Volume 2 – Arco 1: Dr. Yellow
Relatório 1: Algo à Espreita
Em um vasto salão escuro, paredes avermelhadas cercavam o humano perdido, enquanto mãos negras e esqueléticas tentavam alcançá-lo das sombras.
Então é você?
Inabalável no trono, uma figura humanoide encarava o ser decrépito aos seus pés. Seu olho dourado capaz de paralisar os inimigos de maneira inexplicável, tal como um coelho congela quando vê os olhos do lobo cravados em si.
É triste pensar que algo tão cruel te aguarda no futuro, mas o irmãozinho aqui vai adorar observar tudo.
O sorriso afiado brotou na face escura, logo acima do trono, um outro sorriso de algo escondido na névoa se revelou, o Rei no tamanho dos caninos deste guardião. Risadas humanas que se sobressaiam ecoaram da enorme boca, ao mesmo tempo em que a silhueta descomunal se inclinou na direção de seu alvo.
Antes que a mandíbula lhe alcançasse, o ambiente começou a se transformar lentamente. As mãos negras se afastaram e pedaços da terra aos seus pés emergiram em espaços isolados, tomando a forma de rostos em desespero.
Por fim, o Rei que ainda observava do trono sorriu uma última vez e acenou em despedida.
No dia 30 deste mês… Aguardarei ansioso até lá.
O que pareciam móveis terminavam de se formar ao redor a partir de terra e areia, e antes que a criatura o abocanhasse, diversos tentáculos negros escorreram a partir do teto, envolvendo-o num casulo asfixiante e puxando-lhe para cima de súbito.
***
— DESGRAAAAAAAÇA!!
Hector saltou da cadeira num susto. Com rapidez, vasculhou os arredores e, ao reconhecer o ambiente, teve certeza de que estava acordado.
— Bosta… é sempre esse mesmo sonho… — disse, massageando a testa.
Ao invés do cenário infernal, viu-se agora num escritório abafado e rodeado por imensas pilhas de documentos. Suspirou, um tanto insatisfeito com isto. Tanto esforço para acabar neste fim de mundo.
Hector Wanderlust, um rapaz de vinte e sete anos que iniciou sua carreira como investigador na Federação de Solum (FESOL), o local mais almejado por qualquer um que buscava um bom emprego. Permaneceu na Federação pelos dois primeiros anos de sua carreira, tido como um gênio entre os demais, mas acabou transferido para um local mais pacato por um motivo simples…
HECTOR!! O chefe Morgan invadiu a sala, usando seu grito como um balde de água fria para acabar com a sonolência do rapaz.
O detetive esfregou os olhos e encarou com um olhar despreocupado. Agora acordado, perguntou: — Qual foi, gordin?
— Você invadiu meus arquivos e enviou respostas para a polícia sem minha permissão!! Acha que tá aonde, moleque?? — Veias saltavam uma atrás da outra em sua testa.
— Ora! Devia me agradecer, eu facilitei seu trampo!
Morgan bufou, ajeitando um papel em sua mão para lê-lo em voz alta.
— “Caso do cachorro desaparecido. Situação: Solucionado. O animal foi raptado por um árvore que, no ato da prisão, revidou contra o agente da lei, o que permitiu que este fizesse uso das armas ao seu dispor em razão de autodefesa”.
Quando voltou a atenção ao jovem, se deparou com uma sobrancelha arqueada.
— Aquela não era uma árvore normal, confia.
— TÁ DE BRINCADEIRA COMIGO?! — Ele amassou e jogou o papel contra o indiciado. — Não quero saber dessas suas maluquices, arrume essa merda e me dê uma resposta o mais rápido possível!!
Morgan não aguardou qualquer justificativa, simplesmente deixou a sala e retornou para a sua mesa, largando toda a baderna nas mãos de seu único empregado.
— Caramba, não é atoa que foi expulso da FESOL, na verdade, não sei nem como esse demônio foi aceito lá…
Entre seus resmungos, ouviu o ranger ao abrir da porta, seguido dos lentos passos de Hector. Estalou a língua e franziu o cenho, com uma certeza de que ouviria algum xingamento.
No entanto, foi surpreendido no instante que uma folha de papel recém-impressa lhe foi entregue. Conferiu o conteúdo e ficou pasmo na mesma hora.
— I-isso é o caso que acabei de falar pra arrumar… Vo-você já até respondeu a polícia?? Como fez isso tão rápido!? Leva no mínimo três dias pra qualquer um!
Um sorriso torto surgiu no rosto do jovem, que colocou ainda mais denúncias resolvidas na mesa do gordo enquanto alargava a expressão sádica.
— Se chama "bom trabalho". Eu vou ali me refrescar.
Saiu sem dar mais satisfação. O chefe, por sua vez, resmungou enraivecido enquanto conferia os detalhes do papel.
