estar sendo puxado de volta. Talvez ao selo primordial das rochas subterrâneas. Uma esperança sombria.

Enquanto Kai matava e avançava, o colosso era tragado pelo abraço incandescente da lava e do magma.

As criaturas, em pânico, continuavam seu movimento desordenado. O colosso, por sua vez, usava sua estrutura gigantesca para capturar quantas pudesse antes de desaparecer.

Apesar de estar no ápice da luta, Kai riu. O desespero daquelas bestas era quase cômico.

Então o colosso rugiu mais uma vez — e dessa vez, com um poder ainda maior. A sucção recomeçou, devastadora.

Não havia escapatória: os monstros foram tragados de novo para o centro da fenda.

Kai tentou guiar sua criatura para voar mais baixo, qualquer distância ajudaria a escapar. Mas o plano teve efeito oposto: ao ver o sucesso de Kai, os instintos das demais criaturas foram despertados — todas tentaram repetir a manobra.

Com boa parte de sua “refeição” mudando de direção, o colosso também desviou, provocando uma ventania avassaladora. O calor cristalizava a areia. O atrito gerava um vendaval cortante.

Formou-se uma tempestade de areia, densa, voraz, tragando tudo ao redor.

Kai foi engolido pelo olho do furacão. A área inteira desapareceu em meio à tormenta. Nada mais era visível, apenas luzes brancas e sons guturais — o colosso rangia.

A tempestade rugia. Kai desapareceu dentro dela, provavelmente arrastado junto à morte.

Mas então, depois de muito tempo… algo emergiu da tormenta, que agora tocava os céus.

Um vulto — envolto em areia e gases flamejantes — rasgava os ares, criando um arco poeirento atrás de si.

Subitamente, despencou.

A massa de poeira foi varrida pela gravidade, revelando sua origem: um monstro alado de tamanho superior, debatendo-se com algo… alguém.

A criatura se chocou contra o chão, produzindo um impacto brutal.

E sobre seu dorso estava Kai Stone — coberto de sujeira, poeira e sangue seco até o último fio de cabelo — cravando Vento Noturno repetidamente no dorso da criatura.

Enquanto deslizavam no solo, o monstro guinchava, o sangue jorrava, e o som cortante da carne sendo rasgada preenchia o ar.

Foi assim até pararem de deslizar. O monstro emitiu seu último guincho.

Kai saltou do dorso, ofegante. Uma carranca cobria seu rosto pálido e ensanguentado. Com um movimento firme, limpou a lâmina da espada num gesto diagonal.

— E agora... onde diabos estou?

 

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