Volume 1

Capítulo 58: DECISÕES E CONSEQUÊNCIAS

 

Seja bem-vindo ao Anel de Armazenamento Tridimensional, criador sênior. O senhor possui a opção de me nomear. Como pretende continuar?!

“Não achei que funcionaria de primeira...”
pensou Kai, alarmado.

É verdade que sabia que não acertaria de primeira. Mas acertar na primeira tentativa?! A margem de tentativa e erro fora quase nula.

Nem mesmo ele sabia o que tinha criado ali. Uma IV nova? Mais evoluída? Ou seria involuída?

E o que ele conseguiria fazer agora com essa nova possibilidade?! Não tinha noção do que criara.

Sua mente borbulhava nas opções, nas milhões de coisas que poderia fazer ali dentro.

Primeiro tinha que analisar sua função.

– Milton, está aí?

AVISO. Qualquer interferência exterior é anulada pela junção sequencial de runas de escolas diferentes.

“Entendi... então ao sobrecarregar o anel com runas, criei uma espécie de proteção.”

– Diga-me, qual a capacidade mental que essa inteligência possui?

Incalculável. Ao passo em que a runa recém-criada, Ouroboros, foi adicionada ao sistema operacional, a capacidade cognitiva é quase idêntica à de um ser vivo.

– Posso chama-lo de Ivy? – indagou ele.

Este será o nome final do AAT?

“AAT?... ah sim. Anel de Armazenamento Tridimensional”
Pensou.

– Sim. – Confirmou. – Então a capacidade cognitiva é incalculável?

Perfeitamente colocado.

– É possível calcular a capacidade quantitativa de mana que o anel suporta?

Incalculável.

AVISO. O anel tenta rejeitar a Inteligência Artificial Ivy.

AVISO. O anel tenta rejeitar espaço dimensional recém criado.

AVISO. O criador sênior será expulso do Anel a qualquer momento.

“Droga! Então a margem de tentativa e erro não foi nula. Mas como eu posso prosseguir? Não gostaria de perder uma IV... ou IA como Ivy gosta de ser chamada.”

– Há algo que eu possa fazer para manter sua inteligência, Ivy?

Impossível. O anel já está desativando os sistemas operacionais e, a qualquer momento posso ser de...sa...ti...

AVISO. O criador sênior será repelido em instantes.

ZUP!

Kai foi jogado longe, destruindo algumas criações de Cineáltas no caminho.

Mas que droga! Tinha praticamente dado um passo evolutivo na tecnologia. Tinha criado um sistema novo, algo que nunca imaginou fazer, apenas se lembrando de livros que leu antes de deixar Neve Sempiterna. Mas sabia que tinha sido bom demais pra ser verdade.

Não tinha sequer noção se conseguiria repetir o feito. Afinal, nem sabia como chegou àquilo.

Sem contar o anel... ah, o anel. Como Cineáltas chegara na criação de um objeto tão ganancioso?!

Dúvidas rondavam essa criação do vitanti. Kai podia contar nos dedos as habilidades que o anel demonstrara.

1: Absorção de energia.
2: Armazenamento [incalculável] de energia.  

Agora expulsou ele de seu interior bem como desativou várias runas que, até pouco atrás, o rapaz considerou serem bem poderosas.

O anel pulsou em seu dedo, sem sinal algum de remorso.

– Milton.

Sim?

– Quero que analise as propriedades do anel novamente. Veja se alguma coisa restou.

Impossível.

Kai piscou, irritado.

– Por quê?

Deve se lembrar, anão fedorento, que sou um Quadro Rúnico. Minhas habilidades estão resumidas na criação de runas, selos, matrizes e, quem sabe, na de feitiços. Não possuo as técnicas adequadas para analisar e compreender coisas que nem mesmo você entende.

Uma veia saltou na testa de Kai. Se isso era pra ser um teste, ele estava conseguindo passar com louvor. Quem foi o anão imbecil que criou um Quadro tão ordinário?

Ao mesmo tempo, sua ansiedade para conhecer os anões de Montarumos aumentou.

