Volume 1
Capítulo 54: REUNIÃO
Kai ficou nostálgico quando parou de frente para as portas duplas de madeira arredondadas que fechavam o túnel num dos muitos corredores dentro da Sequoia.
Lembrava, ainda mais agora, como se fosse ontem. O dia em que pisou naquelas terras pela primeira vez, meses atrás. Agora estava numa situação parecida, não fosse a coleira em seu pescoço.
Apesar de dar razão ao guarda, Kai não deixou de ficar incomodado. Esticou a mão e coçou por baixo do ferro arqueado.
Arjuani estava inquieta, como se quisesse conversar com ele, mas a atitude dela era estranha perto dessa general. Ele não sabia ao certo, mas era como se Arjuani reverenciasse Inseyftal. Logo ela, que fora rude até mesmo com Mael, que tinha uma presença bem maior em relação à mulher ao lado.
Mas ele ignorou isso também.
Inseyftal deu um passo a frente e empurrou as portas. Elas se abriram sem som algum, revelando uma mesa oval enorme, com mais figuras do que na primeira vez em que ele estivera ali.
Seus olhos ficaram cegos devido a luz, mas logo se adaptaram. As primeiras pessoas que Kai viu foram Athiná, Ilygaid e Cineáltas. Os três sorriram para ele; mas o sorriso não chegou até os olhos.
Ao todo, contando com os três que Kai primeiro identificou, haviam doze pessoas sentadas em cadeiras ao redor da mesa e uma vazia, de espaldar reto. Kai sentiu uma pontada no peito, era a de Abwn.
Com Inseyftal e Arjuani nos flancos, Kai foi escoltado até a cabeceira do lado esquerdo, ficando de frente para aqueles rostos novos e nada amistosos.
Dos nove que Kai não conhecia, três eram mulheres. Cada uma tinha sua peculiaridade própria, mas, no geral, não possuíam nada de novo. Aquele pessoal compunha o Sínodo, a principal força institucional dos vitanti.
Cineáltas pareceu incomodado em sua cadeira. Tossiu de leve e limpou a garganta.
– Por que ele está de coleira? – Indagou.
Inseyftal olhou para o homem. Contou o que havia acontecido durante sua ida até a prisão subterrânea.
Alguns rostos ficaram abismados, principalmente a dos vitanti mais jovens. Isto é, era totalmente compreensível. Kai não só quase havia destruído uma das celas, como também mostrou um nível absurdo de energia, que ignorou até mesmo o sistema de runas criado por Mael.
Um dos homens que estava mais próximo de Kai se virou para Cineáltas, no fim da mesa. Ambos se encararam por um longo tempo. Não havia nada de amistoso nos olhares.
– Não preciso falar, mas... “eu avisei”. – Disse o homem, com certa graça na voz.
O nariz do pai de Fioled se enrugou. Era a mesma cara que ele fez quando repreendeu Ómra.
– É quase como se esperasse por isso, Carmim.
– Assim você me ofende. Não sinto prazer algum em ver um nekedoh destruindo tudo que é sagrado para nós, mas...
– Poupe-me desse seu cinismo, seu cara de pau. – Berrou Cineáltas.
Um silêncio assustador envolveu a sala, Carmim se calou, mas permaneceu com o sorriso debochado. Kai o encarou bem.
Seus olhos eram negros como o breu, o nariz afilado e o maxilar quadrado. O cabelo ondulado era da cor de pasta de amendoim com alguns fiapos brancos aqui e acolá. Ele se voltou para frente e pegou Kai o encarando. Seu sorriso vacilou e sua sobrancelha se juntou.
Kai permaneceu encarando-o, mas logo voltou a fitar o vazio.
– É necessário que tenhamos o mínimo respeito entre nós, senhores. – Disse um homem velho. Ele lembrava muito Abwn, só que conseguia ser mais velho que este.
Era cheio de rugas e um pouco corcunda. Seus olhos já nem abriam. Parecia, no entanto, manter a jovialidade na voz.
– Aqui continua sendo o Sínodo. – Sua voz ecoou, cheia de tensão. – Perdemos o líder de uma geração, o porta-voz do povo, o arauto entre o divino e o mortal. É momento de nos unirmos, de conciliarmo-nos. É chegada hora de, pelo menos uma vez na vida, deixarmos o passado para trás e darmos as mãos. – Ele se virou para Cineáltas, que virou o rosto, irritado; depois para Carmim, que ergueu as mãos, em gesto de paz.
