Volume 1

Capítulo 11: PROFITARE

O rapaz se aproximou segurando as rédeas de seu bicho e sorriu para a velhinha da barraca.

– Bom dia, Gwyrdd! Como está?

– Olá, querido, vou bem. E você? Voltando hoje?

– Vou muito bem, obrigado. E sim, acabo de chegar.

Ele lançou um olhar para Kai. Os olhinhos por trás dos óculos redondos um tanto amistosos. Eram cinzentos.

– Muito bem, muito bem. Como estão os tessaya?

– Bem, também. Só aquele probleminha de sempre, mas vão bem.

Aquele povo é muito cabeça dura. Bom, não vou tomar seu tempo. Dê um jeito em Ilywd aqui. Chegou querendo fazer mal ao amigo de Fioled.

O rapaz olhou para Ilywd, que ainda fitava o chão. Depois se aproximou um pouco mais.

– Eu vi tudo, Gwyrdd. – Se virou para ela e depois para o vitanti. – O que eu lhe disse sobre usar aura em áreas onde tem civis, Ilywd? Força para subjugar os mais fracos não é correto. Não seja presunçoso a este ponto.

– Mas esse curoh’...

Ele não terminou a frase. O recém chegado o encarou com tanta ferocidade que Ilywd fechou a boca automaticamente.

– Nunca use esse termo em minha presença, está ouvindo? – não houve resposta. – Você me entendeu?

– S-sim senhor.

A velhinha deu uma gargalhada.

– É tão bom quando você bota ordem na casa, garoto. É um dos únicos que ainda tem noção. E não esqueça de mandar um oi ao seu pai, tudo bem?

Enquanto Ilywd se retirava, provavelmente muito envergonhado, algumas pessoas se aproximaram e deram palmadas nas costas do sujeito.

Ele ficara sem graça; Kai não se admiraria se ele cavasse uma cova no chão e enfiasse a cabeça dentro, tímido.

Quando a turminha se dispersou – eram muitos vitanti – ele olhou para Kai pelo canto do olho.

– Com isso tudo, acabei prolongando as apresentações – ele esticou uma mão, sorridente. – Sou Mael da linhagem Eblomdrude. É um prazer, Kai Murphy. 

Kai apertou sua mão, uma careta evidente.

– Gostaria que me chamasse apenas de Kai ou, no lugar de Murphy, um Stone não cairia mal... – disse. – Sabe, Murphy não é meu nome de nascença...

– Ah – Mael sorriu. – Acho que me precipitei. Estou indo até minha casa, me acompanha? Gostaria de conversar contigo, papai fez um breve resumo, mas gosto de conhecer gente nova.

Kai assentiu, mesmo não sabendo quem era o pai dele.

Teve a chance de perguntar durante o início do trajeto, mas não sabia como iniciar uma conversa com o sujeito.

E Mael tampouco deu indício de querer isso. Ao seu redor havia uma aura morna e densa, como se um aroma nunca perdesse seu cheiro. E tinha esses olhinhos cinzentos por detrás dos óclinhos redondos.

– Você faz parte de algum... exército? – perguntou Kai.

– Ah – Mael assentiu. – Sou um dos comandantes de campo. Estava numa missão em outra tribo. Os tessaya são muito complicados.

– Então existem outros lugares como esse? – Kai se espantou.

– Ah, não iguais a esse. Mas sim. Tenho tentado trazer os tessaya para cá. Não só eles, é claro, mas tem havido certa resistência – ele suspirou. – Há muito tempo vivíamos todos em harmonia, mas eles acabaram indo. Como eu disse, são um povo muito orgulhoso.

– Entendo. E eles se parecem... hum... com vocês?

Mael franziu as sobrancelhas e olhou para Kai. Logo sorriu.

– Conosco? Não, não. Como posso dizer... sua pele é mais... verde.

– Então aquela senhorinha...

– Sim. Ela é uma tessaya, sim. É uma das primeiras a virem morar aqui de volta conosco. Sabe, a rebelião dos tessaya ocorreu quando ela era pequenininha, então ainda tinha muitas lembranças daqui. Isso ajudou com sua adaptação ao lar.

