Volume 2 – Arco 1: Dr. Yellow
Relatório 2: Movimentação
Dia 09 de Abril de 2002, 8:30 da manhã
Os altos prédios impediam a luz do sol de alcançar o beco apertado, impedindo o policial de ter visão clara da face de seu alvo. Por tanto tempo a persegui-lo e agora, finalmente, o tinha em mãos.
— Repito! Coloque as mãos onde eu possa ver! — bravejou e destravou a arma.
O suspeito não reagiu, pelo menos, não como esperava. Ao mando do brilho dourado que emanou por debaixo de sua camisa, o terno preto que o homem vestia se moldou de instantâneo ao assumir uma aparência gosmenta. Em menos de cinco segundos, a roupa social alterou para uma camisa branca, calças jeans e um tênis preto.
O agente observou tudo, descrente mesmo quando a ação se completou.
— Nã-não me obrigue a atirar… — A arma trêmula não pareceu funcionar, ao contrário do olhar estreito do homem misterioso que recaiu sobre si. — E pensar que você estava entre nós… Bem que estranhei o pedido repentino daquele homem! Qual seu verdadeiro nome??
O indivíduo coçou o pescoço, o olhar que vagando ansioso de um lado para o outro.
Ao pensar que havia mais alguém no beco, o policial revistou com relances, mas era fácil confirmar que eles eram os únicos ali. A atenção se redobrou ao ponto de até mesmo a voz do elemento ser um gesto ameaçador.
— Não era para alguém ter percebido, Douglas. Era para você estar bem longe daqui.
Com um mão no pescoço, segurou com cuidado um cordão vermelho que guardava um pingente dourado, a origem do brilho. Ao tocar o item, gerou a mesma luz de segundos atrás, assim como uma nova reação anormal ao seu redor.
A arma do policial começou a tremer espontaneamente, como se ganhasse vida. Douglas soltou o objeto em um susto e deu passos para trás, observando não apenas a superfície metálica, como toda a estrutura modificar-se por completo.
O suor frio que já escorria por seu rosto foi então intensificado.
A pistola que o agente por tanto tempo carregou converteu-se em seu total oposto numa questão de segundos. Aos seus pés, havia agora uma pequena e delicada flor vermelha, a qual refletia em suas pétalas o medo estampado na face do policial.
— Eu já não queria fazer isso, então fique parado e torne as coisas mais fáceis para mim.
O elemento estalou os dedos e o brilho do pingente ficou mais forte. Numa reação instantânea, Douglas vociferou contra o suspeito, recusando-se a deixar a situação acabar daquela maneira. Sua mão deslizou velozmente até o rádio preso na cintura, pronto para chamar ajuda.
Porém, antes mesmo de chamar pela central da polícia ou ameaçar aquela figura à sua frente, esta recitou:
— Mônica, David e Eleanor… São os nomes de sua mulher e suas crias.
O homem encarou o fardado, apesar de escondido pela escuridão, era notável o olhar caído. Vendo que o semblante antes ansioso agora apenas abrigava um vazio imensurável, apertou fortemente o pingente. Seu olhar estreitou e a mão em punho tremulou, enquanto a boca foi trancada na tentativa de não deixar certas palavras escaparem.
Por sua vez, Douglas rangeu os dentes e jogou o rádio aos pés do elemento, este que, após curtos momentos de hesitação, pisoteou o objeto. No mesmo instante, o desenrolar da situação tornou-se palpável para o policial.
Enquanto o agente segurava as lágrimas, o vitorioso mirou de cima o derrotado — sentado em seu trono de plástico —, gravando aquela cena em suas pupilas acinzentadas.
— Vo-você não passa de… um demônio…! — disse o agente, em prantos.
— Já estou acostumado a ser chamado assim. — Seu olhar foi ao céu, e prevendo o que aconteceria a seguir, adicionou: — Mas existem outros muito piores que eu.
O som de um bater de asas invadiu os ouvidos do fardado, cujo semblante finalmente foi dominado pelo medo. Lentamente, virou o rosto naquela direção, sendo surpreendido por uma chuva de penas e pios estridentes. Era uma enxurrada de pardais.
Gritando em uníssono, os pássaros foram capazes de encobrir os gritos do policial até para aquele que estava logo ao lado. Logo que o ataque começou, sentiu seu corpo arder intensamente, como se uma fogueira se acendesse em seu estômago.