– Tallanthin tem razão. – Disse Athiná, ajeitando majestosamente seus óclinhos. Parecia que havia chorado. – Essa reunião foi iniciada para obter os detalhes minuciosos acerca do seu tempo com Greylous, Kai. Passamos as ultimas duas semanas tomando decisões difíceis, aguardando pacientemente uma melhora ainda distante de Mael.
Todos aguardaram Kai dizer algo, mas este permaneceu calado.
Carmim se endireitou em sua cadeira.
– Você entende que só está vivo por causa de três pessoas, não é?! Aquele ocorrido com Oren foi quase o fim da meada para você. Sua estadia aqui antes disso foi um insulto para nós, mas deixamos passar pois, na ocasião, percebemos que Neru’dian tomou a melhor decisão... apenas na ocasião.
“Agora, no entanto, o fino fio que já era estreito, se tornou ainda mais fraco, visto que um desses três está morto e o outro, em coma. Então se você não se ajudar, Kai Stone, nós também não poderemos.”
Kai suspirou.
– Não entendo porque devo algo a qualquer um de vocês aqui. – Sua voz soou como uma faca.
Arjuani levou a mão ao rosto. Tallanthin se remexeu em sua cadeira, mas permaneceu quieto. Cineáltas bufou, irritado.
O restante do grupo teve reações diversas meio às palavras do rapaz. Carmim soltou uma risada fraca olhando para trás e depois para Kai.
– Ora, não sei se você é arrogante, cheio de bravata ou apenas burro... deve ter entendido que...
– Sim, eu entendi. Acontece que não havia motivo para me punirem por algo que não fiz. Foi Oren que, na ocasião, iniciou uma contenda, mas tenho a leve impressão que vocês sabem disso, ou não teriam o colocado numa prisão. Ademais, Abwn deixou claro quando me recrutou que eu não precisava fazer o que fiz depois disso. E eu não preciso contar privilégios agora, não é?!
Uma veia saltou na testa de Carmim, que se conteve para não explodir.
– Não, Kai, não precisa. – Disse Cineáltas. – Todos sabemos dos seus feitos em campo de batalha, bem como se sacrificar para que mais de cem mudanti pudessem ser libertos... dando até mesmo sua vida em troca disso. Eu sou grato como pai e como senhor de Pylpunt.
– Ora, mas não estamos aqui como senhores de províncias, Echanti. – Esbravejou um vitanti rechonchudo. Parecia que a qualquer momento um botão espocaria devido seu peso. – Estamos aqui como líderes do Sínodo, e como líderes...
– O Sínodo já esteve melhor... – Balbuciou Cineáltas.
O homem gordo se virou, de olhos arregalados.
– C-como disse?
– Vocês perdem o foco demais, às vezes. – Um homem de meia idade e barba rala falou. – Alguns aqui parecem estar cegos por assuntos pessoais, seja para bem, seja para mal. Mas nós estamos perdendo o foco. Essa reunião, Kai Stone, é pra decidir se você vive ou morre.
– Não seja tão extremista também, Ortega. – Declarou Ilygaid. – Não é bem se vive ou se morre, Kai...
– Se não é isso, o que é?! – Rebateu o vitanti obeso.
E todos começaram a falar ao mesmo tempo, elevando suas vozes. Aquele era mesmo um lugar onde líderes se reuniam?! Os olhos de Kai se voltaram para uma cadeira vazia, a luz artificial do sol iluminando-a.
Eles estavam com medo, sentindo a falta de quem mantinha o controle com apenas um olhar. Eles queriam um líder, e nesse momento não tinham um.
Carmim era um homem que parecia querer ver o circo pegar fogo, e provavelmente tinha alguns do seu lado. Cineáltas era o tipo de homem que se contentava em liderar apenas sua província.
E o velho, o tal de Tallanthin, era o que parecia chegar mais próximo de uma figura de autoridade ou, pelo menos, de respeito.
Kai percebeu que uma única pessoa além dele permanecia calada. E este era o velho, o encarando, como se fitasse sua alma. O rapaz sentiu tanta nostalgia naquele gesto que um pensamento surgiu. São parentes?!
