Volume 1
Capítulo 9: O REINO DE TIR'TEGEIRIAN
Quando o sol despontou no horizonte, Kai já estava com as esperanças renovadas.
Era estranho ter passado por tanta coisa em pouco tempo.
Houvera perdido seu núcleo, ido embora, sido sequestrado e feito de saco de pancada por um imenso e psicopata gorila cinza logo em seguida que, de forma até que fácil, morreu em segundos pra uma raça violeta que ele sequer cogitou a existência.
E agora, olhando tantos deles juntos, duvidava que pudesse ser um sonho.
O único rosto por quem se afeiçoara foi o de Fioled, que, à exemplo da gaiola, permaneceu ao seu lado.
Agora, com alguns olhos multicoloridos sobre si, era como se um arco-íris tivesse vomitado.
Ou será que era como se um unicórnio tivesse defecado? Àquela altura, o simples pensamento de um cavalo de dois metros – segundo o mito – com chifre estivesse por aí ejetando versões enormes de trolls foi... nada revigorante.
Para piorar, Fioled teve de entrar em mais uma discussão com os outros cinco vitanti que iam junto deles naquela espécie de comboio aéreo.
Ele parou pra olhar melhor, é claro. As aves eram enormes fênices, exceto que a cor de seu pelo não era vermelho e sim, magenta.
Já havia lido sobre eles também.
Mas, ao que parece, foram taxados erroneamente. Isso porque os livros, salvo os redigidos por poucos magos considerados hereges, denotavam a firme posição de que fênices eram violentos e que, num passado distante, haviam se retirado para a terra sagrada de onde eles e os dragões haviam vindo.
Mas é óbvio que isso era mentira. Um enorme e – não surpreendente – erro.
A respeito do que se podia dizer de sua aparência, sua calda exalava um ar de solene calmaria.
No entanto, não existia uma possibilidade onde se pudesse ficar calmo. Não com a aura daqueles vitanti apontadas diretamente para si o tempo inteiro.
Ou, ainda para se manter a boa memória, o fato dele não estar em solo firme.
Não... tinha de manter sua atenção em coisa que não a altura. Encontrou, por fim, sua distração ao observar as feições dos vitanti.
Eles eram parcialmente iguais naquilo que se podia dizer sobre tonalidade.
Mas conseguiam ser diferentes dentre seu próprio povo – isso se considerasse que havia mais deles por aí.
Daqueles que Kai observou bem, pôde distinguir olhos azuis ou verdes e cabelos negros ou marrons.
Todos, exceto por Fioled e o outro rapaz, tinham tatuagens de verdade ao longo do corpo. Usavam um conjunto de roupas bem... indígenas.
Em determinado ponto, começaram a usar a língua que Kai estava acostumado. Era certo que a ideia fora lhe ofender.
– O que dirá Neru’dian quando chegarmos com esse macaco pelado lá? – indagou o rapaz que obtinha mera semelhança com Fioled. – Ele não vai gostar nada. Nem ele nem ashiri.
– Ela vai nos ouvir, Ómra – suspirou Fioled. – Aliás, os dois irão.
– Hã... – Kai disse, um tanto irritado. – Eu ainda estou aqui.
– Humph, o curoh’nekedoh ainda nos dirige a palavra? – indagou o vitanti mais perto dele, pra ninguém em especial.
– Se não fosse pelo curoh’nekedoh, você nem existiria, excremento de unicórnio. – Declarou Kai, não entendendo muito bem o significado de suas palavras.
Todos se viraram para ele, uma crescente pressão sufocando-o, mas ele manteve seus olhares. Fioled falou, entretanto.
– Querem deixar de ser tão imbecis? Escondam sua manti, idiotas. Ainda temos um longo caminho a percorrer.
E o resto do caminho não foi nada agradável para ele, uma vez que Fioled lançava olhares raivosos e cautelosos em sua direção.
Só foram iniciar sua descida ao pôr do Sol.
