Volume 1

Capítulo 52: O GÉLIDO ESTAMPIDO

 

 Parado no topo de um morro estava Kai. Gramas altas circundavam-no na altura da cintura. O vento balançava o gramado amarelo e o cheiro de babosa exalando nas narinas dele.

Pôde notar diversas onze-horas, rabo-de-gato e porto-seguro. Esticou a mão, aparando um orvalho que pendia gentilmente de uma cevada.

O vento trouxe o regozijo do mar, um cheiro novo que ele tão sonhara conhecer: a brisa do oceano. Pingos de gotas salgadas molharam-no o rosto, e ele observou ondas se formando e ouviu, ao longe, elas chocando-se contra rochas lá embaixo.

O tempo estava lindo, com nuvens carregadas se aproximando, tampando o sol e, mesmo assim, dando brecha para pequenos raios luminescentes que banhavam a grama, dando um novo tom dourado e taciturno.

– É lindo, não é? – Uma voz rouca soou.

Seu coração palpitou, ele já sabia a quem pertencia. Virou-se, dando de cara com Abwn Eblomdrude.

O homem permanecia quase tão idêntico a quando se conheceram: vestes longas com cores leves, dedos longos e gentis, pressionando a barra da roupa. Olhinhos sucintos e cinzentos por detrás de óculos de aro. A barba ondulava com o vai-e-vem do vento. Um sorriso bobo preencheu o rosto do homem. Kai sentiu-se em paz.

Virou novamente para a frente, observando o mar quebrar e tornar a se formar em ondas com espumas tão brancas quanto a luz do luar em noite de lua cheia.

– Onde estamos?

Abwn caminhou, pondo as mãos nas costas.

– Tive a liberdade de separar um pouco do meu éter para este momento, sabia que muitas dúvidas despontariam em você e, por conseguinte, em meu filho.

Kai assentiu, cansado.

– Isso não responde a minha pergunta.

Abwn ergueu as sobrancelhas e encarou o rapaz.

– Não, não responde. Gosto de pensar que a energia vital é, no anseio de muitos, o maior causador da vida, principalmente na morte. Isto é, energia vital é vida. Ademais, adquiro que este lugar possa ser apenas o meu ponto de descanso antes de me recolher para os lençóis de Eteyow. Este é o Plano Etéreo.

“Certa vez fiz uma visita ao extremo de Bulogg... a floresta acabava em um morrinho e, mil metros abaixo de uma falésia, as ondas arredias e revoltas do mar batiam. Gravei esse momento eternamente em minha memória... pensei que este seria o último lugar que gostaria de visitar antes de... antes de morrer.”

Kai assentiu e sentou, seguido pelo homem.

– Por quê eu? – Indagou, após um longo momento.  

Abwn suspirou.

– Nem mesmo eu sei, Kai. Tive uma visão anos antes de você aparecer... Bulogg... Eteyow me mostrou que um homem apareceria e, neste momento, a paz seria findada. Contudo, não sem um grande sacrifício.

O rapaz o encarou.

– Sabia que morreria?

– Bom, pude supor. Passei anos demais como Neru’dian, Kai... acredito que fui por mais tempo o profeta de Bulogg do que pai de Mael. Este pode ser um dos meus maiores arrependimentos. E, bem, esses anos como chefe do Sínodo me deram muitas capacidades.

“Meses antes de você aparecer, tive, novamente, visões – não mais sonhos, de um homem quebrado, sem esperança, mas que era a grande chave para ser nosso alicerce, nosso ponto de virada. Um mês depois Mael me enviou uma carta, dizia que havia encontrado um pequeno artefato dos povos antigos... nossos ancestrais. Meses depois disso você apareceu em Orquídea, trazido por Fioled, que sempre se mostrou ser tão arredia quanto uma raposa de dentes vis.”

Kai sorriu.

– O artefato era o livro sobre Chi.

– Correto. – Abwn sorriu, como se lembrasse de algo muito distante. – Depois tudo se encarregou por si próprio. Greylous chegou como a praga que vem para varrer nossas terras; mas gosto de pensar que ele serviu mais como uma febre, que surge no corpo para eliminar os vírus da doença.

Kai observou o vento balançar o gramado, organizando os pensamentos.

– A espada do amanhecer...

– Chegarei lá. – Suspirou. – Quando você apareceu, sugeri a Mael que lhe treinasse com as instruções do livro que, até então, tudo o que sabíamos é que ali, naqueles hieróglifos, havia a fonte de energia primordial dos antigos povos guerreiros, antes do homem passar a utilizar magia e mana – energia essa que era mais simples de ser manuseada.

“Você foi mais do que aquém de minhas expectativas; isto é, aprendeu o uso do chi e ainda o aperfeiçoou. Por conseguinte, eu soube que Amencer estava em posse dos Echanti e, mais uma vez, sugeri – desta vez a Cineáltas, que fizesse um teste com você.”

