Volume 1

Capítulo 55: HERANÇA


Kai não soube o que o atordoou mais: ver aquelas criaturas miúdas cochichando – mais parecendo uma briga do que uma conversa; as reações diversas dos ali presentes, ou a reações do próprio Ómra, que caiu em lágrimas.

Um silêncio pairou, Kai sendo tomado por um nervosismo infantil. Seu peito coçou, faltou-lhe ar, mas foi coisa de poucos segundos.

O irmão de Fioled continuava chorando, os ombros balançando convulsivamente. Hyvina se prostou ao lado do noivo, dando o apoio esperado. Ele ergueu o rosto, ao mesmo tempo surpreso e aliviado. Deram as mãos e ele finalmente conseguiu respirar, encarando Kai logo em seguida.

– Eu fui um tolo, Kai – disse, suspirando e enxugando as lágrimas. – Tenho sido um desde que o salvamos junto à Fioled. Fui um ao acusa-lo de ladrão... fui um ao questionar, não uma, mas várias vezes a sua liderança... e você me salvou... salvou minha irmã...

“Tudo o que eu sentia era raiva de você, por Oren, por seu povo, por tudo o que nossa história sempre representou.” Ele passou as costas da mão no rosto.

– Sempre fui alguém com princípios, que não buscava julgar por opiniões alheias, sem ter meu próprio julgamento... e, ainda assim, tudo o que fiz foi criar uma represália desnecessária. Fui fiel demais à um amigo que, no fim, também estava errado. Estivemos errados a seu respeito mais de uma vez. E você provou quando deu sua vida por minha irmã, por um povo que nunca viu. Eu não dei o privilégio da dúvida, Kai..., mas o dou agora.

Ómra se ajoelhou com firmeza, arrancando suspiros sufocados de sua noiva, mãe e irmã. Cineáltas observava de braços cruzados, o rosto severo.

O jovem bateu três vezes no peito e gritou:

– Eu, Ómra do clã Echanti, herdeiro de Pylpunt e futuro senhor das vilas artesãs e pesqueiras, prometo minha honra, minha fidelidade, minha amizade e... e vida a você, Kai Stone... até o fim de minha vida.

Ele permaneceu firme olhando para Kai, que manteve o olhar severo, mais até que o do patriarca da família Echanti.

Fioled estava de queixo caído, não acreditando na cena que vira. Giglio era quase a mesma coisa, exceto que segurava o marido pela manga da blusa, tremendo. Hyvina estava pálida, a boca entreaberta.

Kai suspirou e todos, exceto os dois homens, prenderam a respiração.

Aquela fora uma promessa perante um senhor, um patriarca. Até mesmo Kai sabia o valor de um juramento, ainda mais um como aquele.

Ómra jurara sua vida a Kai!

O rapaz riu perante a ironia dos fatos. Não muito tempo atrás, vivera numa realidade onde ambos eram amigos. E seu peito se encheu de uma paz tão grande... uma paz que ele não sentia há dias, desde… desde a conversa com Abwn no Plano Etéreo.

Talvez a ilusão estivesse se tornando realidade... não. Não podia, Kai sabia. Ele nunca seria filho de Siobhan Murphy, nunca se tornaria o lorde de Neve Sempiterna – apesar de não querer –, nem se casaria com Ardara Murphy e teria três lindos filhos – apesar de, novamente, não querer também.

Não... na verdade, a única coisa plausível e aceitável daquela dura realidade que lhe fora imposta de maneira brusca e tomada de modo mais assaltante ainda, era a amizade inalcançável dele com o filho dos Echanti.

Era o fato irreal dele ser amigo próximo... dele ser quase um irmão para o rapaz nessa realidade alternativa. E, talvez, por que não poderia ser assim na realidade real também?

Kai encarou Ómra, apesar de seu olhar vago estar à quilômetros dali, na triste realidade que fora arrebatado. No eterno “e se” de sua vida. No pesadelo que nunca o deixaria, que nunca o abandonaria. Em parte, por Greylous ter garantido que ele jamais se esqueceria, por ter sido o ser que tornou a vida de Kai um pesadelo eterno.

Kai deu três passos, o rosto fechado e pesaroso. Esticou a mão e tocou no ombro de Ómra.

– Não há necessidade disso.

Ómra piscou, aturdido. Ele entendeu bem? Kai tinha recusado sua oferta. Seu peito se encheu de um sentimento inconclusivo. Tendeu apenas a retrucar.