Enquanto a cena se desenvolvia, o celular do elemento começou a tocar, avisando sobre uma ligação que não demorou a ser atendida. Assim que colocou o aparelho no ouvido, pôde ouvir uma voz furiosa:
SEU MALUCO!! Quantas vezes eu preciso repetir o óbvio!? Não ande por aí com sua face verdadeira! Quer estragar tudo??
— Me de-desculpa, senhor! Eu me esqueci!
Sem tempo para isso, mude de cara imediatamente e volte para cá. Como não tivemos escolha senão eliminar um policial, temos que movê-lo para outro setor! Esteja aqui em uma hora!
Bip! O homem desligou sem qualquer despedida, deixando seu subordinado com um gosto amargo na boca.
“Cara mais arretado...”
Ele guardou o aparelho e deixou um suspiro escapar. No momento em que olhou para trás, um arrepio percorreu sua espinha. No lugar onde estava um homem adulto há — literalmente — um segundo atrás, agora abrigava apenas pardais que ciscavam aleatoriamente, mandando para o seus estômagos algo que para um passante aleatório seriam somente migalhas de pão.
Mais uma vez, ele pressionou o pingente dourado em sua mão e, com cuidado, escondeu-o na camisa para então limpar o suor que escorria pela testa.
Uma habilidade assustadora, era o que ele achava, algo que no menor dos erros, poderia ir contra seu próprio usuário. Apenas alguém que buscava a morte carregaria isso!
Mesmo assim, não podia desistir. Não! Pior ainda, não podia sequer pensar em falhar. A coisa que tanta almejava estava próxima, e apesar de não saber o quão perto, tinha noção de que desistir nesta altura lhe tornaria num covarde.
“Eu preciso dominar esta habilidade de uma vez! E é como eles me disseram antes: A única maneira de melhorar… é treinar!” O olhar no túmulo vazio ao seu lado.
Quando lembrou-se da razão de estar ali, foi como se uma corda presa em seu pulso lhe guiasse em direção à sua própria luz, não importando como ou quem o visse pelo outro lado.
Suas mãos formaram punhos, e por fim ele buscou pela saída do beco, onde a sua luz guia podia ser vista à distância.
Quando atingido pelo forte sol, permitiu-se analisar a rua. A ladeira daquele serrado era um pouco íngreme, mas não o bastante para pará-lo. A única coisa que realmente incomodou foi a falta de padrão entre as casas. Como uma cidade tão bonita poderia ser tão mal planejada?
"Ah! Merda, eu não mudei meu rosto! Bem, vou ter que ir assim até o próximo local, é arriscado demais fazer a troca no meio da rua…"
Um gosto amargo surgiu em sua boca, intensificando a ânsia que seu estômago tentava aguentar desde cedo. Seu corpo teve uma espécie de espasmo, o que funcionou para interromper a sensação ruim.
“Urgh! Não posso ficar tão eufórico assim… O trabalho não está apenas nas minhas costas. Só preciso aguentar até conseguir o item, só mias um pouco!”
Num estalo espontâneo de língua, ele seguiu seu caminho ladeira acima. Entretanto, o único e curto som que saiu por sua boca chamou a atenção de alguém que passava ao seu lado no mesmo instante.
Com um olhar de canto, Hector mirou aquele indivíduo e o local por onde saiu. Um beco escuro e sem saída, cuja atmosfera a nada remetia além da toca de alguém que perdeu seu rumo. Será que deveria abordá-lo? Não, era arriscado demais fazer isso em frente à própria casa.
O detetive puxou seu caderninho preto e riscou com o lápis velozmente, anotando o ocorrido.
Hunf! O suspiro aliviado foi sua única reação. Enfim, começou de fato sua caminhada. No percurso pela ladeira, não demorou até alcançar a loja de televisões costumeira, onde podia assistir as notícias da manhã.
Bom dia a todos, aqui é seu anfitrião William. Com a pouca demanda, os preços dos produtos continuam a cair. A intenção é esvaziar os imensos estoques, um fato que permitiu até as famílias mais pobres adquirir de tudo e do melhor. Mais informações em breve.
Uma informação comum, de conhecimento geral, na verdade. Entretanto, apenas aquela simples notícia fez Hector surtar, anotando ainda mais coisas em seu caderno enquanto murmurava algo que mais parecia ser outra língua.
O riscar de seu lápis só foi interrompido por uma animada e familiar voz.
— Yo~! Se não é o atrasado de sempre! — falou um rapaz de roupa esportiva.
— E aí, maluco.
Como se tivesse uma arma apontada para si, Hector correspondeu ao abraço do colega, se soltando o mais rápido possível.
