Volume 1
Capítulo 10: TUDO O QUE NÃO SOU
Ele pensou que, por se tratar de relatos superimportantes, levaria uma quantidade de tempo excessiva para ter o mínimo de descanso.
Mas foi o contrário, como bem vinha sendo nos últimos dias. Logo após contar tudo o que houve na noite em que fora resgatado, foi levado por um sujeito de pele rosa claro; seria facilmente confundido com um humano, não fosse pela orelha pontuda e achatada.
Ele achava que faria parte de um interrogatório. O tal Oren fez tudo parecer maior do que realmente era.
O seu guia primeiro lhe levou numa espécie de enfermaria. Ele estava muito avariado, mesmo que o agrião tivesse sido crucial na cura dos ossos. Ainda tinha seu supercilio cortado e inchado; hematomas por todo o corpo.
No fim, o vitanti utilizou uma magia muito engenhosa que curou boa parte de seus ferimentos. Ficou com uma cicatriz horizontal acima do olho esquerdo e mais alguns ao longo dos braços. Nada de novo.
Depois, foi levado à um quarto ali mesmo naquela instalação na sequoia de ramos vermelhos; achou que era apenas um tipo de quartel general. Mas estava enganado.
O lugar em que foi instalado tinha o tamanho de sua cabana nas extremidades da família Murphy.
Uma pequena e baixa mesa oval estava disposta bem no centro do lugar, que era feito de uma madeira bordô.
Junto à uma parede do lado esquerdo, havia uma grande cama redonda com lençóis brancos e sedosos com um dossel ao redor feito de madeira. De frente para a cama, havia um sofá e ainda uma enorme lareira.
Do outro lado, de frente para a porta, havia uma enorme janela, que tinha uma visão mais próxima da cidade que se alongava logo abaixo.
Essas coisas fizeram Kai repensar sua opinião que teve mormente a respeito desse povo. Eles não eram ultrapassados, selvagens, nem bobos. Pelo contrário, este quarto obtinha uma beleza que ele nunca nem encontrou enquanto no território do homem. Era surpreendente.
Depois de vasculhar pelo lugar, Kai ainda encontrou um lavabo, um banheiro e um imenso guarda-roupa, com várias roupas de um tecido muito macio. Eram parecidos com robes.
Enquanto se lavava, sua mente vagou pelas coisas que perdeu durante sua viagem. Sua mochila, a roupa feita de escama de urso, sua espada... aquela que teve tanto cuidado que acabou perdendo na primeira oportunidade.
Em alguns pontos da perna e braços, como bem notou, ainda tinha o tom doentio. Não fosse pelo agrião notavelmente enfeitiçado de Fioled, poderia estar com os ossos quebrados. Embora notasse que um processo de cura completo não foi realmente feito ao comer o pedaço de folha.
Mas não fez mal, apenas sentir que estava se recuperando o fez suspirar de alívio.
Depois de jogar as roupas esfarrapadas no que achou – engenhosamente – ser um balde de lixo, buscou roupas que se adequassem mais ao seu estilo.
Infelizmente, aquele povo parecia ter um gosto adocicado por vestes em forma de vestido e de cor branca.
Acontece que Kai odiava roupas em tom claro.
Depois de fuçar bastante, achou um robe – que, à primeira vista tinha um toque bem suave e confortável – de cor verde musgo. Ele preferia mil vezes uma roupa inteiramente preta.
E seu dia inteiro se resumiu de uma maneira: dormir. Tirou todo o excesso de sono. Nem ligou pra fome que estava sentindo, só dormiu.
Mas acordou no meio da noite, a barriga roncando feito bicho. Havia uma zoada generalizada em tom rítmico.
Ao descer de sua confortável cama, caminhou até a janela, abrindo devagar as cortinas macias e cinzentas.
Lá embaixo, um número considerável de vitanti se reunia em um círculo, na clareira de uma floresta de árvores vermelhas, próximo ao rio.
Com uma enorme fogueira no centro parecida com uma pira, Neru’dian conduzia uma canção. Alguns choravam enquanto outros seguiam a melodia.
Kai não entendeu nenhuma palavra, mas ficou tocado com o som. Parecia ser uma música triste.
E foi assim; pelo que pareceram horas a fio, eles continuaram cantando em direção à fogueira, enquanto o céu – que para Kai era artificial por estarem simplesmente dentro de uma árvore e provavelmente embaixo da terra – ia ficando mais e mais escuro. Até que eles foram se dispersando e o fogaréu perdendo força. Até que num momento não sobrou nenhum vitanti e, com o céu totalmente escuro, Kai adormeceu sobre o parapeito da janela de madeira.
***
Quando acordou, não pôde evitar duas coisas: a dor no estômago e o barulho de alguém batendo em sua porta de modo irritante.
– Que é, porra?! – gritou ele ao abrir a porta.
