Volume 2 – Arco 2: Fator B
Relatório 10: Suspeitos
Diante de seus olhos, o suspeito que menos esperava encontrar. A garota parecida com Lívia surpreendeu tanto Hector quanto Lucas. Melissa, esse era o seu nome.
— Eu estou aqui pra fazer algumas perguntas. Preciso que me deixe entrar.
O olhar da jovem passeou pelas duas figuras. Hector trajava o mesmo figurino de sempre, combinando o preto e os detalhes verdes da roupa, enquanto Lucas parecia apenas um cidadão comum que nem sabia direito onde estava.
Ela sorriu e tombou a cabeça para o lado. — Pode entrar, eu acabei de fazer café.
O agente praticamente invadiu a residência, não disfarçando ao se aproximar dos móveis para os analisar.
“Que bagunça… Como que essa garota vive aqui? Será que é uma acumuladora?”
Haviam tranqueiras espalhadas por todo canto. Desde casinhas de boneca, guitarras até equipamento para diversos esportes… Era como uma loja com itens gerais. Fosse perecíveis ou não, aquele lugar provavelmente teria o que você estava procurando.
“Nenhum rato ou barata, pelo jeito ela mantém o local limpo… de certa forma.”
A entrada resultava numa pequena sala de estar. À esquerda, duas portas brancas trancadas. Seguindo pela direita, um estreito corredor que resultava na cozinha apertada.
Melissa não sabia para onde olhar, diferente de Hector, que fitava com atenção cada canto dos cômodos. Quando terminou sua inspeção, o cartola fitou a mulher.
— Mora sozinha? — perguntou com o olhar vidrado.
— Eu moro com mais dois colegas… tecnicamente.
— “Tecnicamente”? O que quer dizer com isso? Você aluga a casa? Estudante, por acaso?
— Não, não é isso tipo de companhia.
— Trabalha com programa, então?
O rosto dela se avermelhou. Não, não, não! Balançando os braços freneticamente, cogitou até estapear o rapaz. Se segurando, ela deu as costas e chamou a dupla para a cozinha.
Era mais apertado do que parecia. A mesa circular ocupava mais da metade do espaço, e somado com as tranqueiras espalhadas em todo o canto, se mover ali era como tentar encontrar um santo no inferno.
Eles sentaram à mesa, com Lucas indeciso sobre quem deveria ficar mais afastado. Melissa encolheu no banco, intimidada pela faceta rabugenta de Hector. Esse, por sua vez, não desviava a atenção da garota por nada — quase nem piscava.
Com as xícaras cheias e a garrafa de café no centro da mesa, o investigador quebrou o silêncio. — Quem são seus colegas?
— Oi...? Eles são pessoas normais, ué — disse num tom brincalhão. — Eu não viveria com eles se fossem algum tipo de malucos.
— Certo, mas onde eles estão? É isso que eu quero saber.
— Os meus colegas… como eu explico isso? Eles meio que tem hora pra aparecer, sabe?
— Então você é realmente uma garota de programa.
— NÃO SOU NÃO, PORRA! É UMA SITUAÇÃO COMPLICADA, SÓ ISSO!
Ele resmungou. Acreditava saber a razão pela qual a garota tanto hesitava, e para confirmar sua suposição, fitou Lucas por um instante. O rapaz vagava a atenção pelo cômodo, procurando algo que desconhecia. Em seu rosto, a incerteza estava estampada.
Com um gole do café amargo, Hector teve certeza.
“Ela está fingindo não saber sobre o Fator B. Será que eu abordo de forma indireta? Nah! Não tenho tempo pra perder desse jeito. Ainda assim…”
Algo no semblante de seu parceiro trazia à tona a atmosfera densa que preenchia o local. Ele girava a cabeça constantemente, sequer tinha tocado no café até agora, como se tentasse perseguir um inimigo invisível ou veloz demais.
Por algumas vezes, Hector imitou-o, mas seu olhar nada era capaz de encontrar. Enquanto isso, Melissa começava a apresentar algumas coceiras.
Ainda que não soubesse o que lhe forçava a tomar tal atitude, o investigador segurou-se da maneira que podia.
— Sua família não tinha ninguém que parecia ter… um dom peculiar?
