Volume 1

Capítulo 50: PERDA E CONQUISTA


O ar repentinamente havia mudado.

Não que a sensação de antes fosse boa, afinal, a guerra estava labutando as vastas terras do Bulogg. Vidas haviam se perdido.

Mas a afirmação de Kai, logo após uma onda de esperança e renovação se instaurar nos corações dos vitanti, gerou novamente uma animosidade no povo. E, em comparação com antes, neste momento a aura assassina exalando de Greylous era tão opressora, que o ar mudou.

Estava tão quieto, tão assustadoramente quieto, que era possível ouvir as vozes dos pensamentos de todos ali, que faziam a mesma pergunta: e agora?!

Eles tinham presenciado uma batalha sem precedentes que incutiu pavor no peito deles mesmos. Poder, força, genialidade.

Abwn Eblomdrude se mostrou ser o topo da cadeia dentre os vitanti, aquele cujos homens poderosos que uma vez foram crianças buscavam se espelhar. Homens que, agora crescidos, mantinham o mesmo anseio, a mesma devoção.

Eles o viram encurralar Greylous, o viram exalar tanto poder, tanta energia, que até mesmo Mael, o Príncipe do Éter, parecia criança perto dele. Então se o que Kai estivesse dizendo era certo, se o que ele disse estivesse minimamente dentro dos parâmetros das possibilidades reais ali... que é que eles fariam?

Apesar da fina camada de aura assassina exalando daquele corpo imóvel de Abwn; mesmo percebendo a sútil presença de um medo pavoroso preencher os campos após as palavras do jovem humano, houve dúvida. E uma dúvida carregada de tolice, óbvio.

Um vitanti deu passos à frente, pegando Kai pelo colarinho e franzindo o cenho, irritado.

– Que é que está dizendo? Tudo que posso ver é alguém que há alguns minutos matava nossos irmãos... espera que acreditemos em você?

Kai não tentou se desprender do aperto forte nem nada. Na verdade, sua mente dava voltas e mais voltas, embaralhada, sendo nocauteada vez após outra por memórias irreais e contraditórias demais. Uma náusea lhe abateu.

Também sentia que não pertencia ali... àquele corpo. Nada parecia certo, desde suas roupas até a insensata sensação de que seu casulo estava errado, como se sua pele, os ossos e os músculos fossem um modelo de roupa errado para ele.

Sentia uma coceira contínua nos músculos, como se qualquer esforço que fizesse fosse rasgar sua pele, cortar em tiras sua cútis e pontilhar os músculos com ferro quente.

Nem mesmo a irritabilidade gerada pelo ato de ser agarrado o fez agir. Sua cabeça girava, vozes gritando dentro dela.

Ele a balançou, buscando se desvencilhar de todas.

– Até onde sei, você estava matando a nós todos. O que impede de você ter armado esse plano todo só pra nos enganar? E se esse tal Greylous não existir?

Alguns vitanti se encararam, não dizendo nada. Era óbvio que duvida riscava seus rostos. Arjuani encarou o amigo, em busca daquele atrevimento e do desdém que se formava sempre que alguém estúpido lhe dirigia a palavra com palavras mais imbecis que já ouvira na vida. Ela sabia bem, era o olhar que ele dava a ela nos primeiros dias em que estiveram juntos.

Tudo o que encontrou, no entanto, foi um rosto cauteloso, amargo e cansado. Mas, acima de tudo, o rosto de alguém sofrendo profundamente. Kai sofria.

Fioled percebeu, Ómra percebeu, Ysgarlad percebeu. Mael percebeu.

– É verdade, não é? – Indagou o vitanti, apertando seu punho ao redor do tecido gasto sobre o corpo de Kai. – Não vai responder?

Uma dúvida faiscou nos olhos de Kai por um segundo. Será que ele estava enlouquecendo? Ora, e se ele é que estivesse causando tudo isso?

Ele não era louco. Não era não. Lembrou-se de quando foi torturado, de quando os feitiços de Greylous davam a sensação, a mesma sensação de sua pele sendo removida e recolocada diversas vezes. De como os feitiços de Greylous fervilhavam em seu cérebro, como se pontilhado por diversas facas. De como a dor que lhe revirava os olhos fazendo-o desmaiar só para depois ser acordado. Tudo isso foi real.

E, tão rápido quanto chegou, a dúvida se foi. Seu rosto se irritou, e ele apertou o pulso do vitanti, sem dizer uma palavra.