— Tô curtindo a folga pra dar meus corre. Acha que é fácil manter essas belezinhas? Estou indo treinar eles agora mesmo. — Ele exibiu os bíceps.
— Você tá indo é olhar a bunda das moças.
— Faz parte.
O detetive revirou os olhos e, num ato já costumeiro, começou a vasculhar rapidamente o colega. Encontrar um item em seu punho o fez ter um curto sobressalto. Um soco-inglês de plástico estava presente ali, logo apontado pelo detetive.
Igor suspirou: — Qula é, vai dizer que eu sou um "transmorfo" por causa disso aqui? Tá com problema de memória, por acaso? O feriado tá chegando, lembra? Isso aqui é só brinde que estavam distribuindo na academia para incentivar a galera a participar da festinha.
Como resposta, o da cartola deu apenas seu silêncio antecedido de um resmungar. Porém, diferente do que normalmente acontecia, Igor se manteve no assunto.
— Aliás, eu espero te ver no Festival de Tarche este ano! Sem essa de ficar em casa para “se proteger de espíritos”.
— E você manda em mim, por acaso?
Diante o semblante sério do amigo, Igor suspirou, entristecido. Deixando seu grande sorriso de lado, encarou Hector com um raro olhar cabisbaixo.
— De qualquer forma, aparece só dessa vez… Já faz anos desde a última vez que nosso trio saiu junto.
A mudança drástica do atleta causou uma mínima reação em Hector, que abaixou levemente sua cabeça, mas em nada alterou o seu cenho. Antes de ultrapassá-lo, Igor deu tapinhas em suas costas e acenou em despedida.
O detetive tentou retribuir a gentileza, mas não foi capaz. Deu de ombros e retomou o ritmo da caminhada, de forma que não demorasse até alcançar a Avenida Romantusk.
Como de costume, o mendigo observava não apenas os veículos, como também aquele mesmo investigador que acabava de chegar. Hector, por sua vez, foi recebido com um olhar torto de Morgan.
— Atrapalhei alguma coisa? — perguntou, se referindo ao telefone nas mãos do chefe.
— Vai trabalhar, moleque.
E realmente o fez. Em poucos segundos, o rapaz largou suas coisas no escritório, bateu o primeiro ponto e disse:
— Tô saindo então, tenho alguns assuntos pra resolver com uma certa pessoa.
— Hein?! Não! Espera aí, do que você…
Antes mesmo de questionar, Morgan já falava com o nada. Enquanto rangia os dentes, controlou-se para não virar a própria mesa, mas havia algo mais importante para fazer naquele momento do que se preocupar com Hector.
Do lado de fora, o detetive ouviu a porta ser trancada, o que apenas acumulou ainda mais curiosidade acerca das ligações que seu chefe realizava. Porém, assim como Morgan, ele tinha outros assuntos para resolver.
“Hospital Santa Estrela… Se os registros não estiverem atrasados, o Sr. Rose ainda deve estar lá!”
Tantas questões para serem resolvidas e nenhuma pista relevante, muito menos testemunhas, isto era o que mais faltava. Em uma de suas várias tentativas de avançar sozinho, sua mente retornou ao início de toda aquela confusão.
Certo tempo depois que as fronteiras foram fechadas, alguns poucos civis e certos empregados do governo começaram a desaparecer entre longos intervalos de tempo. O vereador William Rose foi uma das vítimas. Ele desapareceu no final de março sem deixar qualquer pista, e quando novas notícias foram dadas, apenas foi informado que ele estava hospitalizado, nada mais ou menos do que isso.
Hector havia tentado adquirir informações com médicos, mas de nada adiantou. Ainda assim, não há problema tentar de novo, certo? Contanto que a vida esteja fora de risco, deve ficar tudo bem.
Morgam o impediu de vasculhar a ficha criminal de William, então a opção que restou era ir homem em carne e osso. Caso ele se fizesse se difícil, uma anestesia geral deveria amolecer um pouca a língua.
Decidido, Hector chamou uma carona.
— Hospital e, logo depois, uma conversa com esse tal de Lucas Silva… Hm! O dia tá cheio hoje, ein!
Com uma animação crescente, ele vagou seu olhar animado pela calçada, o que resultou num encontro direto com o mendigo, escorado na mesma parede de sempre.
O homem de má aparência rapidamente sentiu que alguém lhe observava, como se possuísse um instinto animal. Os olhos — se é que eles existiam por debaixo da máscara branca — fitaram na direção do cartola.
