Volume 1

Capítulo 53: JARDIM DA ILUSÃO



Três dias haviam se passado desde que Kai matara Greylous.

Os vitanti vinham se amontoando no campo de batalha, em busca dos corpos e, quem sabe, dos espólios de guerra. Kai fitou tudo escorado numa árvore, imaginando o quanto esse povo vinha se assemelhando mais e mais aos humanos.

O corpo de Abwn foi recuperado pelo Sínodo, bem como o de Erde e de Oren, tidos como heróis de guerra. As mortes adjacentes também seriam prestigiadas.

Mesmo depois desse tempo, o sentimento não havia mudado para melhor. Não havia o sentimento de vitória, de felicidade, afinal, os vitanti tinham perdido mais do que ganhado.

Para Kai, perder seu líder e seu lar num único dia seria um baque duro de superar. Isto é, com Greylous destruindo o manto que protegia a Grande Entrada bem como o Reino da Orquídea, os vitanti estavam sem sua proteção principal, que vinha salvaguardando-os há mais de 500 anos.

Sim, seria duro para se recuperar.

Mael desmaiara imediatamente após Kai matar o xamã. Os curandeiros do Sínodo disseram que ele havia chegado ao limite no uso de éter. Lutar sem um braço, com o uso contínuo da energia gerou um desgaste físico e mental.

Com isso, Kai foi aprisionado. Ele sabia que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. Antes mesmo da guerra começar, os líderes do povo multicor já haviam deixado claro seu descontentamento com ele; agora, com a morte de Abwn e sem o principal candidato a Neru’dian presente, finalmente tomaram as medidas que tanto ansiaram.

O lugar em que ele estava era melhor do que as duas últimas prisões.

Kai estava num quarto cúbico, com paredes de bloco de pedra marrom; havia uma cama rente uma das paredes, de colchão redondo. No teto e nas paredes, lufadas de ar gelada eram expelidas através de frestas, adicionado a um cheiro de grama molhada e peônias.

Não era de todo mal: também tinha um lavabo e estantes cheias de livros. Havia até mesmo uma escrivaninha presa à uma das paredes.

Ele percebeu que o quarto tinha bloqueadores de energia, visto que não conseguia fazer bom uso de chi. Poderia ser um feitiço ou runas impostas nas paredes, ele não sabia.

Sim, o lugar não era ruim. Ruim mesmo era estar sozinho por tanto tempo com sua própria mente, aprisionado em pesadelos contínuos e desgastantes.

Sua mente dava voltas e mais voltas, sendo rodeado por pensamentos poderosos demais para serem esquecidos. Após o terceiro dia de contagem, não conseguiu mais discernir se era dia ou noite. Seus sonos eram interrompidos por pesadelos, memórias obscuras impostas por Greylous em sua mente, serrilhando sua sanidade.

Para piorar, as refeições eram entregues em intervalos de tempo incongruentes, dificultando seu relógio biológico.

Acordou três vezes suado, os olhos cheios de lágrimas, pensando no pior de seus dias. Isso sem contar nas reais lembranças nunca indo embora.

E, para deixar tudo pior, se lembrava das fortes palavras rogadas por Greylous. Não teria como esquecer, mesmo na língua antiga, elas eram fortes e de fácil entendimento para alguém que sempre estudou muito línguas, semânticas e a filologia acerca delas.

Fora amaldiçoado. O tom com que foi dito, somado ao momento desesperador tornou tudo dez vezes pior. E a maldição feita pelo xamã como suspiro último, trazia seus efeitos.

Ele via como as palavras tinham força, efeito. Não conseguia esquecer, nem dormindo. Essa foi a maldição: nunca mais esquecer de nada.

Nem de dores físicas ou mentais. Nem de momentos tristes ou felizes. Nem de uma palavra dita ou escrita. Podia ser uma dádiva, mas, no momento, era realmente uma praga.

Ele se viu perdendo seu sono; a cabeça latejando, vendo coisas ao ar livre. Quando não lembrava dos dias irreais na Ilusão Onírica, lembrava das palavras de Greylous e do terror que sentiu ao vê-lo ser arrastado terra adentro.

