Volume 1

Capítulo 49: VITÓRIA

Sob o inescrupuloso desejo assassino, sob a carranca demoníaca sorridente de Greylous, sob o céu rugindo em fumaça, sob os gritos de pavor.

Sob uma intensa atmosfera de caos e destruição. Sob a presença tão pavorosa daquele mago milenar humano. Sob uma infinidade de mais aspectos circunstanciais, os vitanti morriam, seus gritos de horror preenchendo o campo mais e mais.

Greylous gargalhava acima daquilo tudo, imponente, sugando as almas dos pobres guerreiros de cor violeta.

Mael estava com os olhos arregalados, Inseyftal ao seu lado, rio de lágrimas preenchendo seu rosto sujo. Os vitanti ao redor deles tentavam de todas as maneiras livrá-los daquelas correntes conjuradas por Greylous, falhando miseravelmente.

O xamã pousou no meio do exército, cessando momentaneamente o seu caos gerado.

Guerreiros choravam, debruçando-se sobre seus irmãos. Por que?

– Vamos! – Gritou Key’inant, indo na direção do xamã, há alguns metros.

Seu sub comandante, Ysgarlad, tentou impedi-lo, inutilmente. Sabia que seria praticamente impossível deter o homem.

Algo obscuro borbulhava dentro de Arjuani; algo corroía suas entranhas, impedindo-a de tomar uma atitude, de assumir naquele momento drástico.

Sua cabeça fervilhava, tentando buscar uma alternativa para aquilo.

Toda a cena se desenrolava em câmera lenta para ela: de uma extremidade, os vitanti infundiam seus punhos e seus corpos de éter, buscando, de maneira falha, causar algum dano em Greylous. De outra, alguns comandantes se juntavam em meios círculos ao redor dos generais, buscando um meio mais simples de anular os feitiços do xamã.

Seus olhos se viraram para Pelydryn, que encarava o nada, um vazio assustador preenchendo seus olhos... o mundo exterior de repente pareceu ficar mudo.

– ... para ajudar? Comandante? Arjuani?

– Oi. – Ela piscou alarmada, saindo de seu transe. Olhou para o lado, onde Liziero a encarava, nervoso.

– Eu perguntei o que é que podemos fazer para ajudar.

Ela piscou, ainda sob o transe fleumático que se apossava dela. Estava cansada, exausta na verdade.

Ainda não conseguia acreditar que aquele que a ajudara, que matara um mago tão poderoso com tamanha facilidade estivesse... estivesse morto. A cena a abateu, mas ela logo se recuperaria... tinha de se recuperar.

Piscou várias vezes, atordoada. Limpou a garganta seca, tentando se aluir no mundo.

Seu olhar se voltou para os generais. Correu até eles.

– Que é que precisa de nós?

Mael olhava para a cena de Greylous matando os vitanti. Fechou os olhos, lágrimas brotando nos cantos.

Sabendo o que precisava ser feito, Arjuani se virou para os comandantes, determinada.

– Fumio, Lieto, quantos outros comandantes conhecem a razão?

Lieto se virou para ela, a testa franzida, sem entender o motivo da pergunta.

– Que é que está pensando?

Ela suspirou, cansada demais para tudo isso.

– Precisamos atrasar Greylous até que os generais pensem numa forma de derrota-lo... não seria justo mandar vitanti que não conhecem a razão, sem o uso adequado de éter... sem o conhecimento devido, eles apenas estariam caminhando para a morte.

Fumio engoliu seco, pressuroso.

– E o que é que a faz pensar que poderíamos atrasá-lo? O desgraçado acaba de matar um general sem nem piscar... é simplesmente impossível.

Arjuani o fuzilou com seu olhar; ele encolheu sob o gesto da colega.

– Somos comandantes, droga. Veja – ela apontou para o campo de batalha, os vitanti gritavam, tendo suas almas extraídas, os corpos sendo secos ao ar livre. Greylous sorria de emoção. Key’inant acabara de chegar ao local e ensaiou uma batalha que não durou nem segundos. Fora rapidamente nocauteado. – Somos a única centelha que separa essas pessoas da morte. Mesmo que eu morra, quero ter a certeza de que fiz isso ajudando os outros, salvando meus irmãos. Não irei pedir que meus homens entrem na frente para se arriscarem se eu mesma me escondo atrás deles...

Ela respirou, o cansaço lhe abatendo.

“Quando aceitei ser comandante, sabia o que estava em jogo. Desde a infância, as pessoas me olham com desdém, imaginando que sou a descendente daquele que se recusou a lutar. Só que ele nunca se recusou a lutar, apenas decidiu que não era o momento de ninguém morrer. E é assim que nós Verband somos: escolhemos o momento certou pelo qual lutar.”

