Volume 2 – Arco 2: Fator B
Relatório 9: Parceiro
Dia 14 de Abril, 10:00 da manhã
O vermelho predominava nas paredes ao redor do detetive, paredes que se contorciam, sem ser possível dizer onde começava a pedra e terminava a carne. Mãos carbonizadas rastejavam para lhe alcançar, falhando eternamente.
No trono de tentáculos negros, lá estava aquela figura maldita. Atrás de si, o sorriso largo de seu bichinho de estimação fez com que as mãos recuassem e os gritos cessassem.
Você é tão fraco que me dá nojo.
A voz zombeteira de Yellow se colocava tão poderosa como sempre. O tom de alguém que sabia estar perdendo seu tempo, mas que não tinha nada melhor para fazer.
Só o fato de estar vivo até agora já é impressionante. Mas veja bem…
Inclinou-se para frente, suspirando um vapor flamejante.
Isso não é chato? Ser tão fraco. Se comparar com o inimigo, sua força é o mesmo que de uma formiga contra um elefante. Ridículo, não é? Acha que consegue ir mais longe sozinho?
A cabeça tombava de um lado para o outro. O que exatamente ele queria? Hector não conseguia perguntar, muito menos se mover, por mais que o sonho fosse tão real quanto a própria realidade.
O calor do lugar causava-lhe falta de ar, sem contar o suor que o desidratava mais a cada segundo.
Do teto, os tentáculos começaram a descer em direção ao investigador que, assim como em outra vez, se viu ser lentamente envolvido num casulo negro, enquanto era puxado para o topo.
Antes que fosse envolvido por completo na escuridão, Yellow encarou-o com um largo sorriso ansioso no rosto.
Você não acha que seria interessante fazer… um contrato?
E envolvido pelo rastejar dos tentáculos, o mundo se iluminou novamente.
***
— DES…!
Por pouco o grito não saiu. Estava no escritório de trabalho, capaz de ouvir Morgan reclamar do outro lado.
Esfregando os olhos, forçou a cabeça a parar de doer com a força de seu ódio e refletiu sobre o que aquele maldito havia dito. Um contrato? Com alguém que era, literalmente, o demônio em pessoa? Nem em sonhos! Hector podia até ser louco, mas não era um suicida.
— Fraco? Como ele ousa falar uma bosta dessas? — murmurou, enraivecido.
A raiva rapidamente converteu-se em ações, como de costume. Perder tempo era um conceito que sequer existia mais em seu vocabulário, ainda mais na situação atual que se encontrava. Fronteiras fechadas, pessoas derretendo, lírio púrpuro, demônios… As coisas escalaram gradualmente, mas numa velocidade considerável, e aquilo que o aguardava no restante do caminho começava a lhe perturbar.
“Eu dormi um dia inteiro? Porra! O que aconteceu nesse meio tempo?”
Mesmo que quisesse saber, o corpo agiu fora dos controles da própria mente, pegando o celular para enviar uma rápida mensagem. Ao fazer, levantou-se e foi até a porta da sala.
— Hã!? Hector, o que faz aqui, sua peste!? — Morgan saltou da cadeira.
— Não importa, eu já fiz tudo que queria, de qualquer forma.
Sentado à mesa, na frente do chefe, um rosto mais que familiar surpreendeu o detetive.
Yo~! O cumprimento foi leve e, como sempre, num tom descontraído. — E aí, parça, tudo sussa?
— Igor, você no meu trabalho? Desde quando se importa tanto comigo?
O tom sarcástico do cartola tirou uma falsa lágrima do colega. Ainda sentado, o atleta deu um largo sorriso radiante.
— Pelo jeito você tá legal, hehe! Eu vim aqui pra ver como você estava e também resolver… isso aqui. — Apontou para trás da cadeira com o polegar.
Hector inclinou o corpo, quase caindo ao se deparar com aquela pequena figura. Ali estava uma criança, um garotinho de pele negra e cabelo crespo de mesma cor. O olhar era baixo e o semblante inferior, mas não havia tristeza alguma ali. Ele apenas encarava o nada.
— Desde quando cê tem um filho?
— Não é meu. É um órfão que decidi colocar sob minha custódia, o nome dele é Albert. É uma longa história.
Uma em que o detetive mostrava não estar interessado. Não importava quem era aquele moleque, se fosse ter Igor como pai, então provavelmente ficaria bem. Além do mais, mesmo que fosse adotado, tinha certa semelhança com o rapaz. Seria difícil deduzir que não eram pai e filho legítimos.
Mas logo após aquela pequena surpresa, o atleta fez novamente a pergunta ansiosa de sempre. O Dia do Tarche estava se aproximando, e ele a todo custo queria trazer Hector consigo.