E, quando não era isso, se lembrava dos incontáveis dias – quiçá semanas,  em que foi torturado antes de sua mente finalmente não aguentar e ceder para Greylous.

Após um tempo indeterminado sem dormir, finalmente conseguiu pegar no sono.


***


Inseyftal era liderada por uma escolta de dois guardas e seguida por sua nova comandante, Arjuani. Desciam as longas escadas em espiral que foram construídas nas laterais de um enorme buraco, abaixo da Grande Sequoia.

Nas paredes circulares, archotes despargiam-se de tempos em tempos, iluminando o caminho.

Após várias horas, ela soltou um suspiro.

– Por quê o Sínodo não constrói logo um elevador?

Um dos soldados pigarreou.

– Porque não são eles que descem e sobem essas escadas todos os dias.

Ela teria descido voando, mas foi necessário que os guardas escoltassem-nas até o seu destino. Perderam brechas preciosas.

Finalmente chegaram na base. A general olhou para cima, fitando o longo corredor vertical que se erguia até um minúsculo ponto branco.

Estavam agora em um grande salão de parede circular, cheios de archotes com um fogo bruxuleante. Na extremidade haviam três passagens arqueadas.

Inseyftal fitou o chão. Era feito de madeira polida, com a imagem esculpida de um vitanti em cima de uma fênix, em pose de guerra.

Ostras-mil Verband... pensou ela, olhando de viés para Arjuani. Esperava que ela estivesse minimamente mexida, mas a mulher parecia perdida em seus próprios pensamentos.

– É ventilado... – disse. – Achei que seria abafado.

Um dos guardas caminhou apressadamente até uma parede e pegou uma das tochas, iluminando o próprio rosto.

– Assim como os túneis onde as Fênices vivem, aqui tem muitos dutos de ar, impedindo que fique totalmente inacessível. Não sei como encontraremos um lugar tão bom quanto esse...

Inseyftal assentiu para si mesma, seguindo o guarda que andou até a entrada do meio. Provavelmente os líderes buscariam um outro lugar para viver já que para eles a Orquídea se tornara insegura.

Ela tinha uma opinião forte sobre o assunto, no entanto, como era a única dos generais que permaneceu minimamente consciente, tinha outras preocupações para lidar.

Enquanto caminhavam pelo longo corredor, sentiu o éter que fluía tão naturalmente por seu corpo ficar inativo. Era uma rara sensação, visto que os vitanti praticamente nasciam sabendo usar a energia.

Olhando de viés, um dos guardas sorriu.

– Daqui pra frente há bloqueadores de energia... foi ideia do senhor Mael. Ninguém que entra aqui está imune a esses bloqueadores, assim facilita nosso trabalho caso alguém tente escapar. Um homem bom, o senhor Mael. – O rosto dele ficou escuro. – Espero que fique bem logo.

Ao fim do corredor, saíram em uma sala quadrada. Nessa sala, haviam seis lustres feitos de ferro, com um fogo vivo dentro deles, sem se mexer ou dar qualquer sinal de que se apagaria.

Construído na parede esquerda havia uma despensa. De frente para ela havia uma entrada arqueada.

O guarda segurando a tocha a recolocou num archote na parede ao lado e apontou para a porta construída à direita.

– Ali ficam os alojamentos. – Apontou para a porta extrema a eles. – Ali é a entrada. Gurra irá acompanhar as senhoras.

Arjuani assentiu.

– Obrigada.

Gurra, que parecia mal-humorado caminhou até a porta. Ao entrarem, havia um enorme corredor com uma passarela longa e larga.

Em cada um dos lados, haviam portas que iam até onde os olhos podiam ver. Logo próximo da entrada havia um outro guarda.

Gurra olhou para ele.

– Leve-as até o sujeito.

O outro vitanti iniciou seus passos e Gurra voltou pela porta em que entraram.

– Não acho que tenhamos tantos prisioneiros assim. – Disse Arjuani, olhando em volta.

– Melhor prevenir do que remediar. – Respondeu o guarda.

Após longa caminhada, Inseyftal suspirou.

– Como ele está?

O homem a olhou de viés, aperreado.