“Sim...” Respondeu uma voz idosa em sua mente. Ele arqueou a sobrancelha, estupefato.
“Isso...”
“É o que chamamos de conversa mental, embora seja apenas um uso menos caprichoso da magia.”
“Alguém sabe que estamos conversando?”
“Não. Você é o tipo de pessoa que não se impressiona muito fácil, eu esperava ver ao menos uma reação passar por esse rosto cansado. Mas isso é bom, significa que tem total controle sobre si, mesmo que suas emoções digam o contrário.”
“Agora, permita-me me desculpar... eu sei que é difícil para você revisitar essas memórias, mas Abe me disse... ele falou que você era especial. Ele viu, Bulogg viu, alguns líderes do Sínodo viram... e eu vejo. Falar sobre seu tempo com Greylous pode dar a esses homens um motivo a menos para julgarem você. E sinto que tens algo muito importante para falar, não é?”
Kai assentiu levemente, lembrando da conversa com Abwn.
“O que o senhor e Abwn eram? Qual o parentesco?”
“Bom, Abe era meu filho.”
Kai ficou surpreso. O velho falou como se não fosse nada, e manteve o rosto de como quem não quer nada, impassível. Quem aqui não de se impressionar?!
E também, quantos anos ele poderia ter? Abwn já era velho, avalie este.
“Abe era extremamente sensível para os desejos de Eteyow, um homem realmente crente. E era tão inteligente... ele me procurou e pediu que, caso algo acontecesse, eu cuidasse de você. Foi uma promessa vazia, visto que você já tinha sido dado como morto. Mas meu filho parecia saber exatamente o que viria a seguir. Esse era um dos dons dele, quase como se...”
“... como se visse o futuro.”
“Exato. Já deve ter visto que esses homens estão divididos. Alguns acreditam que o Neru’dian deva ser Mael, como filho de Abwn e devido o apelido que detém entre os mais jovens... esses estão em maioria. Mas Carmim, o homem na sua cabeceira, pensa que o novo Neru’dian não precisa ser alguém de sensibilidade espiritual... ele quer quebrar os nossos dogmas, nossa ancestralidade. E ele conseguirá caso Mael não acorde.”
“Mas você disse que aqueles do lado de Mael são a maioria...”
“E são, mas eles anseiam por um líder, Kai, e Carmim faz parte de uma das poucas reminiscências de Linhagem, assim como nós, os Eblomdrude.”
“E se Athiná...”
“Os Grokich não são de liderar, Kai. Acho que entende.”
“Sim... Carmim quer ser o novo Neru’dian.”
“Exato. Estamos entre a foice e espada aqui.”
Um tempo se passou enquanto eles ainda brigavam entre si. Kai estava absorto em pensamentos. Acreditava que a conversa com Abwn em segredo deveria ser relatada apenas para Mael. Mas que diferença isso faria? Se isso fosse dar tempo ao general, que desse.
Percebendo que Kai iria falar, o pai de Abwn se arqueou.
– Muito bem. – Foi preciso duas palavras para que sua voz percorresse pela mesa, apaziguando os ânimos. – Kai Stone falará.
Carmim dirigiu um olhar esquisito a Tallanthin.
– Eu falei com Abwn antes de sua morte.
O vitanti gordo pigarreou.
– Seja mais específico, nekedoh.
– No campo de batalha, eu falei com Abwn.
Carmim se ajeitou na cadeira, erguendo uma sobrancelha.
– Então você admite que estava de conluio com o xamã? – Indagou um dos líderes.
Kai suspirou, cansado de tanta burrice.
– Ao partir Greylous ao meio, a energia no corpo de Abwn me envolveu. Eu meio que apaguei, entrei em transe.
– Estava sob efeito de ervas? – Perguntou Carmim, rindo.
– Não... eu estive num lugar com Abwn, isto é, em nossas mentes, acho. Tivemos uma longa conversa em que ele me falou sobre tudo antes de minha chegada, sobre como ele estava se preparando e sobre como seria dali pra frente.
– Pra mim está claramente mentindo. – Carmim falou.
– É tudo muito vago, Kai, isso não é bem uma informação. Sequer remete aos seus dias com Greylous. – Disse Athiná.