“Quando o inimigo é forte, quando ele tem mais homens, talvez seja a hora de parar de lutar..., mas apenas quando sabemos que estamos do lado errado da discussão. Quando se tem certeza de que está do lado certo, se finca o pé no chão e permanece, aguentando até que a morte seja o fio último da derradeira escolha entre o mal e a vida.”

Arjuani suspirou, garantindo que suas palavras fizessem efeito naquele bando de vitanti impressionados demais para tomar qualquer atitude. Retomou a fala quando teve certeza de que suas palavras haviam se assentado em suas cabeças.

– Esta é a hora pela qual escolhemos lutar – pelos nossos irmãos e irmãs que não podem se proteger. Não somos apenas o fio último entre o mal e a vida; somos o fio último entre a Greylous e toda nossa nação. Entre o mal derradeiro e a vida de todos os nossos conterrâneos. – Ela virou-se para Mael, que estava surpreso com o discurso da comandante. – Então, que é que precisa que seja feito?

Todos se sentiram renovados, como se a única escolha deles fosse marchar contra a morte.

– É impossível derrotar ele. – Disse Mael, por fim. Ele continuou, antes que qualquer um interferisse. – Vocês viram o ataque de Pelyn... aquilo mataria qualquer ser vivo, independente do seu nível de magia..., mas Greylous é diferente. Ele é um ser imortal, sua alma provavelmente foi fragmentada em vários pedaços para isso, não haveria outro meio para tal.

– E como poderíamos derrotar um ser assim? – Indagou Lieto, assustado.

– É apenas um palpite... não, é certeza. Seria necessário destruir sua alma com alguma arma espiritual.

– Uma arma espiritual?

– É. É apenas um palpite, mas é provável que Greylous não esteja com sua alma intacta, e esse seria um dos motivos para não ter morrido para o ataque de Pelyn, e também...

– E também...?

– Ele balbuciou algo sobre estar enfraquecido.

– Enfraquecido?

Mael assentiu.

– Tenho meus palpites, mas acredito que sua vinda até aqui esteja ligada com meu pai.

– Ah, você ainda tem dúvidas? – Todos se voltaram para o jovem que soltara o comentário sarcástico. Ómra piscou, envergonhado. – Desculpe, é só que eu achei que tivesse ficado claro que era isso.

– Vindo da pessoa que não notou a diferença entre Greylous e Kai. – Disse Oseias, virando o rosto.

– Confusões acontecem, tá legal? – Ómra bufou, ruborizando. – Mas então General, como pretende atrasá-lo? E o quanto isso seria necessário?

– Não sei – Disse ele após algum tempo. – Tenho que ser sincero, não há nada que se passe em minha mente, mas quanto mais atrasarmos ele, mais terei tempo de pensar em alguma coisa.

Antes que a decisão pudesse ser tomada, todos perceberam a mudança no campo de batalha. Greylous havia parado o roubo de almas e encarava o céu, jubiloso.

Pairando no ar há alguns metros de distância havia um vitanti velho, usando vestes longas cor de ocre, que balançavam com o vai-e-vem do vento.

Sua barba branca era imponente; seus olhos cinzas e miúdos fitavam o horror abaixo. Dor e pesar riscaram seu rosto por uma fração de segundos.

Greylous abriu os braços sorrindo.

Imediatamente, o feitiço sobre Mael e Inseyftal se desfez. Ambos caíram de bunda.

Mael, estupefato, piscou.

– Droga, pai... depois de todo esforço.

Entrementes, Greylous flutuou até ficar frente a frente com Abwn, o Neru’dian. Em poucos segundos estava ali.

– Eu sabia que você observava a batalha com aquele seu poder... Projeção Astral. Que foi, cansou de ver seu povo morrendo?

Abwn piscou.

– Eu soube que seria necessário assim que você apareceu sobre Jimothy e Mael... infelizmente não pude chegar a tempo para... para impedir esse caos.

Greylous gargalhou, a voz serrilhada.

– Então meu plano deu frutos, correu exatamente como eu esperava.

– O que exatamente você quer comigo, Greylous?

Lá embaixo, os comandantes e os dois generais se juntaram, fitando ambos acima.

– Que será que eles tanto conversam? – Indagou um comandante.

– Não sei... droga, o xamã ativou alguma magia de som, não consigo ouvir as palavras pelo vento. – Disse Inseyftal, frustrada.

Os olhos de Mael faiscaram, observando Greylous balbuciar e gesticular com as mãos. O rosto de Abwn ficou sombrio.

Novamente lá em cima, Greylous sorriu.