– Mas qual a diferença entre vocês e os tessaya fora a tonalidade da pele?

– É o que me pergunto sempre... – Mael sorriu, preocupado. – Vitanti são um único povo... Os vitanti de muitas cores. Mas os tessaya fazem parte de uma das quatro tribos que se foram. E nós permanecemos, continuamos usando o nome de nossa raça.

– Então tessaya não é uma raça – Kai murmurou.

– Não. É só um modo deles se distinguirem. Houve essa guerra por poder, sabe? Uns querendo governar os outros. Mas isso era o medo falando. Agora tento trazer de volta os vitanti perdidos. Alguns querem, já outros...

– Gwyrdd é uma dos que quiseram...

– Sim. Ela e seu clã vieram, mas ela era nova na época. Minha linhagem... os Eblomdrude têm tentado com afinco trazer esse povo de volta. Alguns como os Odz e os Echanti nos ajudam. Mas os tessaya são orgulhosos.

– Acho que está no seu DNA, então – Kai sorriu, esperando retaliação.

Mael, por sua vez, olhou para o garoto e sorriu. Soltou uma risada que ecoou pelo caminho.

– Você tem razão; nós, os vitanti, somos um povo complicado. Mas não se deixe criar uma imagem errônea de nós, Kai. Mesmo que alguns tenham sido...

– Rudes? – Kai interrompeu. – Tudo bem, já estou acostumado com isso. Percebi que Fioled ficou bem mais carismática depois que viramos amigos. Mas não posso dizer o mesmo de Oren e aquele tal de Ómra.

Mael piscou; ele encarou o chão por longos segundos.

– Oren tem o gênio forte, admito. Mas é um cara bacana. Por ser de uma das tribos que nos deixaram, ele tende a ser muito duro consigo mesmo. Pensa que nos deve algo, que tem de provar fidelidade. E Ómra é apenas o irmão mais velho de Fioled que é influenciado por Oren.

O resto do caminho ficaram em silêncio. Mas, ao contrário do que se pode pensar, não foi constrangedor.

Logo chegaram ao seu destino, afinal.

Em cada lado de um vasto campo verde protegido por cercas médias, haviam duas árvores de troncos grossos, com janelas e portas, com uma ponte de madeira bem no alto ligando-as.

Ainda, seu enorme terreno era repleto de montes e morrinhos, com um lago particular na frente que serpenteava por entre as duas árvores e se perdia ao longe na floresta escurecida.

Mael passou pelo vão de entrada e caminhou na direção da árvore à direita.

Antes de entrar, tirou as rédeas e a cela de sua montaria, que saiu galopando campo acima.

– Por que vocês constroem casas assim? – perguntou Kai, antes de entrarem.

– Ah! – exclamou junto dum suspiro. – É nossa cultura. Não gostamos de destruir árvores. Elas têm vida, Kai. São seres vivos que nos dão lar, nos fazem companhia, nos dão de comer. Ninfas vivem nelas. Por que destruiríamos seu lar se podemos conviver? Elas sempre se mostraram bons espíritos do lar.

Mas Kai não gostou da resposta. Lembrou de como os vitanti destruíram a sequoia dos gorilas. Por que destruir sua moradia era correto, mas essas não? Parecia haver um impasse na forma deles de pensar. Ou será que consideravam os primatas tão ruins que até aquilo que tocavam se tornava impuro?

Ou será que Kai estava tão acostumado com o modo do homem de pensar que, inconscientemente, acabou fazendo um julgamento preconceituoso?

Ele espantou os pensamentos que o envolveram e seguiu seu anfitrião.

Assim que entrou, um forte odor penetrou-lhe as narinas.

Era uma mistura de especiarias que nunca sentiu antes, não conseguiu sequer distinguir.

Uma lufada de ar bateu contra seu rosto, o fazendo cerrar os olhos.