Ela travou por um instante. Sério? Essa foi a forma mais indireta que ele havia encontrado?
A garota cruzou as pernas. Os olhos azuis ficaram fixos na mesa de mármore e um pouco de suor nervoso começou a escorrer por sua testa.
Ninguém. Uma resposta mais do que esperada pelo detetive. Como proceder? Essa era a verdadeira questão no momento. Afinal, o que era aquele sentimento?
Lucas notou esta rara hesitação e, para a surpresa de Hector, não demorou para reagir. Seu olhar finalmente focou em um ponto só, a garota. Com um longo suspiro, ele soltou a voz.
— Se-senhorita Melissa, nós estamos aqui pelo seu próprio bem. Sei que é difícil acreditar — forçou um aperto de mão —, mas precisamos que compartilhe com a gente aquilo que tanto lhe incomoda.
Hector não foi capaz de ver a razão, mas o rosto da garota se transformou para o outro. Ela vagou os olhos arregalados entre sua mão e o rosto de Lucas, cujo agora mostrava uma concentração bem maior que de normalmente.
De fato! Ele havia trabalhado com algo parecido com reportagem! Uma habilidade mínima com conversação seria o mínimo a se esperar, ainda assim, era surpreendente ver tudo ao vivo — principalmente após a primeira impressão com o, atualmente, açougueiro.
O cartola queria, mas evitou se intrometer. A atmosfera que antes havia sentido desapareceu de repente, e as palavras anteriores de Yellow voltaram à sua mente. Inútil, tal era sua alcunha atual.
Com o baixar de sua cabeça, se pôs a fazer o único papel para o qual se demonstrava útil ali. Vendo que Hector nada mais falaria, Melissa pareceu mais confortável, tanto que bebericou o café e ajeitou a postura.
— Você perguntou sobre minha família, não é?
Lucas retornou ao seu assento. Assentindo com a cabeça, fitou o detetive por um instante. Seu rosto não era visível, escondido pelo chapéu.
— Eu não me lembro da minha família — ela continuou —, muito menos de algum conhecido. Tudo que tenho na memória são alguns sonhos. Na verdade, talvez pesadelos seja um termo melhor.
Um curto salto imperceptível veio de Hector. Sonhos e pesadelos, não tinha como o assunto ser de seu maior interesse. Bastava uma característica para saber que estava na direção certa.
Melissa contava com calma, ao mesmo tempo que parecia ter uma faca apontada para sua garganta. Disse que, em tais pesadelos, vivia no corpo de outras pessoas, num tempo que desconhecia, “mesmo que eu não acredite em reencarnação”, acrescentou com um riso sem graça.
— Outras pessoas? Tem alguma coisa que gostaria de especificar sobre esses sonhos? Algo em comum entre eles, talvez.
O rosto da mulher ganhou uma mescla entre felicidade e ainda mais hesitação. Por um lado, alguém finalmente parecia saber como ela se sentia, por outro, tanto ela quanto Lucas eram colocados na beira de um penhasco, amarrados por uma fina corda criada por aquela pesada presença.
— Algo em comum? Bem~, tinha algo sim…
A cabeça de Hector finalmente foi erguida, e seu olhar penetrante caiu sobre a garota novamente.
Por mais que nada tivesse saído de sua boca ainda, a postura de Melissa encolheu novamente, ao mesmo passo em que Lucas outra vez se mostrava apreensivo com algo que não sabia o que era.
— No-nos sonhos — continuou ela — eram sempre duas coisas que apareciam sem falta.
Vozes. Algo que mais parecia uma multidão gritando em sua direção. Tantas palavras que era impossível compreender qualquer uma, por mais perto ou altas que algumas estivessem em comparação ao resto.
— A outra é… uma figura, eu acho. Não sei se é um humano, mas a única coisa que se destaca é…
— Um olho amarelo.
Ela e Hector disseram em uníssono, uma sincronia que fazia parecer ser um combinado para Lucas.
— Hector — ela fitou-o — é alguém como eu? Sua expressão, sua postura, tudo me lembra a aparência de alguém que conheço, um outro detetive que, assim como eu, teve o desprazer de ficar frente a frente com aquela pessoa.