– Entendo. – Disse o líder do Sínodo, triste. – E não há nenhuma maneira melhor de resolver isso?

– Sabe que não, Abwn. Sabe que manterei minha palavra, elas são tudo o que tenho.

Uma raiva riscou os olhos de Neru’dian.

– Palavra? Vi o que fez com Jimothy, xamã. Sou velho demais para saber que palavras ditas ao vento não tem valia alguma. No entanto...

O feitiço de som ao redor deles se quebrou, e ambos se afastaram, Greylous irritado, a carranca severa.

Abwn girou o braço acima de si e uma energia branca, quase transparente fluiu de sua mão, irradiando poder, tão poderosa que Mael e os vitanti abaixo podiam sentir sua aura irradiar.

Greylous esticou a mão e a névoa verde saltou pela sua palma, rodeando-o.
 
Dali a pouco as energias formaram escudos ao redor de seus conjuradores. O ar sibilou quando ambas se tornaram finos feixes de luz e riscaram o céu, indo de em encontro com a outra.

Ao colidir, o som uivou, os ventos açoitaram, levando ondas de energia mesclada para os campos abaixo.

– Protejam-se. – Gritou Mael, formando uma barreira protetora com seu único braço ao redor de uma dezena, talvez duas ou três.

As energias que se debatiam entre si, nunca se juntando e formando outra cor, caíram no chão, causando crateras enormes, feito os raios de Pelydryn.

Os feixes se atingiram com muita força, e Greylous e Abwn girando um ao redor do outro, nunca tirando os olhos entre si.

As energias vibravam, açoitando uma a outra que ao se chocarem, voltavam, arqueando seus conjuradores. O ar vibrava, um zunido oculto e gélido, mortal.

Ficaram planando no ar. Vez ou outra a energia branca de Abwn empurrava tanto a de Greylous que ele ficava pálido, mas logo sua energia verde voltava a se impor, ficando meio a meio novamente.

A energia de Greylous nunca se contrapôs, com a de Abwn sendo tão forte que os escudos de éter se rompiam abaixo devido ao fluxo de energia poderoso o bastante para destruir várias árvores.

Greylous suava, parecendo cansado e irritado, indiferente ao poder abrasivo de Abwn. Este permanecia com sua carranca indiferente, sábio, imperial, quase celestial.

– Abwn irá ganhar, sua força é tão poderosa.

– Isso é incrível, nunca pensei que veria em primeira mão o guerreiro mais poderoso de nossa raça em ação. Veja esses raios de energia... são quase tão puros quanto a mana presente em Bulogg.

– Se Mael é chamado o Príncipe do Éter, então Neru’dian poderia ser considerado o rei?

– Viva! Iremos ganhar, não há chance alguma para Greylous.

Então os feixes de energia se intensificaram, gerando uma luz tão poderosa que cegou todos abaixo.

A luz iluminou quase todo o campo de batalha. O sol estava nascendo, despontando seus primeiros raios de luz.

Quando a luz artificial do ataque de Abwn e Greylous diminuiu, todos viraram-se para cima, os escudos sendo desfeitos.

E havia acabado mais rápido do que começou.

O corpo de Greylous caía lentamente. Estava desacordado, indo a toda velocidade ao encontro do chão.

Flutuando, imperante, Abwn mantinha sua postura indômita, como um rei, imponente.

O vento açoitava suas vestes, as pregas desalinhadas de seu longo vestido. Seu rosto permaneceu sombrio.

Os gritos e urros dos vitanti abaixo soaram. Estavam felizes, a guerra havia finalmente acabado. Greylous estava morto, os inimigos haviam sido sobrepujados. A Orquídea permaneceria por mais um dia, apesar dos estragos evidentes na Floresta de Bulogg.

Arjuani sorriu, os olhos cheios de lágrimas. Os vitanti começaram a se abraçar, felizes e emocionados por tantas perdas. Mael suspirou, choroso.

Havia perdido muito também, mas, no fim, não fora em vão. Seu pai fora vitorioso nessa.

Uma comoção generalizada tinha início onde o corpo de Greylous caíra.

Mael se virou para uns comandantes e ordenou que cuidassem de Pelydryn, seu pai saberia o que fazer depois.

Então se virou para a comoção e correu até lá, seguido por Inseyftal, Arjuani, Ómra, alguns púrpuros e mais outros da Unidade Fronteira.

Havia um cerco em volta, cheios de vitanti balbuciando e conversando alto. Ele cortou caminho, empurrando para os lados.

Vitanti olharam com raiva, apenas para suavizarem seus rostos.