Franziu a testa, contrariado.  

– Posso... – ele se retesou, percebendo o nervosismo da voz. – Posso saber o porquê?

Kai desceu a mão pelo braço de Ómra, segurando firme pouco acima do cotovelo. Puxou-o, balançando a cabeça lentamente. Entreabriu a boca.

– Eu não carrego mágoa de ninguém nessa vida, Ómra. Nem de você, nem de Oren, nem de ninguém...

O rapaz piscou, confusão substituindo a contrariedade.

– Não entendo... achei que gostaria disso, que iria querer algo assim depois de tudo...

Kai sorriu, sereno.

– Você acaba de dizer que não deveria julgar premeditadamente, mas continua tendo o mesmo tipo de comportamento. Eu só quero que você viva e se torne o senhor que tem de se tornar, somente isso. Viva o bastante para que se torne um pai tão amoroso e orgulhoso dos filhos quanto Cineáltas é com os dele.

Ómra piscou, mudando o olhar de Kai para o pai, que tinha um sorriso caloroso.

– Ah, Kai... – choramingou Hyvina, caindo no choro e abraçando o rapaz.

O filho do Echanti sorriu. Finalmente entendeu. Não, ele não entendia Kai completamente, mas o rapaz não deixava de o surpreender. O mais difícil para ele era odiar Kai enquanto o rapaz não parecia nem ligar para tal sentimento. E isso causava uma ira profunda nele; era como se ele fosse tão insignificante que não valesse nem a dor de cabeça.

E isso o irritava, mais do que as respostas curtas e duras de Kai. Mais do que os olhares de puro desinteresse que Kai lançava a ele. O que o irritava mesmo era saber que Kai não ligava, como se fingisse ser algo que não era. Como se, por fora, ele fosse uma casca composta por desprezo.

Mas, entendeu ele mais tarde, a questão é que Kai era de fato assim. Alguém que não se irava fácil por coisas banais. Não era um homem cujo coração se adoentava por coisas bobas como insultos. Aquilo não mudava quem ele era, a sua essência. E, lentamente, Ómra percebeu que admirava Kai por isso. Admirava alguém que perdoava com tanta facilidade, e que se irava quando via alguém sofrendo uma injustiça.

E isso o irritou. Isto é, ver-se admirando alguém que desprezava. Ver-se compelido a gostar de alguém que vivia tão facilmente. Alguém que apesar de todas as dificuldades, sorria com gentileza e se protegia os mais fracos. Alguém que mataria a sua própria raça, apenas porque este alguém fizera mal a uma outra.

E, quando finalmente entendeu que Kai era um homem justo, de coração bom e, assim como ele que se considerava alguém de opinião própria, Kai não relutava em suas convicções. Ele entendeu. O rapaz era assim. E ele o admirava.

Suspirou, percebendo mais ainda sua intolerância e o quanto fora tolo. Sorriu.

– Tudo bem. Farei como diz, Kai. Espero, no entanto, que possamos recomeçar do zero, criar um bom vínculo.  

Kai esticou a mão, sorridente.

– Eu adoraria.

Enquanto as mulheres recuperavam o fôlego, chorando e choramingando. Ómra suspirou, apertando a mão do novo amigo.

– Apesar de não aceitar minha vida como um servo, fico feliz que ainda seremos irmãos.

Kai o encarou, inclinando a cabeça para o lado.

– Que quer dizer com isso?

– Bem, mesmo que nossas vidas não sejam atreladas por um juramento como este, você ainda se casará com Fioled e, assim, será meu irmão.

Houve silêncio. Aquele tipo de silêncio que constrange e humilha. Kai estreitou os olhos. Giglio arregalou os dela.

Hyvina levou a mão tão rápido à boca que produziu um som abafado, seguido de sua risada presa.

Fioled estava tão vermelha que parecia uma mudanti. Seus olhos arregalaram-se, e ela não sabia onde enfiar a cara.

– De onde tirou isso? – Gritou Giglio.

– Ora, mamãe, não se faça de tola. Era por isso que Oren o odiava tanto, sem contar que está na cara que Fioled tá apaixonadíssima por ele. Mas tudo bem, Kai, eu, como líder dos Echanti, aprovo o matrimônio.

Cineáltas arqueou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.

– Eu ainda não morri seu moleque desgraçado!

– Mas já está velho o bastante para saber a hora de parar! – Atalhou o mais jovem.