Se um protótipo tinha a capacidade de ser tão espetacularmente imbecil, avalie o seu criador.

Ele bufou. Finalmente considerou que não levava jeito mesmo para criação de runas. Se um simples anel conseguia desativar suas criações, avalie um Mestre de Runas condecorado.

Osgar Feilan, o pai do sistema rúnico moderno, deveria estar se revirando em seu túmulo.

“Vou lidar com algo que sei, então.”

Desistiria, por enquanto, de tentar entender o anel. Já via que era muito perplexo. Podia, no entanto, tentar criar algumas coisas que lhe fossem úteis.

– Milton, temos alguma runa de armazenamento?

O quadro pulsou e, meio minuto mais tarde, uma nova runa surgiu na janela verde translúcida.

Kai ergueu a mão em direção ao QR e pegou a runa, que brilhou e se materializou numa pedra cinza com um símbolo incomum.

Ele aproximou a pedra aos seus olhos, afim de enxergar melhor o desenho. Era... uma nuvem? Sim, isso mesmo. Ergueu uma sobrancelha.

Deve servir pensou consigo mesmo.

Recolocou a runa no QR e pegou o cubo. Lembrava de ter passado por algumas mesas com coisas encimando-as.

Em poucos passos se aproximou do local. Não precisou procurar muito para encontrar o que buscava. Um sorriso amarelo ergueu em seu rosto.

Imediatamente sua memória lembrou-o das bolsas usadas por mensageiros do rei, quando o sistema de corvos e urubus ainda não tinha sido criado.

Era uma bolsa de lado, com abertura horizontal. Era feita de couro e costurada por linhas espessas.

– Milton, eu conseguiria inserir uma runa em objetos feitos de tecido?!

Hm. Sim, mas o efeito seria maior se você desenhasse a runa.

– Pra isso eu teria de entender o cerne do sistema dessa runa... – ele balbuciou. – Não teria o mesmo efeito se eu pegasse a runa e a rompesse, usando apenas o símbolo?

Não. Para um resultado melhor, gravar o símbolo rúnico com magia não projetada é o mais adequado.

Criar runas com um objeto impregnado era mais fácil do que desenhar runas. Na verdade, ele só conseguiu criar runas até agora pois teve o auxílio do Quadro Rúnico.

Apenas Mestres Rúnicos e estudiosos de runas tinham a capacidade de criar runas sem a ajuda de um objeto tão avançado. E os anões tinham sido os pioneiros nisso, como sempre.

Tudo o que ele tinha era o entendimento teórico. Mas se fosse para criar uma runa ele mesmo, sem um hospedeiro, ou seja, a pedra, não saberia nem por onde começar.

– Certo. Vou deixar isso pra quando encontrar algum mestre de runas – balbuciou Kai.

Caminhou pelo salão olhando para as coisas, talvez deixadas ali por tanto tempo que nem mesmo Cineáltas poderia saber do que se tratava.

Teria tempo para botar em prática suas ideias acerca do chi. Suas ideias para com as runas – não desistira por todo de tentar criar a partir do anel.

Teria tempo o suficiente para pensar em tanta coisa, e não poderia perder tempo. Iria evoluir. Iria se curar. Tinha de fazer isso.



***



Kai estava sentado na frente de um bocado de armas. O Quadro de Runas pulsava à sua frente, produzindo mais e mais runas.

Ele não sabia quanto tempo havia se passado, mas teve muito tempo a sós. Muito tempo para pensar. Tinha tomado algumas decisões.

– Milton, agora me dê a runa de compressão.

O quadro rúnico vibrou e uma pedra com três linhas no meio e duas setas nos flancos surgiu.

Kai pegou rapidamente e a pressionou, induzindo seu chi. A pedra se rachou, formando um pó brilhoso. Apenas o símbolo restou. A runa viva.

Ele teve o cuidado de continuar ingerindo seu chi no símbolo. Se perdesse o foco, a runa se desfaria e perderia sua mágica.

Pegou a adaga e colocou o símbolo, o último na linha vertical da lâmina, que estava repleta de outras runas.