– Eu sei, é só que... estávamos lá neste lugar. Era lindo, o topo de uma falésia, com raios de sol penetrando as nuvens carregadas. As gramas eram altas e... bem, era muito bonito, mesmo.
A senhora da linhagem Grokich ficou calada por um tempo e levou a mão aos olhos. Lágrimas desceram.
– Está aqui para contar sonhos e devaneios ou a verdade, garoto?! – Perguntou Carmim, sem paciência.
– Ele deixou uma mensagem... duas, na verdade. Uma para vocês e uma para Mael.
– Certo – Carmim pigarreou. – Supondo que isso tenha acontecido, qual foi a mensagem?!
Kai olhou para Tallanthin, que assentiu.
– Que vocês estariam melhor sem ele e sem o manto protetor, que isso iria tirá-los da bolha.
– E a de Mael?!
– Que ele será um grande líder.
Isso não era bem uma verdade, mas também não era uma mentira. Dependia de quem ouvisse a frase de Abwn e, na ocasião, fora Kai.
Carmim jogou a cabeça para trás e desatou a gargalhar. Alguns deram risinhos desconcertados, como se tudo isso não passasse de uma grande besteira.
Os seguidores de Abwn ficaram quietos, encarando Kai.
– Isso tudo é uma grande piada... vocês instruíram bem o garoto. Eu sabia que mandar uma detentora da razão e uma ex-comandante de Mael não era uma boa ideia.
– Qual era o nome do lugar, Kai? – Perguntou Cineáltas, ignorando o outro.
– Abwn chamou de Plano Etéreo...
A risada de Carmim cessou imediatamente. Uma cadeira caiu com um baque surdo. Tallanthin estava de pé encarando Kai e o olhos bem abertos. Eram de um cinza tão profundo que o rapaz reprimiu a vontade de chorar. Lembrava os de Abwn.
O lugar ficou extremamente quieto. Todos encaravam Kai. Ele percebeu que isso era mais sério do que imaginara.
– Em memória de Abwn da Linhagem Eblomdrude, o Neru’dian, eu, Tallanthin da Linhagem Eblomdrude, senhor da casa dos Mostes-Fúmios e mentor em exercício do presente grupo do Sínodo, considero que suas palavras serão ouvidas e seus desejos, atendidos. Mael será o próximo Neru’dian e, assim que acordar, deterá todo auxilio necessário. Quem for a favor levante a mão, quem for contra, permaneça com esta abaixada.
Então, começando por Cineáltas, todos levantaram a mão. Um a um. Uma única permaneceu baixa.
Carmim encarava o chão, os olhos arregalados. Levantou a mão lentamente, a outra fechada em cima do joelho, tremendo e apertando.
– Considero esta reunião terminada. Você, Kai Stone, está livre dos deveres e obrigações para com este povo, tem sua liberdade devolvida e pode partir assim que lhe for conveniente. Mas, para evitar mais problemas entre o povo, lhe dou o tempo estimado de um mês para se arrumar e ir.
Ele tocou com o nó dos dedos na mesa e o som ecoou. Carmim se levantou quase imediatamente, derrubando sua cadeira e saindo a passos firmes pela porta que deixou escancarada.
Todos se levantaram para ir, mas Tallanthin pediu que Cineáltas, Kai, Inseyftal e Arjuani ficassem.
Depois de irem e da general se certificar que ninguém ouvia, Tallanthin afundou em uma cadeira, ficando mufino e sem cor.
Arjuani correu para colocar água e levar ao velho. Este bebeu com rapidez estrema e suspirou.
– O senhor tem certeza de que está bem? – Perguntou o pai de Fioled.
– Sim, sim... já sou um velho, não posso mais lidar com tanta emoção. Venha aqui filho... ande, venha.
Kai se sentou perto dele, sem entender muito bem o que tinha acontecido.
– Deve estar cheio de duvidas sobre o evento. Kai, o Plano Etéreo é o nível mais alto que um vitanti, cuja vida andou em comunhão com os ensinamentos de Eteyow pode ter... deve se perguntar a razão de termos acreditado em sua palavra tão facilmente e a resposta é simples, porém longa.