Saindo do escritório, Hector quase virou pó quando em contato com o sol. A pele pálida como um vampiro devido aos dias que passou enfurnado no escritório — por vontade própria — decifrando os hieróglifos que seu chefe chamava de caligrafia.
Dia 08 de Abril de 2002
O índice de criminalidade está como sempre, baixíssimo.
Tal frase era propagada pelo mesmo carro quase todas as manhãs, afinal, Paradise não poderia ser definida de outra forma. Além de ser uma cidade litorânea e com uma vasta natureza intacta a poucos quilômetros de distância, era também considerada a mais calma de toda a nação de Utopia.
No entanto, a calmaria estava longe de ser uma realidade nesta agência. Batendo o dedo na mesa por mais de cinco minutos seguidos enquanto encarava fixamente a tela de seu computador, Hector só faltou a revelar um botão secreto em sua mesa e explodir tudo.
— Morgan! Porque eu não tenho acesso ao Caso Alamut?? — gritou Hector do escritório.
— Se você não tivesse sido rebaixado, poderia acessar, pena que não é o caso… — Riu e entrou no cômodo, onde viu o garoto com o mesmo olhar cínico de sempre. — Qual é a dessa sua fissura com esse caso? Ele foi solucionado há mais de um século. Já é praticamente uma historiazinha pra assustar criança.
Furioso, o garoto continuou teclando e, num pico de raiva, jogou o mouse contra a parede.
— Já falei, não? Eu preciso das informações daquele caso pra me ajudar o meu problema atual!!
Morgan suspirou e respondeu: — Fala dos desaparecimentos? Hunf! Eu já te mandei esquecer isso, não é pra gente do seu escalão. Minha resposta é não e ponto final. Arranje outra coisa para fazer.
Ele se retirou, abandonando Hector com sua raiva emergente. O rapaz cerrou um dos punhos e encarou a tela do computador, ao mesmo tempo, buscou por um mouse reserva em sua gaveta.
Seus olhos esmeralda voltaram à tela, onde encontraram o mesmo texto de sempre. De longe o maior motivo da falta de sono que lhe assolava. A pouca anotação que conseguiu fazer das informações que encontrou em ainda menor quantidade.
Nos últimos dois meses, o Hospital Santa Estrela recebeu alguns poucos pacientes em estados que desafiavam a humanidade. Os indivíduos apresentavam pele roxa e flácida, sendo que, na maioria das vezes, parte do corpo estava parcialmente, senão inteiramente derretido. Nenhum outro padrão foi notado até o momento.
Havia se passado quase três semanas, e sequer uma linha tinha sido escrita pelo rapaz acerca do mistério que caiu em suas mãos.
“Zero relatos; testemunhas… Não tem nenhuma pista, absolutamente nada!”
Ele deitou o rosto na mesa e se pôs a pensar. A dor de cabeça começava a dar sinais de piora. No decorrer de tantos dias, seu corpo tornava-se cada vez mais pesado, e a simples tarefa de se levantar da cadeira parecia impossível.
“Mesmo se eu apresentar os documentos do meu último trabalho, não vou conseguir as permissões. Desgraça, só me resta contatar aquele cara…”
Como se tomasse impulso, se ajeitou na cadeira e tirou o celular do bolso. Com movimentos ligeiros e uma curta hesitação, mandou uma mensagem para um colega, cujo respondeu quase de imediato, assim como era de costume.
Bah! Fala aí, parceiro! Eu imaginei que você estava enganchado nesse caso. Eu sei algumas coisas sobre Alamut, mas só posso te falar pessoalmente. Aguarda aí que vou passar no seu escritório.
O detetive saltou da cadeira, agora sem um pingo daquele cansaço de segundos atrás, e caminhou apressadamente para o lado de fora, um tanto indignado com a facilidade que resolveu o impasse.
— Hector — iniciou Morgan —, está saindo? Eu vou fazer uma ligação importante, então a porta vai ficar trancada por uns quinze minutos.
Com as mãos naquela mesma maçaneta, o rapaz travou e, num costume que não sabia quando começou, questionou:
— Qual é a dessas ligações? Você tranca a porta e sempre garante que não tem ninguém, por acaso eu deveria saber de alguma coisa?
— São assuntos dos superiores, moleque. Agora vaza. — Menos suspeito impossível.
Sem muita escolha, ele obedeceu. Ouviu a porta ser trancada assim que pôs os pés na calçada, as paredes tinham isolamento, então tentar bisbilhotar por fora nunca foi uma opção — as escutas também nunca deram certo, sempre atacados por uma interferência misteriosa.
— Vontade de chutar esse gordo…
Aff! Dessa vez, controlou sua raiva, pois havia algo mais importante prestes a acontecer. Se tinha uma coisa que Victor não fazia direito, era cumprir horários.