Ele esteve se perguntando por um longo tempo a extensão que a floresta de Bulogg poderia ter. Era evidente que outras raças viviam ali. Tanto selvagens quanto civilizadas.
Então o comboio se agrupou, parecendo aves se juntando para iniciar a migração.
Formaram uma seta muito bem alinhada e seguiram adiante; manejando, dando curvas acentuadas e bem coreografadas.
Quase dez minutos depois, viraram em direção à uma sequoia baixa, com um tronco largo e amarronzado. As árvores foram abrindo vaga, como uma passarela viva. Então a velocidade aumentou.
Kai estava prestes a gritar que iriam bater com tudo quando um buraco redondo apareceu à distância, no centro da árvore.
Foi crescendo à medida que se aproximavam. Cresceu, cresceu e cresceu, até que ficou grande o suficiente para que três fênices transportando 5 vitanti planassem lado a lado.
Kai olhou para trás uma fração de segundos antes do buraco se fechar.
Entrementes, o túnel foi se afunilando e inclinando cada vez mais.
Descendo e descendo como se não houvesse amanhã.
Ao longo da passagem, mais buracos iam aparecendo nos tetos e paredes.
Mesmo sem um núcleo para manter mana, Kai sentiu sua energia, a vida emanando.
Até que o túnel afunilou tanto que os fênices ficaram uma atrás da outra. Ninguém disse nada, exceto Fioled, que discutia baixo e compulsivamente com o careca.
De repente, o túnel tornou-se plano, as aves não mais indo em velocidade.
Dali a pouco, jatos de ar jorravam de dutos no solo muito abaixo. Kai sentiu cheiro de ervas, raízes e outros tipos de plantas. Então um pontinho bem no final do túnel apareceu. Brilhava fraco.
– A hora é agora – falou o vitanti careca. – Se for do desejo de Bulogg, você será aceito. Senão, morrerá com uma vã tentativa.
Isso alarmou os sentidos de Kai. Ele não queria morrer, ia sair de uma cilada para outra? Prestes a contestar, seus olhos encontraram os de Fioled, então olhou para sua boca.
– Confie em mim. – Ela gesticulou.
Ele assentiu, não sabendo de onde vinha tamanha confiança.
A boca do túnel foi se alongando mais e mais. Até que se tornou enorme até mesmo para um gigante – se é que existiam.
Eles passaram calmamente pela entrada e, alarmado, Kai ficou à espera do pior. Não aconteceu.
Os rostos dos vitanti caíram em desagrado; o de Fioled, no entanto, se abriu num sorriso. Fora engraçado que, de todos eles, ela demonstrou ser justamente a mais legal.
Então um segundo torpor encheu o seu coração.
Havia uma imensidão vasta de natureza que ele não foi capaz de distinguir direito.
O lugar era como a parte de trás de uma montanha, entre falésias verdejantes; exceto que no lugar das pedras, haviam vários e vários vilarejos. Bem ao fundo, Kai viu uma árvore amarrotada com uma copa carmesim.
Dando uma olhada para trás, Kai viu que das paredes por onde ele e os outros saíram se alargava para os lados, com raízes suportando casas e casebres – milhares.
O teto parecia o céu de verdade, como se um sol artificial iluminasse tudo abaixo.
Haviam árvores e mais casinhas lá embaixo, que variavam em diversas cores.
Logo atrás da enorme árvore, um imenso rio banhava uma costa livre de perigos. Ele não sabia se aquilo tinha fim, nem sabia se aquilo era real. Só sabia que era... lindo.
Uma exclamação saiu de sua boca. Fioled o fitava.
– É lindo, não é? – Indagou ela.
– Sim... como... o que... qual o nome?
Ela sorriu.
– É Tir’Tegeirian, o lar dos vitanti.
Ele sorriu de volta e seus olhos se encontraram. Ela desviou o olhar, mas ele continuou a encarar, vendo como o vento batia em seus cabelos.
– Agora o levaremos até Neru’dian – falou o vitanti careca, interrompendo seus pensamentos.
– Oren... – Fioled ensaiou uma reprimenda.