– Eu estou velho, não senil, seu pequeno broto de sacola lilás.

Kai arregalou os olhos, irritado por ter entendido as palavras de Cineáltas. Ele se virou para Fioled e seu peito se encheu de graça. A menina não sabia onde enfiar a cara.

Ali, desde muito tempo, Kai se sentiu em paz. Enquanto Cineáltas e Ómra discutiam sobre as decisões do sagrado matrimônio; enquanto Fioled desfalecia lentamente – fosse por vergonha ou qualquer outra coisa –; enquanto Giglio e Hyvina discutiam sobre que tulipas usar no casamento da mais nova; Kai apenas riu. Ele riu, gargalhou. Jogou a cabeça para trás e produziu um som tenro, hodierno. Levou as mãos à barriga, que doía, pois tamanha era sua risada e alegria. Foi o sorriso mais sincero de sua vida, daqueles que tira lágrimas e dói o rosto.

Daqueles de faltar o fôlego.

E o som de seu riso foi tão aconchegante, tão sincero, tão retumbante, que os anfitriões pararam o que faziam só pra ver a cena.

A primeira vez que Kai dera uma risada sincera desde muito, muito tempo.


***

Após o jantar cheio de mais constrangimento – onde Fioled estava quase se enfiando debaixo da mesa pois tamanha era sua vergonha, Kai foi levado a um quartinho nos andares de cima.

Kai chegou bem no momento em dois dvergurch terminavam os preparativos de arrumar o quarto. Giglio foi bastante contundente na conversa com os monstrengos, cujo Kai não entendeu um a.

Mas ficou realmente fascinado com a diversidade de palavras usadas pela matriarca Echanti ao ameaçar os pequenos demônios da terra. Levando em consideração que fora isso que a mulher fizera.

Kai, por sua vez, encarou com bons olhos o quarto. Não era extravagante, nem simples.

Mas ele sabia que não poderia usufruir de todo do quarto. Não sem destruí-lo... ou a casa. Seus pesadelos tornaram-se um grande risco, e ele sabia que não tinha poder sobre si durante os momentos de inquietação na dormência.

Sentou na cama, fitando o vazio. Estava cansado. Estava mais velho. Estava um pouco perdido.

Seguiria em frente, é claro; sempre fizera isso. Só que a bagagem vinha se tornando cada vez mais pesada. E Kai não sabia se tinha forças para aguentar o peso nos ombros que se intensificaram tanto de uns tempos pra cá.

Fechou os olhos, imaginando como seria bom poder ter momentos de paz em alguns momentos de sua vida. De repente soube que nada faria muito sentido.

De repente se perguntou qual era o sentido. Pra que tanto drama? Suspirou mais uma vez, apreciando o silêncio... lutando pra apreciar a própria calmaria, o próprio pesar. Lutando contra o sono, as pálpebras pesadas. Lutando para não se odiar, para não sentir pena de si mesmo. Lutando contra o vazio intermitente que crescia sempre e sempre. Que nunca fora embora, que só crescera, trazendo novos sentimentos.

E ele talvez tenha cochilado por apenas alguns segundos, ali, sentado naquela cama de colchão macio. Mas quando sua mente começou a entrar em estado de descanso, imagens tornaram a aparecer.

Ele viu a si mesmo desmembrando os vitanti no campo de batalha. Ouviu o som da própria voz, a risada nivelada e irritante. Viu-se assassinando um dos homens mais geniais que ele teve a chance de conhecer.

Mas, talvez, tenha sido por poucos segundos. O cochilo. Seus punhos ganharam um tom amarelado, parecendo ferro quando começa a ser queimado, quando seus pensamentos foram direcionados para os dias ruins... aqueles dias ruins.

De repente, várias bolhas se formaram na sua pele, estourando ao passo que pus saía e uma nova pele crescia, renovando o processo. A quentura em seus punhos aumentou. Ele se viu quebrando correntes, destruindo o lugar onde fora mantido preso. Ele se viu destruindo a casa dos Echanti.

E despertou após longos 30 segundos, com batidas soando na porta.

Sua respiração era pesada, seus punhos não tinham qualquer cor nem calor irradiava. Ele imaginara tudo.
 
Suspirou e mandou que entrasse.

A cabeça grande de Cineáltas surgiu entre a brecha, os olhos percorrendo todo o quarto numa só olhada.

– Tem um minuto?