– Bom... temos dado suas refeições diariamente, ele também está num dos melhores quartos... tem banho e livros disponíveis. Ele é bem tratado aqui.

– Não é bem um lar. – Falou Arjuani, irônica. – Você não respondeu à pergunta.

O homem assentiu, suando.

– Olha, não quero problemas para mim... já é ruim demais ter que ficar boa parte da minha vida guardando um lugar em que não há ninguém. Se os superiores descobrem...

Ele parou de frente para uma porta.

Inseyftal o encarou.

– Eu sou a sua superior, soldado. Diga o que está acontecendo.

Ele se balançou.

– O rapaz não come nada, senhora, sem contar... sem contar os ataques...

Inseyftal e Arjuani se encararam. Quando a comandante estava para perguntar mais detalhes, gritos dolorosos soaram. Eles ecoaram, como se alguém tivesse sendo torturado. Eram gritos roucos, cujo medo e dor podiam ser sentidos apenas em sua voz se ampliando mais e mais. Era desesperador.

Inseyftal olhou assustada para a porta.

– Ele está sendo torturado? Vamos, abra a porta!

– N-não senhora... que Neru’dian me livre e que Bulogg me proteja..., mas tem sido assim desde o dia em que ele veio para cá.

O guarda correu até a porta e bateu nela três vezes e deu um passo para trás. A porta soltou fumaça por suas frechas e se deslocou da porta, indo para o lado.

Assim que a porta se abriu, as vozes pararam. Os três se olharam, Arjuani e Inseyftal querendo respostas.

– E-ele não gritava assim há dias... é a primeira vez.

Os três entraram no vão e o rosto de Arjuani ficou sombrio. O quarto realmente parecia bem cuidado, mas estava um caos.

Todos os livros estavam jogados ao chão, as estantes quebradas, destruídas. A escrivaninha tinha quase sido reduzida a pó.

Uma das paredes cujo deveria ficar a estante, fumaça saia de dois pontos do tamanho de cabeças humanas.

Eles encararam o dono dos gritos sentado na cama, ofegante e suado. Kai estava arqueado para frente, sem blusa, os cabelos negros tampando seu rosto, o cotovelo esquerdo apoiado na perna e a mão no rosto, tremendo aos poucos. Sua mão direita também chamuscava.

Suas costas estavam cheias de feridas cicatrizadas, como se a pele tivesse sido retirada e recolocada diversas vezes.

O guarda arregalou os olhos e encarou Inseyftal.

– E-ele usou manti? Isso deveria ser impossível, principalmente dentro dos quartos...

Arjuani que permaneceu calada todo o tempo, caminhou até Kai e ficou sobre os joelhos, a fim de olhar para o amigo.

A primeira sensação foi de pavor. O rapaz tinha um olhar vazio, encarando o nada. Seus olhos estavam dilatados e arregalados, como se tivesse visto a pior coisa que alguém poderia ver. Ele tremia muito, mas o clima do quarto era quente.

– Kai... – Disse ela. – Kai... Kai... KAI.

Ele piscou, aturdido. Foi como se estivesse em outro mundo e finalmente voltado agora. Engoliu em seco, encarando-a. Suspirou calmamente, seu rosto relaxou. Parou de tremer.

Pareceu se transformar em outra pessoa.

Ela olhou para Inseyftal, buscando respostas, mas a general parecia tão aturdida quanto ela. O guarda tremeu, encarando a parede chamuscada e o homem.

Ele andou até Kai e tirou uma coleira do bolso, puxando o rapaz pelo braço e colocando-a. Runas acenderam em um azul leve.

– Que é que está fazendo? – Perguntou Arjuani, se erguendo e empurrando o guarda.

O homem ficou sério, decidido.

– Com todo o respeito senhora, mas isso é pro nosso próprio bem. Se nem mesmo as runas desse quarto conseguem inviabiliza-lo, quem conseguiria?! Essa coleira serve para reter o fluxo de energia dele. Assim, será impossível caso ele se rebele.

Ela olhou para Kai depois para o guarda novamente, não queria ver o amigo dessa forma.

– Assim parece que ele é um animal, você tem noção de quem...