Quando tornou a enxergar melhor, uma pessoa verde os encarava. Mas ela não era como os outros vitanti. Sua pele e sua roupa eram toda verde, como se fossem uma só. E ela não andava... flutuava. Havia uma coroa de cidreira sobre sua cabeça, e seus cabelos eram trançados em espinhos verdes.

– Olá, Azalee. – Mael sorriu.

Ela abriu um berreiro e começou a chorar. Correu em direção à ele e se atirou em seus braços. Chorou tanto que soluçou.

– Eu... a-a-achei q-q-que v-v-você n-n-n-nunca voltaria j-j-j-jovem mestre.

– Calma... calma... – disse Mael, calmo e um sorriso largo no rosto.

E Kai se perguntou se tudo isso não podia ficar mais estranho.

Mas, agradecendo o momento mais constrangedor possível, aproveitou para esquadrinhar o lugar; buscar uma rota de fuga caso... caso algo desse errado. Não era porque queria, já tinha se tornado hábito.

Mas só ficou intrigado com o tamanho do interior da árvore. Parecia ser bem maior do que do lado de fora; o corredor de entrada tinha três vãos: uma para o lado esquerdo, uma para o lado direito e uma ao final deste corredor. As paredes eram de um tom claro, que permitia ficar mais iluminado à entrada do sol.

Depois que Azalee se acalmou e os rapazes foram obrigados a tirar suas botas, ela os levou pela porta da direita. Kai deu uma breve olhada por cima do ombro em direção ao vão da esquerda, mas havia uma porta.

O interior da sala por qual entraram era muito bonito: com uma mesa grande e redonda de tampo de mogno e várias cadeiras de espaldar reto. Estantes e sofás permeavam o lugar, bem como quadros pintados de pessoas muito estranhas. Eles seguiram mais um pouco e subiram uma escada em espiral.

Kai tornou a se espantar. Não sabia quando seu estoque de surpresa ia acabar e, àquela altura, duvidava que mais algo fosse capaz de lhe tirar o ar além da aura de vitanti arrogantes.

Mas o espaço era lindo. Cheio de estantes contendo livros, de baixo a cima.

Numa extremidade, havia uma mesa retangular cheia de papéis e outros objetos. Uma cadeira acolchoada vazia e um imenso vitral atrás desta, com vista para o campo.

Uma outra escada lateral levava à um vão que, de relance, Kai notou a existência de mais livros. Mael não se demorou e logo subiu a outra escada.

Ao dispensar Azalee, lhe pediu que trouxesse xícaras de lute com malte.

No compartimento de cima havia dois sofás grandes e duas poltronas de frente para um outro vitral com uma porta redonda feita na própria parede.

Uma das poltronas estava ocupada por um sujeito velho de pele pervinca, barba espessa e branca. Usava óculos redondos e uma roupa mais casual: um conjunto de robes largos e cinzentos. Seus braços eram cheios de tatuagens e uma pulseira de contas cintilava no braço esquerdo.

Lia um livro quando ergueu o olhar cinzento e revolto.

– O bom filho a casa torna – disse. Encarou Kai e seus olhos cinzentos pareceram captar sua alma.

– É o que dizem – concordou Mael, indo até Neru’dian e se abaixando sobre um joelho. – Retorno para casa, pai.

– Que os plínios o consagrem – disse Neru’dian, tocando o ombro do rapaz.

Enquanto Mael se levantava e abraçava o pai, Kai parecia estático. Fazia o possível para não transparecer, mas na sua cabeça vários pontos se ligavam.

Finalmente tinha percebido de onde vinha a sensação que Mael passava; e isso era estranho. Como duas pessoas podiam ser tão parecidas?

– Encontrei Kai durante meu retorno. Ilywd causava alvoroço outra vez – Mael deixou o corpo afundar na outra poltrona e colocou uma perna sobre a outra.

– Bom, os jovens tendem a ser um tanto arredios, você bem sabe – Neru’dian lançou um olhar cinzento e penetrante para Kai. Se sentou lentamente e fez o mesmo movimento do filho. – Como vão os tessaya?

– Ah – Mael suspirou. – O senhor sabe, como sempre causando problemas entre si. Mas N’gollo tem pedido trégua. São um povo muito orgulhoso.