Mael olhou para cima, sentindo exatamente o que todos eles estavam sentindo, mas que por alguma razão alguns se negavam a aceitar.

– Não há tempo de explicar – A voz de Kai saiu um barítono baixo.

Assim que sua voz caiu e os vitanti notaram as mudanças de expressão do rapaz, a aura assassina se instaurou de vez.

Ao redor do campo, muitos desmaiaram, outros caíram sobre os braços e pernas, vomitando e revirando os olhos. O pavor, o simples pavor emitido causou aquilo. E então não tiveram duvida alguma.

A sombra sobre o rosto de Abwn havia se ido. Agora um sorriso doentio lhe riscava a face. Ele ergueu as mãos, os dedos tingidos de negros.

– Que... que é que isso significa? – Perguntou Mael, mal respirando.

Sentindo o peso das palavras, Kai se esforçou para encarar o amigo. A guerra tinha o maltratado. Estava cansado, sem um braço.

– Não há tempo para explicar, só...

Outra aura de energia. Dessa vez, mais da metade dos vitanti caíram. Alguns poucos resistiram.

Da Unidade Fronteira, apenas Arjuani, alguns Púrpuros e Kai.

Os comandantes ficaram de pé, mas com muita dificuldade. Os generais também resistiram bem.

Dos mudanti, apenas Ysgarlad e uma dúzia de outros. Dos tessaya o número foi reduzido a zero.

Agora era correto afirmar: Greylous tinha mesmo pego o corpo de Abwn.

– Kai! – Disse Mael, entredentes. – Então era isso? Era isso que ele queria com meu pai?

– Bem pior!

– Pior quanto?

– Não há tempo de explicar, Mael. Precisamos evitar o pior aqui.

Kai fechou os olhos, tentando se lembrar da saudosa sensação de energia fluindo por seu corpo. Por um segundo, se sentiu bem. Nesse segundo, as vozes pararam, as imagens cessaram. A dor pontiaguda e contínua no cérebro, parou. Sentiu-se bem consigo mesmo.

Chi fluiu por todos os seus poros, inundando suas veias, dilatando-as, percorrendo como um rio, partindo do Tanden, o ponto abaixo do umbigo, como um leito, jorrando mais e mais energia.

Ele se sentiu revigorado. O cansaço se foi, a dor excruciante também. Tanta energia guardada, e uma nova, pura e fiel, uma energia sua, entrava e ia embora por seus poros, renovando seu corpo, se livrando das impurezas.

Seu corpo brilhou com uma energia azul, quase roxa; mas à medida que ia se purificando, ganhou uma tonalidade de energia pura como a solar, até ficar invisível, até restar apenas a sensação de que ela estava ali, presente, exalando energia pura no tempo parado.

Sua aura saiu do seu corpo, transmitindo sua intenção, buscando anular a opressão de Greylous. Mael ficou surpreso.

Kai se jogou aos céus, lembrando da vez que meditou e acordou flutuando há quase dois metros do piso.

E seu corpo o obedeceu, alçando voo numa velocidade absurda. Era como nadar, mas mais leve, sem precisar prender a respiração.

Ele não planou, não flutuou, não pairou... ele voou. O atrito de energia gerado por seus pés deixou o chão chamuscando, sua própria energia rasgando o ar enquanto enviava ondas de sua aura macia e acalentadora ao redor do campo, um rastro de energia brilhante marcando o caminho atrás de si.

Voou até chegar na altura de Abwn... Greylous. Agora estava no outro lado. Se encararam por alguns instantes antes que o xamã quebrasse o silêncio.

– É incrível a percepção de éter que este corpo detém... consigo enxergar cada gota dessa energia incomum, formadora de universos, que paira ao nosso redor... – Greylous olhou para Kai, os olhos vermelhos preenchendo cada canto da íris antes acinzentada e meiga de Abwn. – Fico muito surpreso que tenha conseguido sobreviver, Kai Stone.

As palavras dele tinham uma entonação, ditas numa casualidade e gentileza que não se encaixavam com o momento. Nem parecia que ele estava exalando uma aura cruel de vontade assassina.

Kai sorriu, amargo.

– Eu sabia que havia certa chance de que isso acontecesse, sua força e resistência são muito incomuns para mim. Isso me fez pesquisar a fundo sua origem e... – Greylous sorriu, como se um tesouro acabasse de ter sido descoberto. – Bom, agora entendo porque tanta teimosia, tanta vitalidade. É um guerreiro de fato, Kai Stone.