Uma mão calejada agarrou o pulso de Arjuani, gentil. Ela olhou para baixo. Kai continuava encarando o nada, os cabelos negros tampando seu rosto.

– Ele... tem... razão... – Disse Kai, cansado.

O guarda assentiu e bateu continência, saindo do quarto e fechando a porta.

Algum tempo se passou, onde Kai foi até o lavabo lavou o rosto. Colocou uma blusa sob os olhos arregalados das duas.

– Você estava sendo torturado? – Indagou Inseyftal. – Pode me dizer...

Kai olhou de viés, os olhos como de peixe, caídos.

– Não.

– E essas feridas em suas costas? É impossível que seja de antes... bom, antes de Greylous o possuir. Eu o vi se regenerando de um feitiço que deveria tê-lo matado.

Essas são diferentes. – Disse Kai, se virando para apanhar os livros aos poucos.

– Diferentes como?

– Greylous garantiu que elas ficassem gravadas em mim para sempre, mesmo que se regenerasse... garantiu que eu nunca mais as esqueceria.

As duas se encararam.

– Há quanto tempo estou aqui? 

– Duas semanas. – Respondeu Arjuani. – Cineáltas, como um dos seis senhores do Orquídea tentou desesperadamente lhe tirar o quanto antes, mas os outros líderes do Sínodo...

– É compreensível. – Respondeu ele.

Inseyftal e Arjuani trocaram olhares.

– O que nos diz sobre os gritos? Se tiver alguém lhe torturando posso...

Kai a encarou, sem emoção.

– Sem querer ser rude, mas você já viu o tamanho desse quarto. Seria impossível alguém me torturar e sumir como num passe de mágica. Agradeço sua preocupação, mas nós nem nos conhecemos... então pode deixar essa gentileza velada de lado e falar a razão pelo que veio.

As palavras foram rudes. Mas Kai era assim, não estava com paciência para nada.

Inseyftal olhou para Arjuani, que deu de ombros. Ela sabia como o rapaz era, tinha ouvido falar.

– O Sínodo me incumbiu de escolta-lo. – Falou, sem preâmbulos.

Kai suspirou, se abaixando e colocando os livros no chão.

– Esperado. – Disse, um tom de sarcasmo aparente.

– Que quer dizer com isso?

O canto da boca de Kai tremeu.

– Aguardavam por esse momento. A derradeira chance de governar. Neru’dian era importante demais, influente demais. Não era manipulado. Conheci alguns senhores do Sínodo, e eles foram gentis comigo, mas tenho certeza que sua instituição não se resume à um circulo fiel aos Eblomdrude.

Inseyftal assentiu. O rapaz tinha resumido parte dos pensamentos dela em relação aos líderes dos vitanti. Sem Mael, buscariam escolher o mais rápido possível o próximo Neru’dian. Alguém com facilidade de se comunicar com Bulogg, mas também fraco o bastante para não se interpor nas decisões dos líderes.

– É impressionante que saiba de tudo isso, Kai Stone. – Falou Inseyftal, trocando o peso da perna. – Vamos então.

O rapaz assentiu. Ela não pareceu ficar abalada com o modo rude dele agir. E ele não se importou se ela acharia bom ou ruim.

– Antes, gostaria de saber sobre Mael.

A face de Arjuani ficou sombria.

– Continua apagado.

Caminharam para fora do quarto.

– Conheço o caminho. – Disse a general, pegando Kai pelo braço e indo rapidamente pelo lugar que vieram.

Cruzaram o quarto onde ficava o alojamento e a dispensa. Antes de seguir pelo corredor, ela pegou uma tocha e continuaram.

Ao chegar no pátio, os dois guardas as esperavam, parados no meio do enorme salão.

Ela caminhou até eles, parando subitamente.

– Agradeço por sua escolta, mas a partir daqui podemos ir sozinhos.

Inseyftal pegou Kai pela gola da blusa e passou seu braço gentilmente pela cintura de Arjuani, que corou. Ela olhou para cima e alçou voo, deixando apenas uma aura transparente para trás.

Gurra pigarreou.

– Droga, eu queria saber voar.



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