– E com os mudanti, como vão?

– Tenho tido concílios com o caudilho deles, mas o senhor sabe... tendem a se irritar facilmente. Acha que eu deveria levar Oren na próxima vez? O senhor sabe, por ser o povo dele...

– Não – Neru’dian finalmente fechou o livro e pousou em cima da mesinha ao lado. – Não acho que seja necessário. Oren ainda luta muito contra o próprio gênio. Leva-lo só deixaria tudo pior. Continue como está. – Ele parou por um segundo, como se escolhesse as palavras certas. – Não precisa fazer dessa a missão de sua vida, filho. Muitos Eblomdrude tentaram no passado, e muitos tentarão no futuro... você não será o primeiro nem o último.

– Eu sei, é só que... – ele suspirou e olhou de volta para Kai; o rapaz ainda estava de pé, lhes encarando. – Venha, Kai. Eu lhe disse que queria conversar.

Kai se aproximou e sentou no sofá.

– Pensei que já tínhamos conversado...

– Ah, não. Aquilo foi só conversa jogada fora.

Longos minutos se passaram e Kai pigarreou.

– Você não me disse que seu pai era... bem, era o Neru’dian.

– Oh – Neru’dian riu sob a espessa barba. – Não precisa me chamar disso, Kai. Este é apenas um título. Pode me chamar apenas de senhor ou Abwn.

– Ah – Kai piscou, percebendo sua confusão. 

– Bom, como eu ia dizendo: não falei sobre esse fato porque não tive muita chance, sabe. – Mael piscou e sorriu quando Azalee apareceu no topo da escada com um sorriso igualmente amplo, trazendo uma jarra com três xícaras.

Parece que essas pessoas gostavam bastante de sorrir.

Ela se demorou mais do que deveria – estava absorta em dar beijinhos e choramingar sobre Mael –, mas, quando finalmente se foi, ele continuou.

– Bom, acabamos conversando sobre outras coisas. Você devia ter visto como Kai aguentou diante a aura de Ilywd, pai. – Ele ficou empolgado e abriu um novo sorriso para Kai. – Sério, você devia ser um baita manipulador de mana antes de... bem, antes de ter seu núcleo quebrado.

Um nó se formou na garganta de Kai.

– Como sabe disso? – Perguntou, olhando de filho para pai.

– O pai me disse em carta... espero que não tenha sido incômodo pra você.

– Não foi – Kai limpou a garganta. – Mas a questão é: como? Como você sabia que eu tenho um núcleo quebrado? Como seu pai saberia minha condição? Eu não contei pra ninguém exceto...

E se lembrou vagamente de ter falado para Fioled a fim de que a garota ficasse quieta. Então foi isso.

– Espero que não fique bravo com Fioled, Kai. Ela é uma menina boa e me escreve em certas ocasiões... – Abwn bebericou de sua xícara. – Todos necessitam de ajuda. E ela principalmente. Depois de quase ter o mesmo fim que a melhor amiga.

Kai ergueu o olhar.

– Como assim?

– Há mais ou menos um mês a melhor amiga de Fioled, Raira do clã Mollis, desapareceu. Fioled, muito preocupada com a amiga, saiu em sua busca, mas também desapareceu. Descobrimos depois que o sumiço de Fioled estava ligado à tribo dos quatro-patas. Acredito que o de Raira também...

A mente de Kai fez um leve CLIC.

Ele se lembrou de Hivchatt comentar sobre ter visto uma mocinha de pele roxa assim que chegou na árvore dos gorilas. E se aquela fosse Raira? Se ela tinha sido levada e não retornou... então talvez tivera tido o mesmo fim dos outros. Nunca saberiam, afinal. Para Kai não passava de especulação. O mesmo valia para Abwn e os outros.

– Aquela pira de ontem à noite...

– Sim – Abwn bebericou de seu chá. – Nosso modo de dizer adeus. É mais fácil para os vitanti; um mês é muito tempo, principalmente para uma garota que nunca foi guiada nos treinos para enfrentar os perigos fora do Reino da Orquídea. Se ela não tiver sido pega por Pele-pétrea, foi pega por alguma outra criatura da floresta de Bulogg que não tem nada a ver com isso.