O rapaz assentiu. Suprimiu a vontade de dizer que a casa era dele e que não precisava de permissão para entrar nos lugares. Estava irritado, como notou.

– Quando a general contou o que presenciou, não pude sentir nada além de pena – o patriarca parou, franzindo os lábios. Lutava para escolher melhor suas palavras. – Não senti medo, pois sei de sua índole.

Ele trocou o peso da perna, claramente incomodado com a falta de palavras. Para alguém que falava tão bem, Cineáltas pareceu de repente um jovem discursista, cujos medos e temores se encontram justamente na responsabilidade de fazer seu trabalho. Ou de não fazê-lo.

Kai aguardou, pacientemente. O patriarca agradeceu internamente.

– Pensei nisso enquanto vínhamos para casa. Você fez tanto pelo meu povo e, assim como nós, perdeu tantas coisas no processo. Mesmo assim, é discriminado pelo meu povo, é, erroneamente, considerado um criminoso. Para mim e minha família, não o é. Foi pensando assim, sabendo de suas cicatrizes, que preparei isto.

Cineáltas tirou um cubo retangular de suas vestes e levou-o a frente. Kai encarou o objeto.

Tinha a cor de mogno vernizado, com as bordas arqueadas. Media mais ou menos uns 13 centímetros de comprimento e 8 de altura.

Kai pegou o objeto nas mãos e notou uma energia incomum, sugando lentamente sua energia. Não sua energia de modo que o deixasse cansado, mas o chi.

Ergueu o olhar incerto. Cineáltas piscou e meneou a cabeça, encorajando-o a abri-la.

Abriu a tampa. Dentro, repousando entre brechas de um material azul e aveludado, havia um cordão e um anel. Imediatamente ele sentiu sua atenção sendo direcionada para os objetos, como se nada mais ali tivesse o privilégio de ter sua expectativa arrancada. Ele puxou o cordão primeiro.

Kai reconheceu o aço de sua corrente. Era amigável, um velho conhecido. De repente, sua memória foi puxada para meses atrás, quando encontrou uma pequena adaga que se encaixava perfeitamente nos nós de seus dedos.

Ele soube que era de ferrofosso, o poderoso metal vitanti. Na ponta da corrente, intrincado por finas e pequenas coluninhas de metal sobre metal, repousava uma espécie de rocha negra. E era ali, Kai notou, que sua atenção se intensificava.

Não sabia o quê, mas a rocha sugava seu chi de modo que era difícil até mesmo de respirar.

– Vejo que reconheceu o metal – falou Cineáltas, tirando-o de seu entrevar. – Você deve saber que minha família vem de grandes ferreiros, construtores e comerciantes.

Kai assentiu, tendo sua atenção fisgada momentaneamente para a rocha.

– Pois bem. Meu pai era um botânico também, tinha grande paixão por isso. Quando eu era garoto, ele descobriu uma nova espécie de árvores, algo que nunca vira antes, que não constava nem mesmo nos livros de botânica do Sínodo. A madeira era linda quando cortada, produzindo tons de vermelho tão intenso quanto sangue.

“Ela era dura, resistente, mas que caiu perante o aço do machado de meu pai, feito de ferrofosso. Essa árvore era incomum, Kai, mais incomum do que as outras.”

– Por que? O que a diferenciava?

– Essa rocha. – Respondeu o patriarca, apontando para o cordão na mão de Kai. – Ela repousava nas raízes da árvore, dormente, escondida. Quando meu pai removeu a quantidade que ali estava, seu manti começou a ser sugado. A rocha era como um aspirador. Ele notou, no entanto, que a madeira da árvore anulava a propriedade dessa rocha.

“Alguns homens que gostam de estudar rochas disseram que nunca viram tal matéria prima antes, e, mais uma vez, a incógnita acerca da árvore, envolveu também a rocha. Os anos se passaram, meu pai nunca descobriu o uso da rocha. Tentou criar uma arma a partir dela, mas sempre sem êxito. Quando tentava juntar a rocha à um metal ou ferro, ou o primeiro se despedaçava, ou o segundo derretia; e deve saber que nada seria de muita valia se tentássemos produzir um objeto feito da própria madeira. Não havia combinação que desse jeito.”

Ele suspirou, notando que se esticara demais.

– Meu pai morreu e, junto dele, toda a minha vontade de tentar descobrir a função de rocha e árvore. A madeira até teve certa finalidade, já a rocha... certo dia, revirando as coisas de meu pai, descobri uma caixa. E, dentro, estava essa rocha, do tamanho de meu punho. De repente, memórias saborearam meu consciente, como se meu pai, deitado nos lençóis de Eteyow, houvesse sussurrado em meus ouvidos.