Deu de cara com uma vitanti de cabelos cor de ocre e uma pele cor de ameixa. Seus olhos eram da cor de mel e ela usava um conjunto de robes cinzentos. Não devia ter mais do que 12 anos.
Ela segurava uma bandeja com frutas, jarros e potes. Seus olhos se encheram de lágrimas, mas ela não recuou sequer um passo.
– Neru’dian me pediu para trazer isso para o senhor – disse, magoada. – Falou que podia estar com muita fome...
O estômago de Kai roncou e ele ruborizou. A mocinha arregalou os olhos e as lágrimas rapidamente secaram.
– É uma comida feita por mim e minha ashiri. Es... espero que goste.
– Sim... – Kai pegou a bandeja dela, um nó apertando sua garganta. – Qual seu nome?
– Ah – ela ruborizou de uma maneira que Kai não achou ser possível. – Ah... eu me chamo Plumrose, mas, se formos traduzir para sua língua, ficaria Flor de Ameixa.
Kai suspirou. Seria melhor chamar ela apenas pelo nome natal. Flor de Ameixa não era bem uma fruta... ou uma flor. Ele olhou para a bandeja em sua mão e depois para a menina. A barriga dela roncou e, junto disso, um novo rubor tomou seu rosto. Ela parecia ser tímida.
– Escute, Plumrose... acho que não consigo comer isso sozinho, gostaria de me acompanhar? – indagou.
A verdade é que Kai nunca foi bom em lidar com outras pessoas. Sempre preferiu estar só. Não era como se fosse um tabu conversar com outros. Não. Ele apenas achava inviável ter de socializar quando tinha total aversão com essas coisas.
Agora a coisa era diferente quando se tratava de crianças. Sempre foi um bom instrutor e, nas academias, seus mentores diziam que se um dia ele quisesse, poderia virar um mentor. Mas no momento estava amargurado demais para tal trabalho.
E, como Plumrose estava com uma fome daquelas ele não precisou repetir nem duas vezes.
A mocinha adentrou em seu quarto e se sentou em uma almofada, próximo da mesinha oval.
– Vou apenas me limpar e já volto. – Disse ele, se dirigindo ao lavabo.
Dez minutos depois ele voltou. A menina estava no mesmo lugar em que ele a deixara: sobre os dois joelhos encarando a comida na mesinha oval, vidrada.
Ele se sentou defronte a ela e pegou uma tigela e uma fruta de cor azul.
– Que temos aqui? – perguntou.
– Ah – disse Plumrose, se sobressaltando. – Nem notei que tinha voltado... bem, minha ashiri... quero dizer, minha mamãe preparou um pão feito de trigo de flor verde. O que está tomando é algo relativo ao... como é mesmo? Aquele negócio feito de grãos negros...
– Café? – arriscou.
– Isso – ela riu. – Temos um grão que dá aqui em Orquídea. Mas ele não é negro... e também preparou um assado de um peixe que encontramos lá no rio.
Kai fitou tudo, parecia com um gosto bom. Comeu sem nem pestanejar.
– Me diz – ele falou, a boca cheia. – Como sabe sobre o café? E porque disse que aqui é Orquídea? Lembro de Fioled dizer que se chamava Tir alguma coisa.
– Ah – ela colocou a mão na boca, rindo. – Tir’Tegeirian é o nome de nossa casa. Mas, quando traduzimos para sua língua, o nome é chamado de Reino da Orquídea.
– Ah... – Kai abriu a boca, parecendo um bobão. – E quanto ao café? E o dialeto... como sabe falar tão bem nossa língua?
– Nós temos estudo aqui, senhor Kai. Neru’dian é um homem sábio que nos ensina sobre tudo das outras raças, mesmo que para vocês não passemos de mito ou de um sonho há muito esquecido. O dialeto que nós estamos usando é universal, é como nossa segunda língua... – ela parou por um instante, como se escolhendo as palavras. – Sabe, ele é o diretor de nossa escola. E não importa o status de sangue, todos são bem vindos.
– Que quer dizer com isso?
– Ah... bem, somos divididos por clãs, casas e linhagens.
Ele lembrou de quando o sujeito de olhos vermelhos falou sobre isso. Na ocasião, ficou boiando.
– Poderia me explicar sobre isso?
– Claro – ela sorriu, limpando as migalhas do canto de sua boca. – Por exemplo, eu sou Plumrose do clã de Asuso. Somos quase que uma comunidade, um clã realmente grande. Os clãs são os que mais são encontrados aqui. São quase como a elite, entende?
“Agora, aqueles que se intitulam da casa, são pessoas que adotaram o nome de alguém para si. Por exemplo, alguém do nosso clã que realmente não tem nosso sangue e decide adotar nosso nome, deve dizer que é da casa de Asuso.”