“Mas você continuar vivo e bem nunca me assombrou. Sabia que ao possuir o corpo de um dos maiores seres dessas raças, que possui a habilidade rara de manipular uma das seis energias criadoras... eles, dentre todas as raças, possuintes de tal poder... eu sabia que ninguém seria páreo para mim, nem mesmo você caso iniciasse uma reação. – Greylous olhou para cima, abrindo os braços. – Não sabe quanto tempo esperei por isso, Stone, quanto tempo fiquei aprisionado naquela dimensão... e quando finalmente fui invocado por aquele homem, pude sentir o prazer da vida outra vez.”

Era sabido que alguém estava em conluio com ele, mas quem era?! Pressurosamente, a estranha sensação de deja vu tomou Kai de assalto. De repente, alguns acontecimentos antes de ele ir à Bulogg fervilharam em sua mente.

Mas será?

– Quem é o mago que te invocou?

Greylous sorriu.

– Isso não posso dizer. – Ficou sério. – Não pense que pode me deter, Kai. Você não tem a força necessária para tal, embora eu aprecie e considere toda sua resistência. E, em nome disso, lhe dou a chance de sair vivo daqui. Vá, essa espécie está condenada, viva sua vida, fuja de Reiqin se quiser. Já está na hora de recuperar o que é meu...

Kai não sabia se ficava grato ou irritado com tal pedido.

– Sabe que isso é impossível, Greylous. Ademais, nós nos encontraríamos de novo...

O vento uivou, as ondas de aura emanando friamente pelo tempo parado.

– Então fique e morra, não faz diferença.

Greylous esticou as mãos e começou a puxá-las, como se seus dedos tateassem algo. O espaço sobre a Grande Entrada se dobrou, como se finas pregas de um lençol invisível fosse puxado.

Kai sabia que algo de bom não sairia daquilo. À medida que ele puxava, mais e mais o tecido se alongava, como um longo manto.

Ao olhar para baixo, encarou Mael, uma perplexidade inundando seu cenho. Tornou a olhar para Greylous, que estava com uma carranca de pura crueldade, perversidade e maldade.

Os punhos de Kai ferveram em energia pura, o chi reagindo ao seu pensamento antes mesmo de a ideia ser transmitida entre seus neurônios, antes das sinapses poderem entender o comando.

Um rastro de energia pura exalou dos punhos fechados, cortando o ar e atingindo Greylous bem no meio do peito, que foi arremessado com tanta rapidez que causou uma grande cratera em sua queda.

O tecido que era retorcido no céu voltou lentamente para o lugar, como se um ferro de passar alisasse suas pregas dobradas.

Sem esperar, diminuiu o espaço, rasgando o ar num voo superveloz. Poeira subia da área de impacto onde Greylous caiu.

Ele surgiu, seu rosto atordoado e os óculos quebrados. Ambos ergueram seus punhos, chocando-se, uma aura em forma de raios negros e azuis eclodiu, atingindo o chão e criando milhares de pequenas crateras.

Iniciaram uma série de socos numa velocidade surpreendente, com a irritação de Greylous aumentando cada vez mais. Ele tinha certeza de que ganharia de Kai, mesmo que este sobrevivesse.

Mas ele não calculou aquilo; Kai não deveria ser um adversário tão duro e em tão pouco tempo. Ele não o venceria, é claro, Greylous tinha certeza disso. Mas foi surpreendente o que acontecia.

A cada soco de Greylous em Kai, ele sentia sua resistência aumentar, uma força sobrenatural enriquecer seus músculos, clarear sua visão. Será que o chi estava lhe dando tanta percepção a ponto de aumentar seus sentidos?

Era quase um subtipo da condição aumentada... não, isso era a condição aumentada, mas adquirida num curto espaço de tempo. Kai tinha a noção de que precisaria de muito treino para conseguir chegar num nível quase perfeito daquele poder.

Mas isso acontecia agora naturalmente, reagindo apenas aos seus pensamentos.

Kai acertou um soco no estômago de Greylous que arqueou e cuspiu sangue. O xamã segurou o braço do rapaz e o puxou para perto, socando de volta. Kai cambaleou para trás, aturdido.

Greylous deu um chute circular, em seguida um cruzado de direita. A visão de Kai se estreitou.

Que forte...

Enquanto Kai tentava se recuperar, Greylous esticou as mãos e a névoa saiu das palmas, verde. Ela pairou até o rapaz e formou finas cordas verdes, prendendo seus punhos e tornozelos. Uma corda se firmou ao redor do pescoço dele também, fazendo-o sufocar e ficar vermelho.