Suor pingou, devido a concentração extrema de concentrar o chi de maneira tão complexa. Teve de manter uma neutralidade: nem muito chi para a runa não sobrecarregar e explodir no rosto dele, nem pouco chi para a runa não descarregar e perder a magia.

Tinha aprendido a lição. Largou as armas longe uma dúzia de vezes antes de suas lâminas explodirem em um milhão de fragmentos. Sua sorte foi erguer um fino escudo de energia.

A lâmina da faca brilhou. Kai ergueu um sorriso torto.

– Não acredito que você nomeou essa coisa de Milton.

Kai se virou. Ómra sorria, sarcástico. Ao seu lado, Cineáltas ergueu uma garrafa cheia de um líquido cor de âmbar e balançou uma cesta que trazia na outra mão.

Ambos se aproximaram.

– Então é pra isso que serve esse quadro. Criação instantânea de runas. Assim fica fácil, Kai.

O rapaz riu, se virando para eles.

– Pra alguém que pode se tornar um mestre rúnico é fácil falar.

Ómra abriu a boca, se sentando.

– Quer dizer que você...

Kai balançou a cabeça.

– Não. Apenas entendimento teórico – ele se virou para Milton, encarando as runas que pulsavam. – é o que facilita o uso com essa belezinha.

Tornou a se virou para Cineáltas, que encarava as armas espalhadas pelo chão.

– Espero que não seja um problema...

O velho homem piscou, sorrindo.

– Não é. Só fiquei surpreso. Que é que você fez aqui?

Kai se abaixou, pegando a adaga que acabara de soltar no chão.

– Tentativa e erro. Dessas 20, tive sucesso em apenas três.

Ómra soltou uma risada ecoante.

– Não quero nem saber o que aconteceu com as outras 17. E então, que é que essa aí faz?

Kai piscou, se erguendo.

– O senhor compreende a razão, não é?

Cineáltas assentiu.

– Qual elemento tem afinidade?

– Todos.

Kai abriu a boca, surpreso.

Cineáltas sorriu.

– Ser chefe tem seus privilégios.

Afastando a comoção do rosto, Kai se distanciou. Contou 30 passos largos até se virar e sorrir. Não precisava gritar, o salão tinha boa acústica.

– Preciso que o senhor invista com o seu melhor ataque de nível médio em mim. Pode ser qualquer elemento.

– Acho que não é uma boa ideia! – Ómra alertou.

– Silêncio, Júnior. – Kai atalhou. – Papai nunca lhe disse para não se meter na conversa de adultos?  

– HAHAHA! – Cineáltas jogou a cabeça para trás e apontou para Kai. – Aí está! O bom humor dos homens do Norte, como bem ouvi de Abwn. Muito bem, Kai, farei como pede.

Entre a carranca de Ómra e o sorriso bobo no rosto de Kai, o senhor de Pylpunt ergueu o braço acima da cabeça com a palma virada para cima.

Uma fina chama crepitou ondulante. Em segundos ela cresceu, explodindo suas finas fagulhas para cima. E, tão rápido quanto iniciou, a chama se conteve.

Lentamente, Cineáltas abaixou o braço. A chama diminuiu até se tornar uma pequena esfera alaranjada.

O senhor de Pylpunt tomou impulso e a arremessou na direção de Kai. Ele notou ventos circundando a esfera ao passo que ela diminuía espaço, aumentando sua velocidade.

“Dois feitiços. Esse nível mágico...” pensou ele.

Kai apertou bem o cabo da faca, esperando até que a esfera estivesse perto o bastante. Ela se aproximou e ele cortou para frente, partindo-a em dois.

Cada lado da esfera foi em uma direção, gerando uma grande explosão que lançou Kai para a frente.

Ele ergueu o rosto, aturdido e alarmado.

Pensei ter dito pra ele lançar um feitiço médio pensou, voltando-se para Cineáltas. Que tipo de monstro é você?!