“Tudo fez sentido. Nenhum metal era compatível com a rocha, mas havia um que provavelmente seria.”

Kai olhou para o cordão, aturdido. Ergueu as sobrancelhas de modo surpreso.

– O ferrofosso...

Cineáltas assentiu.

– Nunca ocorreu a mim ou a meu pai que, porventura, o único metal que pudesse compatibilizar com a rocha, seria ele.

Kai entreabriu os lábios, ainda surpreso.

– Mas achei... achei que não havia mais do metal por aqui.

– Não havia, é verdade. Mas nós, Echanti, passamos uma herança de família, de geração a geração. Uma reserva pequena, admito, mas nunca precisou de muito metal para produzir a melhor das armas. Eu sabia que era uma aposta alta; se não funcionasse, perderíamos boa quantidade das duas matérias.

Seus olhos se iluminaram, como se uma criança contasse seus sonhos mais incríveis.

– Mas Kai, deu certo. E você não sabe o que descobri; a junção foi tão magnífica. Enquanto a rocha suga desesperadamente a energia do indivíduo, o metal se encaixou exatamente como um supressor, que permite absorver até certo ponto, mas que freia o processo, pondo um limite possível.

– E pra onde vai?

Cineáltas deu de ombros, entusiasmado.

– Não sei. Mas o objeto é capaz de armazenar grandes quantidades de energia, sem é claro, sugar toda a energia do usuário. Antes disso tudo, Mael sugeriu que eu colocasse runas, de modo que gerasse um processo controlado.

Kai tornou a olhar para o cordão.

– E conseguiu?

Ele não ergueu o rosto para Cineáltas, mas teve quase certeza de que o homem assentira.

– Criei o anel e o cordão para que se ajudassem, afim de um completar o outro. – Algum tempo se passou e Cineáltas pareceu ansioso. – Eles não tiveram nenhum uso para mim... bom, até agora.

Kai ergueu o rosto.

– Não posso aceitar, é uma herança...

– O metal foi uma herança, Kai.

– Mesmo assim. Não posso permitir que desperdice uma herança desta forma... não sou... – Kai se interrompeu. Não completaria. Era o bastante que ele se autodepreciasse em sua mente. Não faria isso consigo externando suas inseguranças.

Mas Cineáltas já parecia decidido. E quando falou, sua voz soou como uma ordem.

– Você é. – Disse. Kai observou que ninguém poderia dizer o contrário. Ninguém em sã consciência, isto é. – Não tome minhas atitudes com leviandade, Kai Stone. Uma recusa até vai, mas não ouse uma segunda vez.

O rapaz engoliu em seco. Por mais que estivesse inclinado a recusar – por pura educação – , sabia que isso o deixaria mais tranquilo. Se o objeto provasse que funcionava, seria de grande valia.

– Você já me deu a espada, e agora isso... sinto que estou apenas tomando tudo de vocês.

A expressão de Cineáltas suavizou.

– A espada o escolheu, Kai – falou, acolhedor. – E isso é mais do que merecido. Não posso prometer que isso irá interromper seus pesadelos, que irá retirar todos os seus demônios, porque não vai. Mas, ao menos, o dará o descanso que sei que necessita. Poderá dormir sem ter de ficar em minuto e minuto pensando quando e onde suas próprias habilidades o atormentarão... o trairão.

Ele notou que o homem sabia mais do que falava. Estava na cara desde o início que suspeitou que Kai vinha tendo pesadelos. Um nó se formou em sua garganta.

– Vamos, teste.

O rapaz assentiu, hesitante.

Passou a corrente pela cabeça e a rocha acendeu levemente. Dali a pouco o próprio ferrofosso acendeu queimando a pele de Kai. A dor não foi tão intensa, no entanto, Kai sentiu a dormência em sua clavícula. A rocha iluminou o ambiente por um longo minuto, até que cessou.

Fitou a caixa novamente e retirou o anel. Era fino e simples, com a rocha intrincada e lisa enfiada no sulco sobre o metal. Não era extravagante; ele achou muito bonita. Levou-o até o anelar direito e observou o metal e a rocha se assentarem em seu punho. Não era muito de usar objetos como estes, mas entendeu que era necessário.