Caminhando pela larga calçada da Avenida Romantusk — onde ficava a agência —, fez diversas anotações em um pequeno caderno preto que sempre carregava consigo. Vestia-se de forma discreta, isto é, em sua própria consideração, já que muitas coisas além de sua sanidade se perderam devido alguns certos eventos.
A roupa se resumia em um terno preto com detalhes em verde neon nas barras, o mesmo para o sobretudo que ia por cima. No entanto, aquilo que mais chamava a atenção era a cartola em sua cabeça, também com uma tira verde, da mesma forma que uma mecha de seu cabelo preto escapando numa franja. Ante este homem, até o demônio sentia calor.
— Argh!! Que hora que esse arrombado vai chegar? Ele acha que eu tenho tanto tempo livre assim? — Seu olhar vagou alguns metros adiante.
O olhar vagou alguns metros adiante, para um canto bastante específico, onde estava uma figura que só não chutava pois isso iria contra os direitos humanos.
Escorado numa parede de concreto e rodeado de gatos de rua, estava o homem conhecido como “Mendigo da Romantusk”. Excluindo toda a aparência padrão de um sem-teto, sua única peculiaridade era uma máscara branca que escondia-lhe o rosto, munida somente de dois pequenos buracos que o permitiam enxergar. Como ele se alimentava era um mistério.
“Esse maluco aí... certeza que é um Espírito! Eu nunca vi ele comendo, então já é prova mais que suficiente. Espera só pra ver seu puto, vou provar pra todo mundo!”
Hector rangeu os dentes. Seu olhar fixo no mendigo correspondido por uma olhada de relance do sujeito mascarado. O detetive então bufou, voltando a olhar o movimento da avenida antes que alguém chamasse a polícia para si.
“Qual é… Eu sei que cê não é bom com horários, mas tudo tem limite, Victor!”
Coçou o queixo sem parar, pois o hospital em que as ocorrências foram registradas era o mesmo onde a sua melhor amiga trabalhava, logo, uma constante preocupação lhe assolava. Com suas provas, no caso, pois a última coisa que aquela mulher tinha era delicadeza.
Seu olhar vagava entre cada carro, procurando desesperado pelo Celta Preto do colega.
TRIIIM!! O celular tocou de repente, atendido de imediato.
Fala aí, Hector! Desculpa, mas eu não vou conseguir aparecer, imprevistos, saca?
— Tô pouco me fudendo! Eu quero mais detalhes sobre o Caso Alamut, vem pra cá agora! — bravejou, quase atravessando a tela do aparelho.
Bah! Esquentado como sempre, né? É como eu disse, não posso te falar nada se não for pessoalmente. Pra compensar, fique com isto aqui…
Uma nova mensagem surgiu na aba de conversa de Victor.
Esse documento tem informações especiais sobre algo que eu estou investigando tem um tempo. Eu já dei uma olhada no caso que você está investigando e, sinceramente, acho que algumas coisas podem estar conectadas.
Comece a procurar pistas através delas e me informe conforme avançar. Até mais, tchê!
Bip! Raivoso, o rapaz só não arremessou o celular contra o chão graças à mensagens que recebeu. Logo que baixou o arquivo, se deparou com apenas uma frase.
Procurar por Lucas Silva. Centro da cidade.
Primeiro, um estalo, o som de sua veia que só não fugiu do corpo graças à pele que travou o avanço.
"É isso que você chama de informações, caralho!?"
Neste momento que as consultas com o psicólogo valiam a pena. Teria outra consulta se não fosse proibido de chegar a cinquenta metros do local atualmente.
Apesar de pouca, foi como se uma chama reacendesse em seu coração. Ainda não foi capaz de superar completamente a frustração acumulada devido ao tempo perdido com informações inúteis, mas pelo menos tinha uma direção a seguir agora.
Estava prestes a fechar o documento, mas o detalhe da quantidade de páginas o fez ficar. Havia um total de dez, e ao deslizar até o final, um arrepiou subiu no mesmo instante. Uma única frase bem destacada ocupava a primeira linha.
O OLHO AMARELO ESTÁ OUVINDO
A memória foi imediata, havia apenas uma pessoa conhecida pelo detetive com uma característica tão marcante. Sua mente retornou ao salão infernal e as mesmas mãos esqueléticas amaciaram sua carne, enquanto no trono, a figura diabólica o encarava como predador faminto.
O que estava ocorrendo em Paradise? Porque as vítimas derretiam? Quem era o responsável? E quase tão importante, quem era o demônio do trono? A partir deste momento, Hector ganhou um norte para buscar tais respostas.
Caso 47: Um Lugar Seguro, Relatório 1, fim.
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