E o homem parecia ter o mesmo tipo de incredulidade estampada no rosto. Ele se jogou para a frente, a boca bem aberta e os olhos arregalados.

– KAI, QUE RAIOS DE RUNA FOI ESSA QUE VOCÊ USOU?

O rapaz se ergueu, limpando a sujeira das próprias roupas.

– Antimagia, mas ainda não tem o efeito que quero.

– Como não? Você acaba de cortar em dois um dos meus melhores ataques de fogo.

– A intenção é que a magia deva ser totalmente anulada – Kai pigarreou. –  Mas a escola de Antimagia não é uma das que eu me saio bem, isso é mais pros magos alquímicos.

– Então existe algo assim, é?

Kai sorriu.

– E muito mais. O que me leva à questão anterior: você poderia me dar um ensino básico sobre runas? Quero utiliza-las em tecidos, e parece que tem um efeito mais eficaz se produzido no momento de fabricação ou algo assim. – Kai tocou o queixo, pensativo. – Milton é uma IV bem desleixada.

Ómra pigarreou.

– Ainda não acredito que você nomeou o troço de Milton.

Kai deu com a mão, dispensando o comentário do amigo. O vitanti franziu a testa.

Cineáltas se sentou, respirando fundo. Pegou a garrafa e tirou sua rolha, depositando o líquido num copo que retirou da cesta que trouxe. Deu-o a Kai; em seguida encheu um copo para si e outro para o filho.

– Criar as runas é algo complexo, sabe? Primeiro, tem de haver um controle absurdo sobre sua própria energia. Depois, concentração extrema. – Ele se ajeitou em seu acento. – Os Quadros Rúnicos criados pelos anões vieram para facilitar o uso de runas para aqueles que não tem a capacidade de manipula-las, mas há dentre os que vieram antes dessa atualização que preferem continuar com o método antigo. Compreender a sistematização, os feitiços que devem ser impregnados... é algo único.

Ele fechou os olhos e ergueu a mão direita. Respirou fundo e, meio segundo mais tarde, sua manti se materializou na sua frente, saindo como finos fachos de luz azul diretamente da ponta de seus dedos.

Cinco símbolos se formaram no ar, ondulando. Kai abriu a boca, admirado.

– Estas são as cinco runas principais: Justiça, Altruísmo, Lealdade, Honestidade e Respeito. Inicialmente, os anões criaram as runas com a finalidade de criar o alfabeto. 

– Sim – Kai concordou. – O lereu antigo é a primeira forma de linguagem datada que se tem notícia.

Cineáltas concordou.

– A língua sofreu alterações, existem muitos idiomas. Há o dialeto élfico, dos orcs, dos aasimar e até dos vitanti. Todos temos diversos tipos de linguagem. Mas há uma que se tornou universal, e é a que usamos para nos comunicar no momento. Falar de runas sem dar um detalhamento básico de sobre como surgiram, é quase uma afronta.

Kai concordou. A língua dos homens era diretamente influenciada pela dos anões também. Sabia que muitas coisas hoje dependiam dos anões. E eles não eram fáceis de lidar. Imagine o tamanho de seu ego.

– Com o tempo, os anões passaram a criar runas para outras coisas: fortalecimento de armas, criação de escudos instantâneos. Até mesmo esquentar comida... céus, há tantas coisas que se podem fazer com runas. E você sabe o que acontece se juntar as runas por meio de uma ligação através da manti?

Kai assentiu.

– Formam-se matrizes e selos, a depender do uso.

– Isso – o senhor de Pylpunt bateu no próprio joelho. – O básico você já sabe, Kai. O resto é entendimento, estudo. Concentração. Ao refletir sobre as runas, ganha poder sobre elas e, junto disso, a capacidade de cria-las. Mas é claro, tem um alto custo. É necessário bastante manti.

Kai piscou. 

– Só isso?

– Sim. Óbvio, você não pode esperar já aprender a usar o método antigo, seria impossível. Mas com concentração adequada da sua energia vital, pode formar runas com o poder de um único pensamento. Basta compreende-las à um nível detalhado. Mestres rúnicos são incríveis assim.