Kai assentiu. Tomou um gole do tal lute de malte; o gosto era bom, meio que uma mistura de vodca, café e manteiga. Mesmo o maior gole de cerveja não tiraria o gosto amargo da dura verdade sobre aquele lugar.

Era triste saber que alguém daquele povo morreu como Hivchatt. E sim, agora ele tinha total certeza que a pessoa que o homem-gato viu era Raira. Tinha de ser.

– E foi bom que tenha vindo, Kai – Abwn respirou, deixando o assunto para trás. – Uma vez que eu tenha de lhe perguntar: qual seu propósito?

Ele piscou, não entendia o que aquilo poderia significar.

Poderia parecer uma pergunta simples. Mas, o modo como Abwn perguntara, o tom de voz, o senso que lhe direcionara... Kai sabia que não pura e simplesmente algo relacionado a planos e passos para o futuro. A simples e boa preparação

Mael, por sua vez, entendeu a pergunta do pai.

– O Reino da Orquídea é o lar dos vitanti, Kai. Somente nosso povo e os fênices – considerados uma raça igual à dos dragões, pode entrar aqui. Sabe por quê?

Ele negou.

– Porque é o que Bulogg quer. – Mael respondeu.

– Certo... o deus que protege essa floresta, não é?

– Correto, mas errado em um ponto – O vitanti ergueu o indicador.

– Que seria...?

– Bulogg não é um deus, Kai. Não existem deuses. Não no plural.

– Mas Fioled disse...

– Fioled é jovem, ainda não entendeu a razão. Alguns tendem a seguir por esse caminho, mas acho que ela vai descobrir logo, logo.

– Então...

– Bulogg é nosso protetor, Kai. E não somente desse reino, mas de toda a floresta. É por isso que o ar lá fora é denso, porque deve servir de alerta para quem vem de fora. E, por fora, me refiro ao território do homem.  

– Então se Bulogg é só o protetor, quem é o seu deus?

– Ele se denomina Eteyow. Bulogg protege um povo que foi tocado pelo plano, que recebeu a dádiva de ter seu próprio território. Bem como os elfos, anãos, dragões, aasimar... Ele é o criador de tudo e todos. E existem outros protetores. Bulogg é apenas um desses. – Mael concluiu.

– Mas o que isso tem a ver comigo?

– Bulogg não permite que adentrem no território em que ele escolheu para seus filhos. Aqueles que tentam, são incinerados. Se você sair ao redor do mundo, encontrará organizações que são fiéis a protetores assim.

– Mas por que eu estou aqui?

– Não é óbvio? Bulogg permitiu. Somente aqueles que necessitam de ajuda entram nesses reinos, Kai. Nós, da floresta de Bulogg, somos os únicos a receber tal dádiva de proteção. Não temos nenhum apreço que move as outras raças. Somos um povo pacifico que luta quando tem de lutar.

“Você deve ter notado que alguns de nós tem opiniões pressurosas que tendem para o mal quanto a você – continuou. – Mas isso é apenas o medo. Medo de que você seja igual sua raça. Mas eles não entendem, Kai, que você foi julgado assim que passou pela entrada. Eles pensavam que qualquer um que não o nosso povo que tentasse entrar aqui, seria incinerado. Estavam errados. Por isso não diferenciam Bulogg como protetor ou criador. Mas aqueles que sabem, que viram você em nossos territórios, sabem que recebeu uma chance.”

Abwn apenas escutava, olhando Kai por cima dos óculos com aqueles olhos cinzentos. Alguns minutos se passaram.

– Então você está praticamente me dizendo que sua raça é perfeita? Seria hipocrisia demais.

– Não, Kai, minha raça não é perfeita, nenhuma é. Só estou dizendo que aquilo que move as outras raças, não nos é querido.

– Apesar disso, neste momento, você busca a reconciliação de sua raça. Me diga: com o que isso se parece?