“O Plano Etéreo, como disse, é um estado de espírito, cujo individuo na hora da morte concerne em deixar um pouco de sua energia, sua alma, no mundo, para ter concílio uma última vez. Seria impossível de você saber disso, somente nós, vitanti, temos essa noção. Esse entendimento não pode ser passado ou dito para alguém que não seja vitanti até que este alguém tenha experienciado isso. Por isso que acreditamos, pois mesmo que Abwn quisesse, ele não poderia falar com você sobre isso. E essa foi a maior prova de grandeza de Abwn.”
– Kai, para você pode parecer algo bobo, sem sentido, mas para nós é algo muito forte e poderoso, principalmente para aqueles que sabem sobre a razão, aqueles com afinidade mais próxima de Bulogg. – Reafirmou Cineáltas.
– Agora você entende porque todos aceitaram, até mesmo Carmim.
Kai assentiu, percebendo o ato de Abwn. Ele tinha pensado em tudo mesmo. Se Abwn tivesse dividido seus últimos momentos com algum vitanti, seria mais fácil de acreditarem que era mentira. Mas ele escolheu justamente um de fora.
Alguém capaz de ser o alicerce... as palavras de Abwn soaram em sua mente. Seu plano se desdobrava exatamente como ele descreveu.
– Mas Abwn não falou que Mael seria um bom líder... ele apenas disse que vocês teriam um e também um amigo.
– Abwn preparou Mael para liderar basicamente desde que sua esposa foi embora. É comum que essa frase não seja tão explicita, mas há entendimento nela. Todos sabiam disso. – Concluiu Tallanthin. – Agora vá, Cineáltas disse que lhe daria um lugar para dormir e descansar. Temos muito que tratar, Arjuani. Peço que você esteja presente, Inseyftal.
Kai olhou para o homem de ombros largos. Este sorriu para ele.
– Senhor, e minha espada?
– Eu guardei para você, Kai. – Respondeu Cineáltas.
Com isso, Kai assentiu. Antes de sair, ele trocou olhares com a amiga, que sorriu gentilmente.
***
Kai e Cineáltas caminhavam pelas ruas. Havia grande comoção, cheio de vitanti correndo para lá e para cá. Estavam em polvorosa, como se notassem a falta de algo.
Talvez fosse de Neru’dian, talvez do manto protetor; quiçá os dois.
– O Sínodo esteve em concílio por duas semanas, determinando se seria necessário aguardar ou não a melhora de Mael. Foi visto por alguns – a minoria, que era melhor escolher um líder o quanto antes... eles foram tomados pelo medo e perderam toda higidez. Carmim... aquela cobra, garantiu que grande parte do povo também se alarmasse.
– As pessoas ouvem o que querem ouvir, é só isso, senhor.
O homem de ombros largos assentiu.
– Carmim está se aproveitando deles, é só isso. O medo anuvia seu discernimento.
Kai encarou o homem.
– Se me permite perguntar... qual o motivo de tanta raiva entre vocês?
Continuaram andando por um tempo, enquanto o homem apreciava o silêncio mortal.
– Carmim e eu crescemos juntos, feito irmãos. Seu pai era o senhor de uma vila distante, mas ele basicamente cresceu em Pylpunt. Tudo que fazíamos era juntos. Tínhamos os mesmos gostos, as mesmas vontades. Queríamos ser fortes e detentores da razão... queríamos entrar no Sínodo e ser Púrpuros. E queríamos a mesma mulher.
Kai ergueu o rosto, surpreso. O homem estava corado.
– Carmim a conheceu primeiro e me falou dessa garota. Disse que ela era linda, como nunca tinha visto antes. Que era graciosa nas palavras e feroz em batalha. Que estava apaixonado e se casaria com ela. Eu apenas ri de Carmim, como um irmão que zomba do outro por coisas banais..., mas quando a vi, meu mundo parou. Senti um aperto no peito e meu estômago fez flores brotarem... senti tudo o que Carmim sentiu, elevado a dez.
– Você contou a ele?
– Jamais! Imagine só, eu informar que estava apaixonado pela mesma mulher que o meu irmão. Não, mantive meu sentimento só para mim e ouvi, anos a fio as declarações românticas que Carmim desejava fazer a ela um dia.
– E então?