Kai assentiu. Ficou pensando sobre aquilo enquanto bebiam e comiam. O mais velho trouxe algumas frutas e uma comida feita especialmente pela mãe da pequena Plum.

Conversaram bastante enquanto Ómra dava informações sobre as coisas lá fora. Alguns dias haviam se passado desde que Kai foi para o salão dos Echanti, então ele estava pouco a par das coisas.

Carmim não havia tomado nenhuma ação e, apesar dos esforços de Tallanthin, tinham quase certeza que uma facção estava se formando por baixo dos panos.

Ainda haviam muitos vitanti com receio. Agiam sob a justificativa de que, caso Mael não acordasse, um novo Neru’dian deveria ser urgentemente escolhido. Claro, o pai de Abwn tinha tomado a dianteira provisória do Sínodo e do resto, mas acreditavam veementemente que alguém tão velho e enfermiço não tinha condição nenhuma de liderar um povo tão orgulhoso.

Os ares de mudança ventavam no rosto de Kai, ele querendo ou não. Algumas horas se passaram e Ómra já estava dormindo no chão.

– Tomei algumas decisões sobre o futuro, Cineáltas.

O mais velho ergueu os olhos do copo. Franziu a testa.

– Que decisões?

Kai suspirou fundo. Foi duro chegar à essa conclusão. Não difícil de pensar nela, apenas ruim de aceitar. Mas ele tinha de aceitar, era necessário.

– Primeiro de tudo: estou ciente que o prazo que Tallanthin me deu já está chegando ao fim. Em uma semana ou menos, tenho que me retirar da Orquídea.

O rosto do mais velho ficou sombrio.

– Contudo, decidi que não irei embora. Pelo menos não enquanto Mael não acordar.

Cineáltas se sobressaltou. Abriu a boca para retrucar, mas o rapaz ergueu a mão.

– Por favor, peço que apenas ouça e, depois, diz se concorda ou não. – O velho assentiu, se empertigando na cadeira. – Não é birra. Eu entendo que isso pode acarretar raiva e outra série de sentimentos ruins na população vitanti, mas não posso deixar tudo à esmo. Mael tem pouca gente que o apoia, mas essas pessoas nem hesitariam em iniciar uma rebelião caso os desejos de Abwn não fossem atendidos.

“E Carmim sabe disso. É por isso que eu ficar é a melhor escolha.”

Cineáltas franziu a testa. Ele finalmente entendeu.

– Você quer se tornar um mártir.

Kai assentiu.

– Não ligo se vocês gostam de mim ou me odeiam, mas Carmim é astuto, age por baixo dos panos. Ele pode incitar e depois se fazer de vítima. E eu, que não sou um vitanti, posso agir ao meu bel-prazer. Posso mata-lo se isso se mostrar necessário. No fim, Mael acordaria e seria o Neru’dian; e eu, seria apenas o cara que acabou com uma guerra civil logo após uma guerra abalar os vitanti.

“É aí que entra a minha próxima decisão; pra isso, preciso que arranje tempo para mim. Converse com Tallanthin, deem um jeito de estender minha hospedagem. Façam o que tiverem que fazer, mas consigam que eu permaneça aqui tempo o bastante até que Mael acorde.”

Cineáltas apertou as laterais de sua cabeça com o dedo médio e o polegar. Suspirou fundo e encarou o rapaz.

– Digamos que nós consigamos isso. Supondo... apenas supondo... onde é que você ficaria esse tempo inteiro?

– A outra decisão que tomei depende disso para acontecer. – Kai levou o copo aos lábios, tomando num gole só o restante do líquido. – Preciso me curar, Cineáltas. Minha mente está fora do lugar... Greylous mexeu com ela. Não posso fechar os olhos sem que... sem que veja tudo de ruim que aconteceu desde que fui capturado. Vendo tudo através de uma tela translucida, sem o controle do meu próprio corpo.

Kai encarou o chão, pesaroso.