– E a linhagem? – perguntou, achando aquele sistema muito patético.
– Ah, os de linhagem são aqueles que descendem diretamente dos primeiros líderes vitanti. Nesse momento somente alguns ainda estão vivos. São realmente muito poucos.
Para Kai pareceu complicado; nunca imaginou que algo tão estruturado assim existisse ali. Era mais política do que achou que pudesse existir. A ideia de que aquele povo era ultrapassado voltou a sua mente, com um rolo de imagens e ideais que poderiam facilmente ser implantadas.
Mas eles estavam vivendo bem sem a ideia de que os humanos podiam intervir. Afinal, nenhum homem tinha tentado ir ali. Pelo menos não que ele soubesse. Os livros nem citavam os vitanti.
– O que foi aquela procissão ontem? – indagou ele.
– Ah... Ah, aquilo foi o nosso modo de dizer adeus.
Kai piscou e, prestes a perguntar mais sobre o assunto, a porta do quarto se abriu. Um rapaz com o mesmo tom de pele que Plumrose entrou no quarto. Ele usava um conjunto de roupas cinza e seu cabelo era do mesmo tom que o da menina. Devia ter uns 16 ou 17 anos.
– Plumrose do clã de Asuso! – gritou. – Ashiri está te esperando há quase três brechas. Que estava pensando? Passe de volta para a cozinha.
Ela se levantou, limpando a boca no vestidinho e dando adeus para Kai. Parou antes de passar e se virou.
– Três brechas quer dizer trinta minutos... obrigada pela comida, senhor Kai – e saiu correndo.
Kai piscou para o rapaz, que lhe encarava.
– Não quero que torne a falar com Plumrose, seu curoh’nekedoh imundo. Neru’dian pode ter lhe aceitado e, parte dos pastorais podem ter permitido sua presença neste lugar, mas, saiba apenas disso: nós, os vitanti orgulhosos, não aceitamos. Portanto, fique longe de Plumrose, de mim e de meus irmãos.
Ele caminhou a passos firmes até a porta e bateu-a com muita força. Kai ficou apenas ali, engolindo sua comida calmamente.
***
Depois da manhã de eventos minimamente estressantes, Kai se preparou para dar uma escapada. Iria explorar. Não pretendia ficar mais do que sua mente lhe dizia para ficar. Afinal, ainda tinha de ir atrás de algum modo de recuperar sua antiga força. Ou, pelo menos algo que se aproximasse.
Primeiro, gostaria de visitar todos os lugares possíveis, mas, se os vitanti estavam tão amargurados com o fato dele estar ali, pensava que as outras raças não seriam tão amistosas quanto essa.
E tinha o fato de não saber como sair da floresta de Bulogg. Tinha que dar um jeito de sair vivo dali e, se desse sorte, entrar num território humano outra vez.
Mas, como bem sabia, corria o risco de cair numa das áreas inimigas de Algüros, como Zarastura. Apesar de Zikros estar em paz com Algüros, a cidade-estado era outro assunto e, até onde ele sabia, podia ser considerado um inimigo. Por séculos Zikros esteve em problemas com outros reinos fronteiriços e, apesar de não fazer fronteira com Algüros, este era o país que lhes era mais caro. Por sua terra vasta e fértil; pelos portos e pelas minas. Possivelmente uma guerra estaria em seus preâmbulos.
Agora, pensando melhor, com quem Algüros entrava ou deixava de entrar em guerra nem lhe importava.
Quando saiu da sequoia, ficou encantado.
À direita haviam enormes árvores – não tão grandes quanto a sequoia. – com ramos e folhas vermelhas. Sabia que naquela direção estava o rio.
Uma estrada sinuosa seguia em frente. Não havia nada ali exceto árvores e mais árvores.
Agora, ali de baixo, parecia que a entrada pela qual viera estava tão distante... escondida. E estava mesmo. Nem parecia que tinha uma série de túneis logo acima.
Durante sua caminhada não deu de cara com nenhum vitanti. Ficou aliviado. Já bastava os olhares que lançaram quando passou pelo salão no térreo da árvore.
Mas isso não poderia ser evitado; pouco a pouco, fazendas e montes de terra verdes foram aparecendo. As casas não eram feitas do jeito tradicional. Não, elas ficavam na base de um tronco de árvores, em construções redondas e feitas da própria madeira.
Ao passar pelas estradas, várias pessoas paravam o que estavam fazendo. Até os animais estranhos: ele avistou uma espécie de galinha gigante com cabeça de pato e cascos de cavalo parou de pastar e ergueu a cabeça. Ovelhas com três cabeças fizeram o mesmo.
Quando finalmente chegou nas margens da cidade, ficou encantado. Algumas construções eram feitas de madeira branca e ovais, na base de árvores que se alinhavam com pontes no topo de suas copas. Várias pessoas apareceram nas varandas, encarando e cochichando. Mas não diziam nada.