– Entramos nos Púrpuros juntos, os três. Nesse dia, Carmim se declarou para ela, sem contar para ninguém. Mas ela o rejeitou e disse que gostaria de continuar sendo sua amiga. Mais tarde no mesmo dia, ela veio até mim em segredo e se declarou, disse que era apaixonada desde o dia em que nos vimos a primeira vez. Eu também declarei meu amor a ela, disse que a amava tanto que chegava a sentir falta de ar.
Cineáltas riu, nostálgico.
– O que aconteceu?
– Decidimos que antes de iniciar nosso relacionamento, falaríamos com ele, Carmim. Era o certo a se fazer. Achei que ele iria praguejar e me jurar de morte, mas, mesmo assim, continuaríamos irmãos jurados.
– Como ele reagiu?
– Totalmente antônimo ao que esperávamos. Nos desejou felicidades eternas. Uma semana depois foi embora para sua vila natal e nunca mais voltou.
– E a moça que se apaixonaram?
Cineáltas sorriu, olhando para cima.
– Me casei com ela e tivemos dois lindos filhos.
Kai sorriu. Esperava isso.
– Só não entendo como se tornaram isso que são hoje.
O rosto do homem ficou sombrio.
– Nossa desavença se iniciou anos mais tarde. Quando Ómra tinha três anos, um presente anônimo chegou até nossa casa, com uma carta desejando felicidades pela criança. Dentro havia um miosótis negro, cheia de sangue seco e uma orelha ao lado.
– Não entendo...
– Para nós, vitanti, as flores tem grande significado. Nomeamos, em nossa própria língua, as nossas crianças. Um miosótis comum tem a cor azul e representa a irmandade, bem como os laços românticos.
– Ainda não entendo... como sabia que foi ele?
– Carmim e eu nos conhecemos no dia do miosótis; ao enviar essa flor na cor negra, ele declarou o fim de nossa amizade, seu ódio eterno a mim. A orelha estava associada a um mau agouro. Essa mensagem foi um sinal de sua praga sendo rogada em nós. Ómra adoeceu logo depois disso, ficou entre a vida e a morte. Mas foi Tallanthin que curou meu menino, por isso devo muito aos Eblomdrude.
Kai finalmente entendeu. Carmim se tornara realmente alguém odioso a ponto de amaldiçoar uma criança.
– E, por isso também, não sabe como é bom vê-lo vivo e bem, Kai. Como senhor de Pylpunt, não pude largar meus deveres e participar da guerra, mas sei que você fez mais do que muitos de nós. – Cineáltas parou subitamente e esticou uma mão. – Muito obrigado por salvar minha preciosa filha, que é fruto de um amor tão lindo entre mim e o amor de minha vida. Kai, se não fosse você... não fosse você ela teria morrido, e eu iria junto.
Envergonhado, Kai apertou a mão do homem, que o puxou para frente e fez um gesto parecido com o que fizera com Oren no passado.
– Que os plínios o consagrem.
Kai fechou os olhos.
– Que os plínios o consagrem...
Retomaram caminhada e, após algum tempo, Cineáltas quebrou o silêncio.
– Oren morreu em batalha.
– Eu soube.
– Vocês não tiveram tempo de se conhecer, mas o rapaz era bom. Ele só era muito devoto aos Eblomdrude e, bem... era apaixonado por Fioled. Não sabe como um homem enciumado pode agir diante das emoções, Kai. Sei que é difícil de entender, afinal o sujeito tentou te matar..., mas ele veio até mim antes de ir para a guerra. Disse que sentia muito por tudo, pelo modo como agiu com você.
Cineáltas parecia aguardar algo, quase como se o perdão de Kai pudesse fazer ele se sentir bem.
O rapaz o olhou de viés.
– Não guardo mágoa ou rancor do passado, senhor. A vida... digo, é tudo muito rápido. Há tantas coisas para se preocupar. Tem gente que se mata por dinheiro, por poder, por um prato de comida... e cada um vive seu dia da forma que pode. Cada um de nós lida com sua dor da forma que pode. Eu já tenho fardos demais para carregar, guardar ódio de quem me fez mal só me deixaria pior.
– Apesar de toda dor que eu sei que você carrega agora, seu coração é muito bondoso, Kai. Você tem um espírito forte, parrudo, e ainda sim tem tanta coisa boa.
– Eu só tento ser melhor, senhor.