Ergueu o olhar para o homem, que tinha um grande sorriso satisfeito. O olhar era acolhedor, como o de um pai a um filho. Kai pegara Abwn olhando-o assim certa vez, como se depositasse toda a confiança do mundo em seus ombros. Seu peito se apertou.

– Bom, vou deixar que descanse agora.

Após dizer isto, Cineáltas saiu e deixou o rapaz no quarto observando o anel. Os olhos lacrimejaram, mas nenhuma gota de lágrima caiu.

Cineáltas foi claro ao dizer que aquilo só evitaria que ele tivesse um descontrole enquanto consciente, que não anularia qualquer pesadelo que tivesse.

Mesmo assim, no entanto, o garoto ficou em paz. Poderia lidar com seus demônios e pesadelos, desde que não tivesse que ficar de guarda alta, policiando a si mesmo sem saber quando seu próprio poder o amaldiçoaria novamente. E Kai se amaldiçoou. Mas estava aliviado. Realmente muito aliviado.


***


Horas mais tarde, Fioled acordou no meio da noite, com muita sede.

Desceu as escadas dos andares, lutando para ignorar a constante presença da humilhação que seu irmão lhe causara.

Bem, na verdade foi mais vergonha que qualquer outra coisa. Ela sabia, lá no fundo, que aquilo não era verdade. Aquilo que seu irmão dissera. Sentia por Kai apenas uma severa admiração, o via como um bom amigo, alguém que esteve com ela nas piores fases. E era só isso.

 Havia preocupação, admiração, forte senso de comprometimento para com ele. Mas nada além disso. Nada que beirasse uma paixão, um amor. Nem sabia se seria capaz de sentir isso algum dia.

Sabia que o amor existia, não era tola. Cresceu numa casa repleta disso. Viu o irmão se apaixonar por Hyvina. Viu até mesmo Abwn se sacrificar.

E existiam várias formas de amor. Mas ela não amava Kai. Isso não iria acontecer. Não com ela.

Após chegar na cozinha, se deparou com a porta que dava para o lado de trás da casa, batendo com a brisa que dava pouco a pouco. Era uma porta feita de material leve e simples.

Era um som chato, então ela caminhou até lá para fechar. Será que os malditos demônios tinham deixado aberto?! Talvez estivessem roubando da despensa outra vez. Eles não conseguiam evitar esse lado ruim. O pai teria trabalho ao domestica-los.

Fioled apertou na maçaneta para fechar a porta de vez, mas surgiu um certo tom de urgência que a impediu de fazer isso. Ouvia um som incomum vindo de fora, como se uma sequência de batuques rítmicos.

Ela desceu os degraus e caminhou pelo vasto campo da família. Quanto mais se afastava da casa e adentrava a floresta, ouvia a batida rítmica que, diferente de antes, ganhou certa altivez.

Decidiu ir devagar, preparando-se para o que quer que fosse encontrar. Pouco a pouco mais e mais árvores foram aparecendo, até que o som, percebeu ela, era como se algo estivesse sendo martelado.

O som de madeira rangendo inundou seus ouvidos seguido de um baque surdo e o farfalhar de folhas. Dali a pouco, o batuque iniciou novamente.

Será que seu pai estava cortando árvores? Mas naquele mesmo instante, sabia ela, ele estaria dormindo. Não trocava sua hora do sono por nada.

Então ela caminhou lentamente, afim de ficar atrás de uma enorme árvore. A luz artificial da lua iluminou uma clareira e Fioled ficou pálida.

Caídas ao longo de toda a clareira, havia meia dúzia de troncos. Próximo dali um jovem rapaz socava, de mãos nuas, o tronco de uma outra árvore.

Seus socos eram firmes, arrancando lascas a cada vez que o punho encontrava a madeira.

Kai socou uma última vez e deu um passo para o lado. A árvore rangeu e, alguns poucos segundos depois, caiu, farfalhando e produzindo o baque surdo.

O rapaz suspirou e cerrou os punhos, enlameados de sangue. Veias se formavam por todo seu braço, pulsando. Fioled notou algo correndo pelo braço do amigo, algo levemente brilhoso. Ele apertou os punhos, suspirou fundo, e o brilho sumiu.

Então caminhou lentamente até outra árvore e, erguendo os braços na altura dos olhos e começou seu longo processo de socar e socar.

Fioled entreabriu os lábios, suspirando e os olhos cheios de culpa.

– Oh, Kai...



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