— Eu já falei, não tenho tempo pra essas besteira!
— Na verdade, tem sim — interrompeu Morgan. — Fiquei sabendo que conseguiu informações sobre o Caso Alamut e, mesmo assim, não avançou no seu caso atual. Não acha que devia tirar uma folga, moleque?
O chefe se preocupando? Isso sim era algo incomum. Normalmente a preocupação de alguém como ele estaria em quanto dinheiro ele conseguiu desviar em relação ao mês anterior.
O investigador rangeu os dentes, incapaz de negar o que o gordo havia dito. Tudo que havia adquirido até agora eram suposições e mais suposições. Toda a sua esperança era agora depositada no endereço que adquiriu por sorte.
Pensando nisso, manteve a cabeça erguida e seguiu até a porta da agência. — Vou pensar na sua ideia. O feriado é só no dia 28, ainda tenho tempo pra me organizar.
Seu amigo assentiu, Morgan suspirou e o garotinho levou um olhar curioso até o cartola. Albert, tinha algo nele que não era estranho. Bem, todos tinham algo estranho nos dias atuais, então um garoto não fazia diferença.
Até mais. Hector deu as costas e saiu, observado pelo rapazinho de forma curiosa.
Agora com os pés sobre a calçada e os olhos na avenida, o detetive conferiu o celular rapidamente. Foi respondido segundos depois, e aquele que requisitou já estava à caminho.
“Casa 839. Se eu estiver certo, vou conseguir pelo menos uma informação nova naquele lugar.”
Sua atenção então foi para um certo alguém. Sentado e encostado na parede logo à esquina deste mesmo quarteirão, estava o mendigo.
Como sempre, alguns gatos de rua o cercavam, alguns dormindo, outros comendo as marmitas que o homem recebia e outros observando o movimento dos carros. A cabeça do homem se mantinha baixa, e por mais que a máscara estivesse ali, era notável algo como tédio em sua postura.
— Hector! Che-cheguei…
Com a mesma apreensão de sempre ao encontrar com este louco, Lucas analisou os arredores com pressa.
— Para o que me chamou? Esqueceu do que eu disse? Tem um maluco perseguindo gente que nem eu por aí!
— Tô ligado, mas não ligo. Agora vem, não temos tempo pra perder aqui.
O açougueiro nem teve tempo para questionar. Hector entrou em um carro que parecia aleatório, surpreendendo o rapaz ao ligar o veículo.
— Vo-Você sabe dirigir?
— Sei, mas o carro é alugado. Nunca tive motivos pra comprar um, agora entra de uma vez, desgraça!
Sem alternativas, obedeceu, mas falou assim que encontrou a brecha entre os resmungos do detetive.
— Porque me chamou tão de repente?
— Nós vamos visitar uma certa casa. Eu queria ter você comigo pra testar um negócio. Não se preocupe, eu te protejo.
Suor frio começou a escorrer pela testa do rapaz, e quando as portas do carro trancaram, sentiu seu destino ser definido como apenas um: A morte.
Clank! Ao fechar da porta do carro e dado o início da corrida, eles saíram de Romantusk e adentraram a cidade com destino à Zona Norte. Assim como era de se esperar, Lucas tentou novamente conseguir respostas.
Para onde estavam indo? O que iriam fazer? Hector, por outro lado, não parecia a fim de conversar. O rosto estava mais torcido que o normal e os olhos focados na rua além do visor do carro.
Eles pararam no sinaleiro, onde Hector fechou as janelas do veículo e, coçando o queixo, iniciou:
— Vamos pra uma casa, e eu acredito que o morador também seja um usuário de Fator B. Gege! falando assim parece até um tipo de droga.
O QUEE!?? A alma de Lucas saltou para fora do corpo. Visitar alguém com Fator B, assim, como se não fosse nada!?
— Seu imbecil!! Você tem a mínima ideia do quão perigoso pode ser alguém com esse tipo de habilidade?
— Não tenho nenhuma noção, já que um certo alguém — olhou para Lucas — não me contou nada específico no interrogatório.
— Mesmo assim! Você não tem nenhuma habilidade! Fazer isso é a mesma coisa que contratar um assassino pra si mesmo!
Lucas continuou falando e falando sem parar em tom desesperado. No entanto, por mais que tentasse convencê-lo, não importava a forma, Hector sempre respondia com um riso sem graça.
— Risco de morte? Então não tem nenhuma diferença pra minha vida cotidiana.
O açougueiro se calou, incapaz até de ponderar a partir dali. Maluco, foi tudo que conseguiu sussurrar antes de virar o rosto para a janela.
Assim, o caminho se seguiu, em direção a tal casa 839, onde o próximo interrogado residia.
.