– Que nosso medo de ser como os outros é tão grande que acabamos sendo iguais. Estamos em guerra contra os quatro-patas, mas isso me entristece porque mormente deveríamos coexistir. E esse é o pecado dos vitanti: pensarem que por não ter os mesmos ideais das outras raças, somos perfeitos. Não somos.

– Então por que somente vocês podem continuar vivendo aqui?

– Porque apesar disso tudo, não queremos um lugar só para nós. Vivemos aqui com os fênices, que se equiparam aos dragões. Estamos compelidos em trazer de volta os vitanti perdidos, aqueles que há eras nos rejeitaram. É isso que acredito.

É isso que quer acreditar, Kai pensou.

– Somos orgulhosos, Kai, eis o nosso pecado – Abwn falou. – Arrogância nos invade como uma tormenta; a ideia de ser o único povo protegido por um protetor é vista como uma realização, símbolo de orgulho, para o mal ou para o bem. Mas somos falhos; temos lapsos de memória. Odiamos aqueles que nos deram vida, nossos progenitores.

O rapaz ficou olhando o chão, o silêncio flutuando pelo lugar. Ainda assim havia certa hipocrisia, ele sabia.

– Então é verdade? Vocês são descendentes da raça humana?

– Os primeiros de nós eram nômades. Pessoas que buscavam a paz – Abwn suspirou, amargurado. – Mas nosso mal foi querer ser amigo de todos. Então uma dezena de nós se separou do resto. Viemos à essa floresta, o lar de um Protetor... nossos ancestrais estavam à beira da morte, entende? Bulogg nos deu uma chance... Reviveu-nos... Os Vitanti de muitas cores.

Kai ficou olhando para o chão, pensando sobre aquela história.

– Bulogg te deu a chance de recomeçar, Kai – disse Mael. – Se está aqui, se Fioled fez questão de você em nosso lar, é porque foi usada por Bulogg ou por nosso criador como um meio para nos dizer: ajudem-no.

– E como podem ter tanta certeza disso? Como sabem que não é só um mito?

– Porquê de milhares de pessoas que tentaram, somente três conseguiram passar por nossas defesas – Mael bebericou de seu chá. – Todos obtiveram a segunda chance. Estavam perdidos, sozinhos. E cada um foi essencial para a evolução de seu povo.

– Mas...

– É por isso que quero saber, Kai Stone: qual o seu propósito?

Ele piscou e respirou fundo. Não sabia como aquelas pessoas poderiam ajuda-lo. Toda essa conversa era muito suspeita; por outro lado, surgira uma oportunidade de ouro para ele. Se era como Mael vinha dizendo, então ele tinha a chance de recomeçar, seja lá como fosse a forma que o ajudariam.

A resposta estava na ponta de sua língua. Mas será que o ajudariam mesmo? Era como ele mesmo tinha dito: estava no cerne do humano a ganância por poder. Não era diferente aqui. Ele procurava, mais do que nunca, uma forma de ser forte. De abalar o mundo. E nada o movia: nada moral, nada genuíno.

Não queria salvar ninguém, nem tinha família para isso. O que lhe movia era apenas a vontade de ser grande, de ser forte. Ter poder. E se um ser como Bulogg tivesse se enganado? Como poderia se enganar a respeito dele? Sua história não mentia.

– Eu quero ser poderoso – falou. – Quero ser forte, não ser impotente. Ter a chance de me proteger de novo. Não tenho a moral de vocês, essa vontade firme de proteger alguém querido. Eu sou órfão, veja bem. Mas também não tenho essa vontade de machucar os outros. Mas quero poder, quero ser forte. Voltar a sonhar com aquilo que sempre sonhei: poder rivalizar com os maiores de todo o mundo.

Abwn sorriu, os olhos chamegando por trás dos óculos. Que segredos será que ele escondia?

Mael, que estivera bebericando seu chá, suspirou.

– O caminho será difícil, Kai. Mas você é forte, percebi desde o momento em que bati o olho – ele se levantou e olhou de Abwn para Kai. – Pois bem. Te tornarei forte, Kai Stone. Eu serei seu professor.



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