Ele se virou para ela, carrancudo.
– Não me desafie mais do que já tem feito, Fioled. Minha cota de paciência já foi ultrapassada... Tudo será dito na presença dele. – Ele se virou para os outros três. – Sua missão está completa. Apresentarei o relatório ao Sínodo.
Os três assentiram e pularam da fênix. Kai observou sem muita surpresa enquanto as outras aves se separavam levando o resto do comboio vitanti.
Ele, Fioled, Ómra e aquele chamado Oren continuaram planando em direção à enorme sequoia de arbustos vermelhos.
Rapidamente chegaram lá e Kai se surpreendeu quando viu que tinha um tipo de arena de pouso. A fênix piou e um vitanti usando uma túnica azul de mangas longas se aproximou. Seu rosto não era pintado. Sua pele assumia um leve tom de acaju purpura, bem diferente da de Fioled e Ómra.
O pássaro pousou e abriu o bico.
Sem muita conversa, os três vitanti desceram também, Oren assumindo a liderança. Houve um murmúrio, várias exclamações, mas ninguém parou para falar nada.
Olhando de relance, Kai notou que eram direcionados para Fioled; ela, por sua vez, não deu nem vaia.
Passaram pela entrada arqueada. Tudo era feito de madeira e objetos práticos. Nada muito espalhafatoso. Ele também notou que as inscrições estavam no chão e nas paredes.
Um corredor com parede e teto abobadados cor de creme levou em várias direções, muitos vitanti parando para acenar.
Depois de virar em vários corredores, chegaram num onde portas duplas fechavam o túnel.
Oren se adiantou em passos rápidos e abriu-as, um baque oco.
Assim que Kai entrou no vão, bateu o olho na mesa de tampo oval. Do outro lado, uma janela dava vista para a cidade que eles acabaram de ver. Uma outra janela, do lado direito, dava vista para o imenso rio com pontinhos correndo para cima e para baixo.
Ele voltou a atenção para a mesa e fitou as cinco figuras que estavam ao redor da mesa.
– Fioled, filha de Cineáltas e Giglio do clã Echanti, retorna ao lar.
Um homem alto e robusto de ombros largos e uma barba cor de lama cruzou a sala e pegou a filha pelos ombros. Fitou bem seus olhos e, depois de alguns minutos, a soltou.
– Muito obrigado, Or. – Disse, apertando a mão de Oren. – Que os plínios o consagrem.
Encostaram a testa um no outro, Oren devolveu a saudação. Kai era um peixe fora d’agua.
Entrementes, uma mulher baixa e atarracada, com fortes traços no rosto púrpura, cruzou o caminho e abraçou a filha. Não disseram nada, ficaram chorando uma no ombro da outra.
Sentindo que alguém o olhava, Kai voltou sua atenção para a mesa. Um dos homens o encarava: roupas cinzas e braços cheios de tatuagens e joias. A pele em tom de pervinca. Tinha uma barba espessa e branca; era velho e, por trás dos óculos redondos, seus olhos cinzentos pareciam encarar a alma de Kai. Mas não havia maldade, ele logo soube.
– Ashiri... – disse Fioled, a voz trêmula – eu não...
Kai tomou uma nota mental: ashiri quer dizer mãe.
O velho sorriu – sorriso muito genuíno – e falou, a voz rouca.
– Vejo que traz mais do que apenas um extraviado de volta ao lar, pequeno Oren.
– Extraviado? – a mãe de Fioled a soltou e depois olhou para o velho. – Que quer dizer com isso? – ela tornou a encarar a filha, que perdeu toda a compostura.
De repente, ocorreu a Kai que ele não sabia como Fioled foi parar nas prisões dos gorilas. Tinha de perguntar depois.
– Acalme-se, Giglio – disse o velho. – Haverá tempo necessário para que botem a conversa em dia. Está dispensada deste conselho por ora – ele olhou por cima dos óculos – não vá muito longe desta vez, pequena Fioled.
