Volume 1

Capítulo 56: O ANEL DE ABSORÇÃO


Kai socou uma árvore com tanta força que ouviu um estralar incomum em sua mão.

Ela ardia. Tinha certeza que havia fraturado o metacarpo e a falange média. Chi fluiu por seu pulso imediatamente, buscando aliviar a dor, como um processo de cura instantâneo.

Kai o retesou. Queria sentir a dor. Só assim saberia que estava acordado.

Não era a dor durante os pesadelos que o assustava. Era a falta dela. E era assim que ele conseguia distinguir realidade e sonho.

Não era o revisitar constante em seus pesadelos que o atormentava. Era a lembrança que se vinha após isso. Não tinha medo de Greylous; não mais.

Mas isso o atormentava porque era difícil de esquecer. O xamã infundira um medo profundo em sua mente. Enraizou uma maldição tão imersiva que Kai sabia que muita gente daria tudo para ter.

Não ele.

A habilidade de nunca esquecer nada. O que muitos considerariam uma benção.

Não ele.

Sua mão latejou, inchada, e só assim ele se sentiu aliviado. Era na sanidade que encontrava refúgio. O afago iminente de sentir prazeres da vida. Não somente o medo imemorial e sucinto que calejava durante suas noites mal dormidas.

Mas o sono o acompanhava a cada hora do dia.

Suspirou fundo, dando um mero descanso à suas mãos.

Era a terceira noite desde que iniciara esse processo de autocura. O método de extravasar bem longe da família Echanti. Eles não mereciam saber de seus demônios. Os conhecia suficientemente bem para saber que iriam, com toda a certeza, se culpar por isso.

Foi perspicaz ao adentrar fundo o bastante nos jardins do clã, a fim de socar algumas árvores e evitar que notassem sua autopiedade fingida.

Mais de duas dúzias já haviam caído. Ele esmurrava o tronco delas até que caíssem. Não era simples. Nem deveria ser. O chi ajudava de certo modo, nenhum homem teria força o suficiente para derrubar uma árvore com os próprios punhos sem a ajuda necessária.

Pela manhã, amarrava-as ao ombro e levava para perto da casa, onde cortava em pedaços e deixava na base da parte de trás. Já havia renovado o estoque de madeira dos Echanti em muito. Tinha quase certeza de que toda manhã o homem – que evitara suas obrigações sociais –, ficava confuso ao ver que o estoque só aumentava, nunca diminuía. Em uma ou duas semanas ele começaria a suspeitar.

Sentou no cepo de uma das árvores. Puxou o anel do bolso, encarando a pedra. Vinha pensando bastante sobre as propriedades daquele objeto.

Poderia ficar horas encarando aquela rocha preta e lisa, colocada sob medida no ferrofosso. Era realmente linda.

Notara que enquanto perdia o controle sobre si, sempre que o chi ameaçava se rebelar, a maior parte era absorvida pelo anel. Não se sentia exatamente cansado logo após isso, mas era como se o sono o abatesse, e ele conseguia dormir por um bom tempo sem ter pesadelos de novo.

Mas era um enorme preço a se pagar. Sempre que despertava após isso, era como se estivesse se recuperando de uma longa doença. Ficava muito fraco.

Por isso, achava preferível ficar com sono. Só usaria o anel quando estivesse com muito sono ou, quem sabe, quando resolvesse o problema dos pesadelos.

Sondou o anel com o chi, mas nada aconteceu. Já vinha tentando fazer isso a muito tempo, sem saber o que esperava encontrar.

Tinha lido sobre os objetos dimensionais feitos pelos anões. Não era rico para isso, e em Neve Sempiterna os Murphy ainda não tinham aderido tal tecnologia.

Mas, aparentemente, o Instituto vinha aos poucos introduzindo a nova tecnologia nos reinos livres do homem, junto a outras tecnologias.

Os objetos dimensionais davam certa liberdade ao usuário para que pudessem guardar objetos de pequena e grande escala. Segundo as informações fornecidas pelo Instituto, bastava que a pessoa portando, sondasse com mana o objeto. Kai achava engenhoso, e não duvidava da capacidade dos anões. Tinha visto de perto a engenhosidade com o Quadro Rúnico.

Duvidava, no entanto, que Cineáltas tivesse, sem querer, criado um objeto dimensional, mesmo que sem querer, obrigou-se a repetir na própria mente. Seria sorte demais.

Mas e se a própria pedra tivesse essa propriedade?! Ideias borbulharam em sua mente. Ficou entusiasmado com a possibilidade de descobrir algo novo.

Guardou o anel de novo no bolso, a fim de resolver isso mais tarde.

Ainda estava no meio da noite e não sentia sono algum. Se levantou de súbito e andou até um tronco caído logo ali. Ergueu-o e o colocou de pé.