– Preciso cuidar disso aqui – ele cutucou a própria cabeça. – Preciso me fortalecer. E pra isso, vou ficar aqui neste salão, por dias intermináveis. Até que Mael acorde, este será meu lar. Se preferir, pode mover homens para fingirem que estão me vigiando.

Cineáltas encarou o rapaz, vendo o quanto ele estava sofrendo. Por trás daquela casca gentil e despreocupada, havia um menino sofrendo. Havia um menino tendo que lidar com mais demônios do que poderia aguentar.

– Certo. Tentarei conversar com Tallanthin. Verei também se disponibilizo comida e...

– Você não entendeu. – Kai ergueu a mão, interrompendo-o. – Não pode haver nenhum contato. Ficarei trancado aqui, sozinho.

Cineáltas bufou. Se ergueu num pulo e andou até o filho. Pegou-o pelo braço e o jogou no ombro como quem pega uma criança recém-nascida no colo.

– É uma dura decisão, Kai. Dói meu coração vê-lo assim; contudo, acredito que a reflexão e a meditação farão bem a você. Certo! Farei o possível para aumentar sua estadia.

Kai assentiu. Ainda tinha de comunicar uma outra decisão, mas o velho homem estava apressado. Não quis nem mesmo se aprofundar no assunto. Parece que tinha sido convencido com poucas palavras.

– É só até Mael acordar. Se, até lá, não acontecer nenhuma tragédia, então vocês poderão agradecer à Bulogg e Eteyow eternamente.

O homem concordou com um sorriso de canto. Começou a se distanciar até que se virou, o olhar pesaroso.

– Peço desculpas por, mais uma vez, pedirmos tanto de você, bom amigo. Seus sacrifícios já foram pesados demais.

E se virou, se afastando mais e mais.

– Não é sacrifício se é para ajudar bons amigos. – Disse Kai. Sua voz chegou até o homem, que enxugou uma única lágrima.

Então ele se foi deixando Kai mais uma vez sozinho com seus pensamentos.



***


Ómra corria feito louco pelos corredores do antigo salão dos Echanti. Lutou para conter a respiração, inundando seus pulmões com éter.

Mas manti nenhuma era capaz de anular as pontadas que seus pulmões sentiam a cada arfada. Era como se ele estivesse debaixo d’água sendo espetado várias e várias vezes nas costas.

Seu peito ardeu e ele tropeçou nos próprios pés. Droga!

Dois meses!

Dois meses desde que seu pai se virou para ele e disse que Kai tinha ido embora. Sem se despedir. Muita gente ficou magoada, inclusive Fioled.

Ele foi sem avisar, e Ómra ficou chateado com ele. Muito mais por Kai não ter considerado os sentimentos da irmã.

Mas quem ligava para isso?! Ele mesmo aprendeu a gostar do rapaz. Aprendeu a chama-lo de amigo. E foi assim que ele o tratou.

Uma semana mais tarde, após o ingrato ir sem dizer nem adeus, seu pai proibiu que ele voltasse a pisar no salão. E isso ergueu uma série de dúvidas e questões.

Mas muita coisa aconteceu depois disso. E agora estava pior.

Algumas horas antes seu pai o chamou, atordoado, e contou um segredo que viria à tona em breve. E isso poderia ocasionar uma guerra civil.

Droga!

Ele finalmente chegou ao no último corredor, que era sem saída. Ao se aproximar da parede que visitou há exatos dois meses, sentiu uma poderosa aura emanar.

Era forte, quente, imponente. Mas era pura, não sentia perigo, apenas um sentimento de aconchego.

Encostou a mão na parede e ela se abriu como antes.

A aura recuou imediatamente e, parado, com as mãos para trás, havia um jovem de cabelos na altura dos ombros. Estava penteado para os lados, e ele tinha uma expressão calma.

Ómra sentiu a nostalgia bate-lo. Kai sorriu para ele.

– E então, Júnior, qual a novidade?

O jovem vitanti engoliu em seco, bem como a resposta afiada que queria dar. Mas não havia tempo para discussões.

– Carmim. Ele está se movendo para cá com uma tropa de 300 homens. 



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