“Esse cara… já tem um tempo que eu queria interrogar ele. Será que eu faço isso antes de ir pro hospital?”
Ele deu um passo curto na direção do sem teto, um movimento que deveria ser apenas uma gota d’água, mas que gerou um tsunami que nunca poderia esperar.
Quando o mendigo entendeu as intenções do detetive, sua primeira e única iniciativa foi agarrar um pedaço de vidro que havia ao seu lado e usá-lo para cortar a própria mão.
Mas que!? Apertando a borda de sua cartola, Hector travou e se perguntou o que diabos aquele homem estava fazendo. Devia ter ficado louco de vez, mas foi exatamente após aquela ação que algo verdadeiramente peculiar aconteceu.
De trás dos muros, das ruas próximas, de dentro das casas; todos os lugares que pôde imaginar. Em questão de segundos, incontáveis gatos surgiram e se amontoaram ao redor do homem.
Tudo que o investigador se viu capaz de fazer antes os diversos olhares que miravam seu pescoço, foi gaguejar. Ele engoliu uma bolha de ar, que levou junto qualquer palavra que poderia ter saído.
“Esses animais, a maneira como apareceram… Onde foi que eu já vi algo parecido?”
Bip! Bip! A buzina ao seu lado veio da carona que acabara de chamar. Eufórico, trocou sua atenção entre o carro e os gatos por algumas vezes, até que o semblante apressado do motorista lhe obrigasse a embarcar.
— Pa-para o Hospital Santa Estrela… por favor.
Hunf! Num resmungo satisfeito, o motorista voltou a atenção para a rua e iniciou a corrida.
Enquanto o carro entrava na avenida, o mendigo encarou Hector através do vidro, assim como todos aqueles gatos. Era como uma ilusão de ótica, todos eles tinham seus olhares cravados no detetive, como se ele fosse a única coisa no mundo.
Quando sentiu seu corpo arrepiar, franziu o cenho, apertou sua perna, e num rápido tapa amaldiçoou a falta de coragem. Mesmo que aquele homem sempre estivesse por perto, ele falhou mais uma vez em abordá-lo. Com o gosto amargo da derrota em sua boca, só pôde ficar calado durante o longo trajeto até seu objetivo. Enquanto isto o motorista lhe encarava pelo retrovisor a pensar que estava tendo algum surto psicótico.
***
Caminhando apressada pelo estacionamento do Hospital S.E. estava a Sra. Rose, que atravessava o mar de repórteres ao seu redor com a ajuda dos seguranças para alcançar seu Cadillac preto.
Mesmo incapazes de aproximar os microfones, as perguntas ainda vinham de longe.
— Sra. Rose!! Pode nos dizer o que aconteceu?
— Seu marido está bem? É fatal? Ele morreu? Quando vai ser o velório?
— Velório? Com quem vai ficar a herança da família? Por favor, nos responda, Sra. Rose!
Eles basicamente conversavam entre si, um efeito dominó que poderia facilmente caminhar para uma conspiração de dominação mundial neste ritmo.
Ignorando tudo e todos, ela chegou ao carro e se sentou no banco do passageiro, acompanhada por um homem de idade mais avançada logo ao seu lado. Este encarou os olhos inchados da mulher e perguntou:
— Conseguiu falar com ele?
A mulher limpou as lágrimas de seu rosto e disse secamente: — Não… No entanto, aquilo que me disse é verdade. Mesmo a três corredores de distância, com paredes no caminho e várias outras pessoas conversando, ainda assim…
Ela parou para tomar fôlego, encarando as mãos trêmulas enquanto se lembrava da sensação do momento que a alma escapou-lhe o corpo.
— Eu fui capaz de ouvir a conversa na sala principal, mesmo com tantos obstáculos. Como isso é possível??
O velho arregalou os olhos, tendo seu curto sorriso escondido pelo largo bigode. Como forma de consolo, deu tapinhas nas costas da mulher e adicionou:
— Pelo menos conseguimos confirmar nossas suspeitas. Rose, você é diferente das pessoas normais, então vamos tomar mais cuidado de agora em diante. Além disso, trate de não usar ou contar para ninguém sobre essa sua habilidade até que eu falar.
Ele pegou um celular e fez uma ligação, sem se importar com a presença da mulher, afinal ela estava ocupada demais limpando as próprias lágrimas.
O Cadillac então começou sua retirada do local, por várias vezes quase atropelando os repórteres que se recusaram a sair da frente. Logo atrás deles, um outro carro preto, cujo motorista não desgrudou os olhos do Cadillac após encerrar uma ligação.
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