Quando finalmente ele e sua comitiva chegaram ao centro da balburdia, deram de cara com o corpo de Kai, franzino.

Era quase como se estivesse dormindo, tão alheio ao mundo lá fora. O rapaz sofrera, suas mãos não tinham mais a cor negra de antes, e seu rosto estava pálido. Mas ele parecia tão calmo, como se num sono profundo.

Para alguns ele era apenas Greylous, motivo da morte de muitos vitanti.

Para Mael era seu aluno, seu amigo... um irmão. Mais um que morrera pelas mãos do maldoso xamã. Baixou a cabeça se permitindo chorar, finalmente. Sentiu a mão de Inseyftal pousar em seu ombro.

Arjuani caminhou até chegar perto dele, para fica de joelhos e chorar silenciosamente.

– Ele terá o enterro digno... – Inseyftal disse, acolhedora. – Reconheceremos a grande pessoa que Kai Stone foi para nós, vitanti.

Passos de alguém correndo soou ao lado, e várias pessoas balbuciando e xingando a seguir. Um momento após, a cabeça de Fioled apareceu entre os muitos vitanti que espreitavam.

Ómra permaneceu imóvel, encarando a irmã pálida que acabara de acordar. Ela andou lentamente, ficando do outro lado do corpo morto de Kai.

Se sentou sobre os joelhos e pegou a mão dele, apertando sobre as coxas. Abaixou a cabeça e começou a chorar, mas era um choro junto de um sorriso, felicidade estampada.

– Não tive a chance de agradecer... obrigada, por tudo.

Ysgarlad, Oseias e uma dúzia de outros vitanti apareceu. A cena comovente de duas fortes guerreiras chorando por um homem não foi o que mais surpreendeu há boa parcela dos telespectadores.

O que os surpreendeu foi o fato do corpo de Kai dar uma guinada para frente e ele abrir os olhos, frenético, respirando fundo e pesadamente, numa velocidade quase assustadora.

Guerreiros arregalaram os olhos, éter fluindo por seus punhos. Outros prepararam suas flechas, outros suas lanças e espadas.

Mael piscou, se livrando das lágrimas. Seus olhos tão arregalados quanto.

Greylous tinha sobrevivido? Pensou.

Os olhos de Greylous passaram por cada um dos vitanti, parando pausadamente nos conhecidos.

– Vamos mata-lo antes que se situe. – Disse um vitanti puxando a corda de seu arco.

Os olhos negros de Greylous pousaram sobre uma Fioled apática, sem saber como reagir. Sobre uma Arjuani chorosa e feliz. Sobre um Mael que, assim que encontrou seu olhar, teve uma certeza. A certeza mais genuína e feliz de sua vida.

Não havia qualquer traço de Greylous em Kai. Era apenas ele, o amigo sarcástico e incrivelmente inteligente dele.

Os olhos negros, puxados e cheios de olheiras... ele continuou respirando fundo.

Uma alegria se apossou sobre Mael, mas o olhar inquisidor e aperreado de Kai lhe disseram que havia algo de errado.

Mael ergueu a mão esquerda espalmada, apaziguadora: – Abaixem suas armas.

Olhares frustrados e cheios de dúvidas se voltaram para Mael.

Inseyftal apertou seu toque no ombro do General.

“Sabe o que está fazendo?” Indagou, na comunicação privada dos generais.

Ele apenas assentiu. Inseyftal suspirou.

– Vocês ouviram o general, abaixem suas armas.

Hesitantes, pouco a pouco os guerreiros seguiram como ordenado.

Mael olhou para sua general, agradecido, um segundo depois encarou Kai, como se quisesse respostas.

O rapaz estava aturdido, alarmado, procurando algo entre o campo. Ele tocou em si mesmo, para ter noção de que estava ali. Chegou a se beliscar. Um alívio riscou seu rosto por uma fração de segundos, antes da preocupação alarmante de antes lhe tomasse outra vez. Então ergueu o rosto lentamente para cima, apenas para ficar mais alarmado e assustado que antes.

Virou-se para Mael, um silêncio primitivo rodeando o lugar.

– Greylous... ele ainda... está... vivo...

Mael franziu a testa, assustado. Os guerreiros começaram a se aperrear, incrédulos demais para acreditar naquilo.

Kai limpou a garganta, a boca seca e ressequida.

– Greylous está vivo, e neste momento acaba de dar um passo para seu poder total.

– Como assim, que quer dizer com isso? – Indagou Lieto, se aproximando.

Kai lhe fuzilou com um olhar mais de medo do que de raiva. Não tinha tempo de explicar.

– Ele tomou o corpo de Abwn. Ele agora é o ser mais poderoso deste lugar. 



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