– Ele me enganou direitinho... – Disse Kai, rindo para si mesmo.

– Bom, se você não passasse no teste, ainda teria outra espada para seu uso, mas acredito que tudo aconteceu como deveria.

– Por que diz isso?

– Bem... Amencer é uma espada espiritual, com capacidades de ter sentimento etc. Conforme você evolua, ela também evoluirá, e pode ser que desperte consciência. Então ela estar em sua posse bem no momento em que um espectro surgiu... foi apenas a linha da coincidência sendo traçada. No fim, foi necessário uma arma espiritual para derrotar Greylous, e é o que tínhamos ali, na hora.

A voz de Abwn caiu. Kai observou o mar e tudo ficou quieto.

– E por qual razão ele queria seu corpo? – Disse Kai, finalmente.

Abwn suspirou, aturdido.

– Como sabe, o éter é uma das seis energias formadoras do cosmos: Chaos, Éter, Nether, Matéria, Mana e Chi. O éter, se usado corretamente, pode abrir fendas dimensionais, portas para outros mundos, outros planos. Há mais de um milênio, um poderoso feiticeiro foi julgado pelos Reinos Unidos do homem, mais conhecido atualmente como Império de Wendex, por praticar magias proibidas, dentre elas o uso indevido de necromancia.

“Não preciso esticar muito para dizer que este homem era Greylous. Ele sugava almas, buscando a imortalidade... é a clássica história do gênio do mal. Os magos do passado destruíram seu corpo, contudo, não conseguiram execrar sua alma e, com a ajuda de nossos ancestrais, aprisionaram-no no sétimo plano, onde ele esteve vagando por esse tempo inteiro.”

“Ao ser liberto, ele vagou como um espectro, fraco demais para fazer algo. Mas alguns magos compraram sua ambição, e ele chegou onde chegou. Possuir meu corpo não só traria sua força total, como também poder para acessar boa parte dessas dimensões. Seria um dos xamãs mais fortes da atualidade.”

Kai observou o horizonte, calado. Pensava em coisas demais.

– Isso me leva a pensar: quem será que o libertou dessa prisão?

– Infelizmente não possuo essa informação, Kai. Mas uma coisa é certa: não é alguém fraco e não deve ser subestimado. Penso que Jimothy era somente um peão, um homem triste e de mente fragmentada, perturbado pela morte do irmão. Quem quer que esteja por trás disso, ainda está solto por aí.

Kai balançou a cabeça.

– Então no fim, o seu sacrifício era a porta para o sucesso dessa guerra?

– Sim. Acredito que foi uma jogada perigosa, uma vez que Greylous quase obteve parte de seu poder... no fim deu tudo certo.

– Será? – Indagou Kai, pressuroso. – Os vitanti perderam seu lar, perderam seu líder... perderam tanta coisa nessa guerra.

– Tem que sair da bolha para enxergar o todo, Kai. Nós não deveríamos ter ficado tanto tempo sob a Orquídea, escondidos. Isso nos liberta para além do impensado. E eles terão um líder, bem como um grande amigo ao seu lado.

Kai olhou para ele, a sobrancelha erguida.

– Você me estima muito, Abwn.

– E se estimo, Hoho. Mas é você quem não se dá o devido valor. O que Bulogg e Eteyow enxergaram em você, eu também enxergo. Logo encontrará seu futuro, seu rumo, e o que lhe aguarda é tão lindo e magnífico..., mas não cabe a mim te dizer o que fazer, Kai, é você quem deve encontrar seu caminho e decidir se deve ou não seguir nele. Conquanto devo adverti-lo: seu caminho há de ser tortuoso e cheio de vinhas espinhentas. Penso, no entanto, que você tem mais do que necessário para passar pelas adversidades.

Abwn se ergueu, colocando as mãos para trás e limpando as pregas de sua veste.

– Já vai? Gostaria de conversar mais... – Disse Kai, se erguendo.

– Receio que meu manti esteja se esvaindo, reservei uma pequena quantidade somente para este momento. – Abwn colocou a mão sobre o ombro de Kai, apertando e o encarando no fundo de seus olhos, como se encarasse sua alma. – Mas tenho mais um tempo para um bom amigo.

Kai baixou a cabeça, receoso.

– Aquele feitiço em que Greylous me colocou...

– A Ilusão Onírica... tudo o que tenho para falar você já possui uma resposta, Kai. – Falou, frustrando os pensamentos do rapaz.

– Mas não entendo uma coisa: como Oren, Ómra, Fioled e até Cineáltas estavam nele?

A pergunta caiu conforme o som do mar batia na beirada do monte.