Caminhou vinte passos para a direita e respirou fundo, fechando os olhos.

Concentrou-se no próprio Tanden, revisitando a esfera de chi abaixo do umbigo. Ela girava em torno de si suavemente. Sua cor, no entanto, havia mudado.

Assumiu um tom roxo doentio, como se Kai estivesse doente. Não deixou de pensar que realmente estava. Sua mente não estava no lugar certo, e só conseguiria se livrar disso com bastante meditação. Mas não estava pronto para isso. Ainda não.

Tinha que viver esse processo como qualquer outro, sem pular etapas.

Ainda não era hora de se livrar por completo de seus demônios. Tinha de dominá-los, vivencia-los e, só então, livrar-se deles. Era como pensava.

Seus canais tinham se expandido bastante, mas estavam flácidos, como se o processo não tivesse sido natural. Então ele meditou, tentando tomar controle dos raios que se soltavam da esfera de chi em seu Tanden. Iria curar seus canais de chi, recoloca-los no lugar.

Sabia que era capaz disso, apenas precisava se conectar novamente consigo mesmo. Pensou no que o atormentava: os vitanti morrendo por suas mãos, a vida que viveu e achou que era real. Cortar Abwn Eblomdrude ao meio.

Eram muitos pecados, muitos receios. Não estava pronto para se perdoar ainda, mas necessitava. Esse seria o início de um longo processo.

Buscou ficar calmo com os pensamentos. Se não tivesse controle sobre si, teria de usar o anel novamente.

Se concentrou não somente em si, mas nos arredores também. Escutou o chiar dos pássaros, o vento uivando. A grama resvalando em si mesma. Escutou as raízes profundas da terra se remexendo, a energia vital do mundo se conectando a ela.

Infundiu a energia do ambiente em si mesmo. Não tinha nenhuma energia própria e limpa para fazer isso, só conseguiria prosseguir se se conectasse com o mundo também. A energia neutra o ajudaria nesse processo.

Pouco a pouco, a energia foi purificando os canais de chi, se conectando aos raios que se desgarravam da esfera aqui e ali. Os próprios raios roxos eram purificados com uma energia cristalizada, pura.

A esfera foi preenchida com essa energia cristalizada, tirando as impurezas. Mas a mente de Kai ficou nebulosa, como se se negasse a aceitar aquela purificação. Era a maldição de Greylous agindo.

Ele havia deixado algo mais, Kai sabia. Não eram somente lembranças e acontecimentos que nunca iriam embora da mente dele. Um sentimento de ódio também ficaria vivo, latente, como um sistema de alerta, para lembrar Kai de nunca conseguir perdoar Greylous pelo o que fez.

Kai queria seguir em frente, mas não conseguia, pois, esse único sentimento, a ira maculada e imprevisível, ardia como se tivesse acabado de surgir. E Kai se lembrou das próprias palavras, a própria voz direcionando o ódio nunca sentido por ele. Nunca odiou ninguém, mas odiava Greylous. E isso dificilmente seria deixado para trás.

Suas memórias ficaram nubladas, obscuras. Preenchidas por lembranças de algo irreal. Kai não odiava Greylous pelo que fizera a ele, muito embora seus pesadelos fossem sempre de quando fora torturado. Ele o odiava por tê-lo colocado numa espécie de vida que nunca poderia alcançar.

Jamais esqueceria dos filhos inexistentes. Jamais esqueceria dos afetos que teve, do amor que jurou. E, mesmo que viessem a sentir, isso não aconteceria. Não poderia acontecer.

O fluxo de energia do ambiente foi interrompido, os canais tornando a obscurecer. Os raios que os ligavam à esfera densa de chi foram se tornando breu, também poluindo a esfera que, pouco a pouco, ganhava tons cristalizados. O roxo doentio se intensificou e a esfera expandiu, empurrando os canais de chi junto aos pontos de conexão.

Com a massiva onda de energia querendo se rebelar, Kai teria que agir. Se não controlasse o fluxo imediatamente, seu corpo explodiria e tudo ao redor iria pelos ares. Seria uma catástrofe sem precedentes. Não poderia deixar isso acontecer.

Forçou-se a controlar o chi, direcionando-o pelos canais que se ramificavam e se autodestruíam. Ele notou suas veias sangrando e uma dor excruciante o inundou. Lidaria com isso depois; qualquer coisa que viesse a acontecer, teria de ser reduzido apenas a ele mesmo. Não poderia deixar que seus demônios se libertassem. Eles eram seus.

Com imensa dificuldade, o chi revolto fluiu pelos canais, destruindo tudo à frente. Kai lutou para criar canais ramificados, para que os canais principais não fossem destruídos. Isso anuviou a destruição que o chi estava causando nos canais primários. Mas não impediu que os canais primários sofressem o rebote.