Ela corou e assentiu. A família Echanti saiu da sala, Giglio e Cineáltas mal notando Kai. Pelo menos não tiveram a reação fervorosa que teve Oren e os outros. Ele captou um olhar firme de Fioled antes dela sair.
– Agora – disse o velho, fleumático. – Receio que tenhamos de conversar sobre o elefante na sala – ele olhou para Kai, que suprimiu a vontade de corar. Que diabos era isso?
– A menina Echanti insistiu que ele viesse, Neru’dian. Eu...
– Não tenha pressa, pequeno Oren. Acho que...
– Hã... – Kai disse, interrompendo. – Senhor Neruda... posso...
A aura da sala mudou e Kai tornou a enxergar aquela mana incolor que viu assolar a arena de Pele-pétrea. O ar de seus pulmões lutou para permanecer onde estava. Ele mesmo tombou para frente sob um joelho. Não conseguia falar, algo compelindo sua garganta...
– Não ouse se dirigir ao Neru’dian, macaco pelado.
– Receio que tenha de se acalmar, Oren Liberrabûn. – A voz de Neru’dian soou ao longo da sala, calma.
O clima foi ficando ameno até que baixou completamente. Kai odiava o fato de ser pego nessa briga intensa de mana e não poder revidar. Ficava maluco.
– Este conselho ficará bem sem sua presença por enquanto, Oren. Vá tirar alguns dias de folga, depois pode retornar com o relatório detalhado.
– Mas... – ele pensou em recusar, mas voltou atrás. – Sim, senhor.
Ele se virou e passou por Kai, batendo fortemente as portas.
Quando o rapaz finalmente se ergueu, a coloração voltando ao seu rosto, os outros nem pareciam ter se importado muito.
– Perdoe Oren. – Disse Neru’dian. – Venha, sente-se conosco. Não tomaremos muito de seu tempo, deve estar querendo descansar.
Kai não negou nem concordou; mas realmente estava tão cansado quanto faminto.
Contornando a mesa, ele deu uma olhada melhor nos outros dois rostos. Havia uma mulher de cabelos azuis e sua pele cor de fúcsia. Seus olhinhos eram verdes e graciosos. O outro tinha uma cabeleira volumosa e uma pele mais cor de lavanda. Seus olhos eram vermelhos e não tinha muita expressão.
– Estes são meus companheiros de longa data – disse, apontando para a mulher e depois para o homem. –, Athiná da linhagem Grokich e Ilygaid do clã de Odz. Fazemos parte do Sínodo, algo parecido com assembleia para seu povo.
Kai assentiu. Isso de assembleia não era muito comum em Neve Sempiterna; os homens se tratavam de um povo muito cético.
O velho ergueu as sobrancelhas, e Kai pensou que seus pensamentos tinham sido ouvidos.
– Hã... me chamo Kai...
Ilygaid se precipitou, piscando severamente.
– De que linhagem?
– Hein?
– Ah! – exclamou. – Então é de uma casa? Ou é de um clã?
– Acalme-se Il – disse Athiná, suspirando. – Lembre-se, Kai veio da cultura do homem, eles não têm o costume de usar tantos adjetivos.
– Às vezes esqueço que você é viciada pela história de outros povos – Ilygaid recostou na cadeira, suspirando.
– Eu fui criado por um homem chamado Siobhan Murphy, que me ensinou tudo o que sei. Mas atendo pelo nome de Kai Stone ou somente Kai.
– Entendo, entendo – disse Neru’dian, se recostando. – Diga, Kai Stone, qual propósito o traz aqui?
A pergunta de Neru’dian o deixou um tanto confuso. Ele é quem havia sido levado até ali, não existia propósito algum. Não que ele soubesse.
O velho vitanti suspirou e olhou ao redor, curioso. Deu um sorriso e fitou Kai novamente.
– Vejo que está tão confuso quanto nós, não é? Bom, conte-nos tudo sobre o que aconteceu na tribo de Pele-pétrea. Depois veremos o que pode ser feito.
Kai piscou e suspirou. Começou a contar tudo o que aconteceu.