Continuaram sua caminhada até chegarem numa rua sinuosa que se estreitava. Dos dois lados haviam cercas, com casas feitas em árvores, outras feita abaixo de montes.
Finalmente chegaram numa casa feita em três troncos caídos, erguidos um em cima do outro. Haviam janelas e uma porta alta e arqueada.
– Por que vivem tão distante da cidade?
– Essa é nossa casa de campo. As crianças cresceram aqui, então deixamos a nossa casa na vila apenas para os dias em que eu estivesse cuidando do Pote de Runas. E já que Ómra vai assumir, penso que esteja na hora de pendurar as botas.
Kai assentiu e seguiu o homem, que andou até a porta e segurou a maçaneta.
– Se prepare.
O interior era lindo. Havia uma sala ampla na entrada, cheia de móveis. Uma lareira na outra extremidade, com duas cadeiras de colcha uma frente a outra.
Uma escada circular se elevava pelos andares, terminando numa cúpula, cujo dava vista para a copa de uma árvore.
– Sem destruir minhas coisas seus pestinhas. – A voz de Giglio soou.
– Dagbarut fagraniu frormster fan! – Uma vozinha esganiçada soou, irritada.
– EI! – Giglio pigarreou. – Não quero esse linguajar na minha casa seus encrenqueiros.
– Frumr tandr!
– E NEM EU!
Giglio Echanti surgiu, de repente, como um vendaval. Seus cabelos castanhos bagunçados sob um pano. Seus traços fortes no rosto eram gentis, com sujeira por todo lado. Estava brava.
– Cineáltas, que é que você estava pensando quando trouxe essas pestes pra cá?! Você e sua mania de ter pena! Agora nem as dríades, nem os caleus querem ficar aqui. Você dará um jeito!
O homem de repente amedrontou-se. Kai nunca vira alguém ficar tão pálido.
– Giglio, meu amor, acalme-se. Mais tarde eu resolvo, agora temos visita.
Ela se virou para Kai e sua feição mudou completamente. Antes era irritada e sem paciência. Agora seus olhos encheram de lágrimas e sua boca tremeu.
Giglio se adiantou e puxou a mão de Kai.
– Que bom que você está bem, querido... não tivemos tempo de nos conhecer ou conversar, mas... você tem a gratidão e a amizade dos Echanti para todo o sempre.
Sem saber como reagir, Kai apenas corou. Ficou sem reação enquanto Giglio chorava de um lado e Cineáltas sorria do outro, sorrindo tanto que seus olhos estavam quase se fechando.
Um punhado de criaturinhas de menos de um metro se precipitaram para a entrada da casa. Eles tinham uma cor verde e olhos amarelos fendidos. Chifres se sobressaíam de suas cabeças carecas. Seus dentes eram como adagas. Eles começaram a conversar entre si na língua estranha de antes.
– São dvergurch, demônios da terra. – Disse Cineáltas, apontando para os bichos estranhos.
De repente o som de passos descendo as escadas soou. Eram tão pesados e velozes que Kai achou que a pessoa fosse cair.
Dali a pouco, Fioled surgiu na base da escada, aperreada e aturdida. Giglio se virou para encarar a filha, os olhos marejados. Atrás de Fioled surgiu Hyvina e, em seguida, Ómra.
Fioled correu e pulou no pescoço de Kai, afundando a cabeça em seu peito. Kai sentiu o cheiro da menina, feliz. Sorriu gentilmente enquanto ela chorava baixo.
– Ainda bem... ainda bem que está vivo, Kai. – Sua voz saiu abafada.
Kai acariciou a cabeça dela e suas costas.
– Está tudo bem. – Disse ele, gentilmente.
Giglio e Cineáltas encararam a cena com sorrisos largos. Hyvina estava com a mão na boca, chorosa.
– FIOLED. – Disse Ómra.
A garota levantou a cabeça, olhando para o irmão. Seu rosto era obscuro. Ele deu dois passos a frente, os punhos cerrados.
– Querido... – Hyvina tentou falar, mas foi interrompida pelo noivo.
– Kai... estou tão aliviado... achei que nunca mais iria vê-lo, que viveria com essa angústia para sempre. Me perdoe Kai e... e muito obrigado por salvar minha amada irmã.
Ómra caiu no choro, totalmente entregue às suas emoções.