Droga!

Abriu os olhos de súbito, atordoado. Seus olhos correram até o tronco do outro lado, se preparando para a inevitável destruição. Seus punhos arderam com uma cor laranja e amarela. Ignorou a dor, que era como se tivesse enfiado os braços dentro de fogo liquido. Não. Dentro de puro magma.

Ergueu os braços na frente do corpo, tremendo inteiro, e gritou, liberando a energia ardente.

O disparo deixou um rastro de pura destruição, criando uma trincheira reta no chão e farfalhando o próprio ar, como se destruísse o manto dimensional do próprio ambiente.

Demorou poucos segundos para que o disparo reduzisse o tronco a cinzas. Mas não parou por aí. Kai continuou gritando, sem conseguir ignorar a dor nos punhos.

Sua voz ecoou pelo jardim, logo acordaria os Echanti.

O fogo logo se intensificou, a destruição ficando tão apavorante quanto poderia. Kai achou que logo ficaria sem energia, mas isso não aconteceu. O que faria agora? Pensou que apenas liberando-a, seria o suficiente. Mas o chi queria destruir, ele percebeu.

E logo sua mente se lembrou de algo que lera no livro de chi. Ficou pálido. Tinha que evitar antes que seu chi ficasse mais obscuro, enegrecido... sombrio.

Mas como faria isso?! Lutou para conter o disparo nos punhos, como se fechasse os olhos. Mas ardia demais, querendo ser liberado urgentemente. Quanto tempo mais ele aguentaria antes que explodisse e ficasse sem mãos?! Não sabia. Mas, entre o momento em que cessou o disparo e o tempo em que isso acontecesse, agiu rápido o suficiente para meter a mão no bolso e tirar o anel, colocando-o no anelar esquerdo.

Então não aguentou mais, tinha que liberar. Era agora que descobriria os limites do anel. Percebeu que o colar não absorvera nem um pouco da energia, e isso só podia significar que agiam em conjunto.

Assim que o anel se acendeu e ele liberou os punhos, a energia começou a ser sugada para o anel. Arcos de energia dourada envolveram Kai, como se uma bolha solar se formasse a olho nu.

Ele encarou tudo aquilo estupefato. A energia que se liberava de seu Tanden não acabava e, mesmo assim, o anel não dava o menor sinal de que ruiria. Foi uma loucura!

Kai notou as próprias veias e canais de chi se purificando. Era como se algo estivesse varrendo, puxando as impurezas.

Era o anel!

Ele notou também que a impureza em sua esfera de chi, o núcleo, estava sendo sugada. Por conseguinte, o tamanho da esfera diminuiu, com os canais de chi voltando para o lugar.

As ramificações criadas por Kai também foram purificadas, apesar de ter poucas impurezas rodando por ali.

Um processo de loop energético se iniciou. O anel sugava a energia dos arredores, direcionando para o corpo de Kai enquanto que este sugava as impurezas.

Kai olhou alarmado para os próprios canais antes destruídos, que iniciavam um processo de restauração natural. Aquilo era demais!

Então o anel finalmente execrou nove por dez da energia impura; mas começou a sugar a energia que ele mesmo colocara no corpo de Kai. Sugava mais e mais a própria energia dele, e ele começou a ficar fraco.

Gritou de dor quando percebeu que o processo de absorção aumentou de 1/5 por segundo para 3/5 por segundo. Isso se deu unicamente por causa dos canais recém criados, que facilitaram o fluxo de energia percorrendo por seu corpo.

Se ele não tirasse o anel imediatamente, seria sugado até morrer. Lembrou da técnica que usava quando ainda era um manipulador de mana. Riu consigo mesmo, irônico.

Não iria morrer assim nem a pau!

Havia muitos mistérios sobre aquele anel, e ele descobriria logo, logo.

Lutou contra a fraqueza e ergueu a mão direita a fim de tirar o anel. O objeto se firmou em seu dedo, sem querer se mover. Ele teria que agir imediatamente, cortaria o dedo se fosse preciso.

Mas foi mais prático: passou a corrente pelo pescoço e rebolou o cordão longe. O anel imediatamente diminuiu a absorção e, sem perder tempo, Kai também o puxou.

O objeto ainda lutou para sair do dedo, mas ele conseguiu removê-lo. Jogou-o longe e fitou a destruição que acabara de fazer.

Alguns segundos se passaram e, entre as árvores à direita, a família Echanti surgiu, Cineáltas encabeçando a dianteira.

Todos olharam estupefatos de Kai para a destruição. Este apenas se jogou no gramado de braços e pernas abertos, e sorriu, cansado e feliz. Que belo achado ele descobriu.



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