Nem todas as casas eram feitas de árvores, contudo: algumas eram simplesmente feitas de pedra. Era como se tivessem achado uma enorme pedra e construído tudo o que precisavam no interior dela. Ele não duvidou disso.
Entrou numa rua larga com várias barracas e instalações que lembravam vagamente bares e comércios do reino humano. A imagem de Vilela, o bairro nobre de Neve Sempiterna lhe veio à mente.
Entre alguns olhares, ouviu mais cochichos e olhares estranhos; parou em frente uma barraca de uma mulher velha com um lenço sobre os cabelos finos e brancos. Sua pele era verde lima. Foi a primeira com um tom não roxo desde que entrara ali. Tinha olhinhos cansados e mãos nodosas com dedos longos.
Sobre uma mesa à mostra, haviam várias bijuterias. Desde anéis a cordões e brincos. Lembrou dos vitanti que foram até a árvore de Pele-pétrea resgatar Fioled.
Na ocasião, ele pensou que os vitanti fossem um povo matuto que se atrepava em árvores e comia peixe cru e morava em casas feitas de palha redondas.
Mas, como a história não mente, suas suposições eram recheadas de embasamentos rasos e sem critério e, apesar de estar sendo constantemente negado por esse povo, gostou do fato de estar errado pelo menos uma vez na vida.
Ele pegou um cordão com contas redondas. O fio era forte como a corda de uma flecha e, as contas, lembravam safiras ou esmeralda. Cada uma brilhava numa cor diferente, totalizando dez. Ao girar as contas entre os dedos, elas mudavam de tom, indo de claro à escuro. Era como olhar por uma luneta cujo todas as cores do círculo cromático se juntassem. Exceto que cada uma era de uma cor diferente e única.
– Então é verdade – disse uma voz às costas de Kai. Ele se virou e deu de cara com um rapaz de pele lavanda. Os cabelos eram cinzentos e os olhos vermelhos; seu nariz, aquilino e torto. Usava um conjunto de roupas de couro cinza, uma lança presa às costas. Ele fungou, penteando os cabelos para trás com as mãos. – Um curoh’nekedoh está entre nós.
Kai voltou sua atenção ao pingente, volvendo para frente.
– Como se chama isso? – indagou, sorrindo para a velhinha.
– Ah, é o colar de cerejeira.
– E quanto é? – perguntou.
– Não custa nada, docinho. Para um amigo de Fioled o custo é zero.
Kai ergueu a sobrancelha, feliz. Uma mão o tocou no ombro, fazendo-o se virar.
– Sabe, não é bom deixar uma outra pessoa falando sozinha. Seu povo não te ensinou isso?
– Desculpe, você me chamou por um nome de modo pejorativa. Não costumo me alegrar com insultos.
Os cabelos do vitanti perfeitamente alinhados para trás começaram a desarrumar. Uma aura esvaía dele, que começava a incomodar as pessoas próximas por sua densidade.
A sensação de estar sem ar voltou; seus pulmões lutavam para respirar, mas, ao invés disso, estavam se rasgando devido à pressão e falta de oxigênio. Mas Kai não caiu sob um joelho... Não. Ele se manteve de pé, firmando o olhar do vitanti. Nunca mais baixaria a cabeça, nem que explodisse em mil pedacinhos.
Esses vitanti estavam mal acostumados e ele trataria de lhes devolver na mesma moeda a arrogância.
O vitanti tinha, no entanto, uma feição indecifrável: estava entre incrédulo e espantado. Quem era esse humano que não conseguia nem usar manti e resistia à uma pressão daquelas?
Então uma segunda aura cortou a primeira. Essa era quente, macia, reconfortante. A primeira não chegava nem aos seus pés. Essa segunda dava a sensação de estar num campo florido, cheio de animais e frutas. Dava a sensação de felicidade, como se o Sol tocasse a pele e não queimasse.
E, por um momento, as duas auras duelaram. Mas a primeira foi ficando fraca, perdendo densidade. E quando cessou, o homem de pele lavanda estava suando; encarava o chão.
Kai olhou para o lado e viu um rapaz se aproximando. Tinha uma pele pervinca. Seu cabelo era negro e curtinho, caído para os lados. Usava um colar de cerejeira sobre vestes largas e longas de cores negras.
Ao seu lado, havia um bicho estranho: tinha o tronco grande e peludo, um rosto parecido com o de um urso. Mas as patas traseiras eram como de um lobo.
O rapaz usava óculos redondos e lembrava muito alguém, mas a mente de Kai não fez a ligação imediatamente.
– Você não perde a chance de causar uma comoção, não é, Ilywd? – ele sorriu e olhou para Kai. – É um prazer conhece-lo, Kai Murphy. Meu pai me falou bastante a seu respeito.