– Você é forte, Kai Stone, e como eu disse, aprecio sua força de vontade. Mas não pense... jamais acredite que poderia ser páreo para mim. Isso nunca foi possível. Agora veja o povo que lutou tanto para salvar... morrer.

Surgindo como um raio, Mael ergueu sua espada de luz, um braço brilhante conjurado. Desceu-a diagonalmente no peito de Greylous, que urrou com sangue jorrando.

Apesar disso, o feitiço sobre Kai não se desfez, na verdade, a corda apenas se apertou mais ao redor de sua goela.

Mael foi para cima de Greylous, que meneou os dedos, transformando seu próprio sangue em adagas flutuantes. Jogou-as na direção de Mael, que desviou de algumas, mas foi acertado por outras.

Greylous então criou um arco feito inteiramente de um fogo verde crepitante, que não parecia queimar seus dedos negros. Ele sorriu sob a barba enorme do corpo vitanti. Uma flecha composta por uma cor entre verde e transparente surgiu.

Atirou-a na direção de Mael, que ergueu um escudo de éter. Apesar da poderosa defesa se manter, a ponta da flecha continuou indo em frente, perfurando lenta e pausadamente o escudo. Mael arregalou os olhos, aturdido.

Então o escudo começou a ruir, uma chama verde correndo cada parte dele. A flecha atravessou o escudo, atingindo o vitanti na parte inferior do abdome.

Os olhos de Greylous faiscaram, uma espada feita de um material sólido e negro se formando em suas mãos.

Mael caiu sobre um joelho, cuspindo sangue e concentrando éter na região atingida.

Greylous tocou no corte feito por Mael, a ferida já cicatrizando. O sangue vitanti tingiu os negros dedos de Greylous com uma espessura viscosa. Ele levou os dedos aos lábios e sorriu.

– Lutou bem, Mael Eblomdrude, Príncipe do Éter.

Mael colocou o outro joelho no chão, respirando ofegante, e ergueu o rosto para Greylous, rendido.

– Mate-me..., mas poupe meu povo... é tudo o que peço.

Greylous riu fracamente, mas à medida que a voz de Mael caia, seu riso se tornou uma gargalhada vociferante. Então ele ergueu a espada, visando a cabeça de Mael.

Antes de executar seu ataque, um longo corte surgiu no seu peito, traçando o mesmo caminho feito pelo ataque de Mael. Sangue jorrou e diversos cortes surgiram em seguida, maculando sua pele roxa.

Inseyftal prontamente apareceu, seguida por Arjuani e uma dúzia de comandantes com rostos sombrios.

Formaram um escudo na frente de Mael, que já tinha aceitado seu destino.

Greylous olhou para eles irritado, mas alçou voo, ignorando-os.

– Ele está nos ignorando... – Observou um comandante.

Greylous voou e voou, até ficar um pouco acima da Grande Entrada. Esticou novamente seus dedos para frente e agarrou o ar, puxando para si.

Um tecido, parecido com pregas de seda dobrou-se ao sinal que ele fazia. Quanto mais ele puxava as mãos para cima, mais o tecido se erguia.

A floresta urrava, uma sensação alarmista preenchendo os corações daqueles que se mantinham de pé.

A árvore que guardava a Grande Entrada balançou, produzindo sons contínuos, como se estivesse prestes a se rasgar. Abruptamente, Greylous abriu os braços. O tecido que se dobrava se rasgou, e a árvore quase pareceu perder sua cor diante dos olhos de Kai.

– Isso... – Disse Arjuani. – Temos de impedi-lo, ele vai...

– É tarde demais... – Disse Mael, sentando, tão cansado que poderia desmaiar ali mesmo. – Ele já arrancou a fenda de proteção da Grande Entrada...

– Isso significa...

– Significa que a Orquídea não está mais protegida, Bulogg não pode interceder por nós neste momento.

Logo acima, o sorriso de Greylous era de divertimento cruel. Uma energia pura era absorvida por seus poros, com tanto poder jorrando que qualquer um enlouqueceria.

Ele esticou a mão, uma pequena chama verde surgiu do dedo indicador. Ela foi lançada e flutuou rapidamente até encostar na copa da Grande Entrada.

Imediatamente a árvore queimou, ruindo e produzindo sons dolorosos, sons de uma perda inestimável para os vitanti.

Milhões de anos salvaguardando o lar dos muitas cores para, simplesmente, queimar. Era o início da derrocada.



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