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Enquanto a dupla nada dinâmica servia de inspiração para a 11° continuação de Velozes e Multados, Lívia caminhava junto de Isaac alegremente, ainda que o sol os atacasse ferozmente.
— Eu sinto muito por tudo que aconteceu, eu devia ter escolhido outro lugar para irmos.
— Não, tudo bem! Não tinha como você saber sobre meus medos, eu é quem devia ter te avisado antes. Já fico feliz de ver que alguém tão dedicada quanto você é uma médica, me dá até vontade de passar no hospital.
Esta era a última coisa que um médico gostaria de ouvir, mas valeu a intenção. Ela desviou o olhar por um instante e, ainda assolada por algumas dúvidas, decidiu perguntar.
— Ontem, durante a excursão… tem algum motivo especial pra você sentir aquela atração pelos monumentos históricos?
O garoto gaguejou, sentindo que no primeiro passo em falso seu punho voaria instantaneamente em direção ao seu rosto. Controlando a língua com a força de várias pessoas, respondeu:
— Interesse mesmo. Eu sou fascinado pela história do mundo. Aliás, sabia que antigamente as pessoas tentavam encontrar outras terras no além mar? Eles não sabiam que Solum era o único continente do mundo. Muito massa, né?
Num riso satisfeito, Lívia concordou com a cabeça. Se o rapaz não queria conversar, tudo bem. Entretanto, uma sensação ainda não saía de sua cabeça. No Arco de Pedra, pouco antes de irem embora, algo parecia sussurrar em seu ouvido, uma voz que era sobrepujada por incontáveis outras. Ordens, pedidos, clamores, tudo estava misturado ali.
Por mais perturbador que tivesse sido, era capaz de se esquecer do ocorrido ao olhar para o sorriso despreocupado do rapaz.
— Ah, minha casa! Bem, acho que a gente se despede aqui.
O garoto apontou para uma casinha simples. Apenas um andar. As paredes eram azuis com detalhes brancos nas bordas. No centro da estrutura estava uma porta de carvalho, com uma janela de cada lado tapada por cortinas densas e, na fachada, um pequeno jardim que misturava os mais variados tipos e cores de flores.
— Bem simpática. Eu te visito qualquer dia, agora eu preciso ir me preparar pro trabalho. Vou pegar o turno da noite hoje.
— Tranquilo, ser médica deve ser bem tenso, hihi!
Ela retribuiu o riso, enfim se despedindo com um rápido aceno de mão. Isaac fitou-a desaparecer pela rua com um largo sorriso no rosto, só indo em direção à porta da casa quando a jovem sumiu de vista.
Antes de abrir a porta, conferiu o movimento e entrou, rápido o bastante para não ser avistado por alguém que surgiu em seguida.
Derrapando na esquina, o carro dirigido por Hector surgiu chamando todas as atenções, e sequer um som alto possuía.
Ao estacionar bruscamente e quase arremessar Lucas para fora, desceu do veículo e se deparou exatamente com o que queria.
— É aqui, Casa 839. Certo! Sem perca de tempo! Simbôra, garoto.
Com passadas ligeiras, invadiu o gramado e foi em direção à entrada. O açougueiro desceu em seguida, segurando a ânsia de vômito e se esforçando para que as pernas parassem de tremer.
— Azul… co-cor bonita.
Hector aguardou pelo humano rastejante que chamava de companheiro na situação se aproximar, e quando esse o fez, não pensou duas vezes antes de levar o punho contra a porta como se tentasse invadir o local.
— Boa tarde! Detetive Hector Wanderlust! Eu gostaria de fazer algumas perguntas!
“Cacete… Espero que o único morto aqui seja esse doido!”
Lucas era incapaz de controlar os batimentos velozes de seu coração, mas esta exaltação foi arremessada para longe num único clik da maçaneta. Diferente! Muito diferente do que imaginava!
A figura que se revelou era menor que os dois. Vestia uma curta regata branca e um short jeans que alcançava apenas as largas coxas, que sozinhas destacavam todas as outras curvas do corpo. A pele branca, os olhos azuis e o cabelo negro lembraram Hector de Lívia. Eram quase idênticas!
Com um sorriso nada temeroso e até convidativo, a jovem se apresentou.
— Boa tarde! Posso ajudar com alguma coisa?
Boletim de ocorrência, 27 de junho de 2001, 12:47 da tarde
[…]
Na Rua da Maritaca, número 839, foi relatada atividade suspeita de entrada e saída de diversos indivíduos. No total, foram contados cerca de 47 (quarenta e sete) rostos diferentes, sendo que um indivíduo só saía da casa após outro entrar, nunca sendo vistos juntos. Foram relatadas brigas constantes e sons de disparo com arma de fogo.
[…]
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