O detetive se inclinou para frente. Lá estava ele! Aquela maldita citação de uma existência — talvez — onipresente.
Desta vez, o temor no corpo da garota era tanto que sua garganta parecia estar lacrada por uma rolha. Citações, apenas aquilo era o bastante para despertar a catástrofe que era aquela existência. Como uma lenda antiga, abolida por um povo esquecido.
— Estamos realmente falando… daquela coisa? — perguntou o cartola.
Melissa mordeu o beiço, confirmando o que o detetive imaginava. Ainda assim, ela se forçou a abrir a boca, pronta para pôr em palavras uma última confirmação.
— Não diga mais nada.
Uma voz desconhecida veio detrás. Quem está aí!? Hector saltou da cadeira e sacou a pistola num único instante. Quando apontou para a direção, apenas uma parede e um corredor vazio foi o que encontrou.
— Lucas!
— Sim! Melissa, te-tem mais alguém nessa casa??
Sem resposta. O que foi aquilo? Uma voz masculina? Mas de quem? Não era tão poderosa quanto a de Yellow, muito menos familiar para qualquer um dos rapazes.
Hector permaneceu com a guarda alta, trazendo Lucas para o seu lado com um simples gesto de mão.
Melissa começou a ofegar, o suor escorria com mais intensidade e alguns espasmos tomavam conta de seus braços e pernas.
Com passos para trás, a dupla invasora entrava no corredor. Ligeiramente, o detetive procurava ao seu redor, não encontrando absolutamente ninguém.
Invasores de merda!!
A voz ameaçou outra vez, ainda mais raivosa.
— Ei, Melissa! De onde tá vindo isso? Quem você está escondendo?
Não importava mais o quanto perguntasse, nenhuma resposta seria dada pela garota. Por mais que uma arma fosse apontada em sua direção, toda a sua mente parecia estar perdida em outra coisa.
Ao tentar se levantar, o corpo desabou de imediato ao chão, restando a este se arrastar pelo chão da cozinha em direção aos dois homens.
A atenção de Hector caiu sobre seu parceiro. Lucas estava paralisado, os olhos arregalados encaravam a parede distante. De forma crescente, ele fitava uma silhueta invisível crescer diante de seus olhos.
“O que esse maluco tá fazendo??” O cartola procurou, e nada foi capaz de enxergar.
Sua indecisão foi, no entanto, jogada para longe por uma simples frase. Ainda caída, Melissa ergueu um pouco a cabeça, e entre os soluços e as tremulações de sua voz, um aviso foi o que deu.
— Ele… chegou!
Bz-bzzt! Uma visível descarga elétrica partiu de seu peito, mesclando-se às paredes e rapidamente se dissipando.
— Que merda foi essa!? Lucas, me dê uma explicação! Isso é algum tipo de Fator B?
Assim como a mulher, o rapaz já não era capaz de responder. Seu olhar estava vidrado no nada, pelo menos era isso que o investigador conseguia enxergar na situação. Ele estava paralisado? Seria este algum efeito da habilidade?
Agora, apenas o mundo pôde lhe dar uma explicação. Estava longe de qualquer coisa que poderia imaginar, na verdade, fora até mesmo daquilo que a sua mente humana seria capaz de suportar.
Diante de seus olhos, o Ser — até mesmo as roupas — começaram a mudar. O corpo feminino de Melissa iniciou uma mudança drástica, ganhando a massa e os músculos de um atlético homem adulto.
Os cabelos negros ficaram curtos e loiros, os olhos azuis trocaram para um castanho escuro, e a pele branca se tornou parda. A curta vestimenta, por sua vez, transformou-se numa camisa xadrez e uma calça jeans, junto de uma botina de couro.
Quando o rosto foi erguido e o furioso semblante levado na direção de Hector, nenhuma palavra foi dita, não antes que aquele homem revidasse a arma apontada em sua direção.
Com movimentos velozes, ele levou o braço até algo debaixo da mesa, a mesma na qual todos se reuniram minutos atrás. De lá, puxou uma escopeta e preparou-a. Check! Como o dedo da morte, a arma foi apontada para Hector.
— Quem caralhos é você e o que tá fazendo na minha casa, filho da mãe?!?
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