– A Ilusão Onírica consiste em enterrar a vítima em uma série de sonhos, desejos mais profundos do coração do sujeito. Nesses sonhos, você foi filho de Siobhan Murphy, um desejo puro e latente que talvez ainda haja no seu coração. Nele, foi casado com Ardara Murphy, escancarando sentimentos que talvez você não sabia que tinha por ela. Mas o feitiço se adaptou a outros desejos: a amizade que você criou pelos Echanti, até mesmo o desejo de ser próximo de Ómra.

Kai corou sob as palavras de Abwn.

– Como... como sabe dessas coisas, Abwn?

O homem sorriu, suspirando.

– Receio que você já possua a resposta.

Kai abaixou a cabeça, apertando fortemente os olhos.

– Só não sei... só não sei se irei sobreviver depois daquilo...

– Este foi um feitiço cruel e maldoso, e acredito que você tenha passado por coisas piores antes disso, mas não deixe que esses pensamentos se apossem de você, Kai... não é quem você é. E você sobreviveu, assim como sobreviverá.

Kai ergueu o rosto, encarando o do velho homem roxo. Este tirou a mão do ombro do rapaz e sorriu.

– É chegada minha hora, Kai.

Ele saiu caminhando, indo em direção ao outro lado do monte.

– Obrigado... por tudo. – Disse Kai, que abaixou a cabeça e deixou que as lágrimas finalmente caíssem por seu rosto.

Abwn se virou, ergueu uma mão e acenou.

Eu é que agradeço. Me orgulho de você, bom amigo... e diga a Mael... diga a Mael que eu o amo.

Os céus se abriram e o sol emitiu uma luz cegante, iluminando tudo abaixo. Kai ficou cego, e sentiu seu corpo pulsar.


***


10 MINUTOS ANTES...

Após rapidamente trocar algumas palavras com Mael e ficar decidido que eles arranjariam o máximo de tempo para ele, Kai se escondeu e colocou-se em estado de meditação.

Sabia o que precisava ser feito, e estava tentando lembrar da conexão estabelecida com Amencer. Ele podia senti-la pulsar. Podia sentir a energia vital dela... com certeza a espada tinha consciência.

E quando ele esteve preso pela Ilusão Onírica, soube que esse laço havia sido estreitado por conta da sua afinidade com o chi.

Durantes longos cinco minutos, tudo o que pôde fazer foi se concentrar, buscando a presença de Amencer ao redor do Bulogg. Sabia que ela estava por aí em algum lugar, podia senti-la, é claro.

Então algo extraordinário aconteceu: uma fina camada de chi surgiu em sua mente, como se ligando a alguma coisa...

Quando ele abriu os olhos, a espada do Amanhecer surgiu cortando tudo em sua frente num voo frenético e compulsivo, exalando energia vital. Prestes a colidir com ele, ela girou até seu cabo estar poucos metros da palma da mão de Kai.

Ele a segurou com um sorriso calmo no rosto. Estava pronto.



***


Então tudo aconteceu num piscar de olhos: viu os vitanti lutarem bravamente, conseguindo escapar por pouco uma pá de vezes. Até que Greylous se irritou e acabou com aquilo num piscar de olhos.

Apesar do sentimento de culpa, estava feito: eles conseguiram criar tempo o suficiente não só para que Kai fizesse o que tinha de fazer, como também retardar o processo de cura altíssimo de Greylous.

E Kai surgiu como um vendaval, portando Amencer, maior do que parecia devido à energia solar resvalando em sua lâmina plana. Ela ergueu-se sobre a cabeça de Kai, pulsando, ondas de energia expelindo-se pelo seu fio.

Apertando os dois punhos no cabo, Kai pôs todo chi que tinha nela. A lâmina se alongou e Greylous se sentiu apequenado.

Kai desceu a espada, sem frase de efeito, sem dó, sem chance de remediar. Ele apenas a desceu e partiu Greylous ao meio, que urrou.

A espada chiou, estalando com pequenos raios de energia. A carne de Greylous queimou. Ele berrou mais e mais enquanto a pele entrava em combustão instantânea. Uma fumaça negra fedendo a enxofre saiu pelos olhos, boca, nariz e qualquer cavidade que havia no corpo de Abwn.

O grito se tornou uma lamúria poderosa e horrenda. Mãos negras saltaram do corpo partido em dois, indo em direção ao rosto de fumaça que se formava, enquanto o grito ficava mais agudo e tenebroso. O ruído se intensificou e o chão se abriu, mãos negras saltando de fendas escuras e sombrias.

O espectro de Greylous, como Kai julgou, foi arrastado pelas mãos em direção da fenda formada no chão, enquanto o xamã rogava pragas numa língua antiga que não escapou dos ouvidos de Mael e dos outros que lutavam para evitar que o som os enlouquecesse.

E, tão rápido quanto começou, o chão se fechou e a voz do xamã cessou, findando aquilo que seria a morte do xamã Greylous.

Kai suspirou, aliviado, feliz e cansado.

Haviam derrotado o demônio humano.  



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