A Mansão de Alamut Brasileira

Autor(a): Safe_Project


Volume 1

Pista 16: Portão para o Novo Mundo

No olhar trêmulo de Jessie não residia nada além de desesperança.

As batidas de seu coração cessaram por um breve instante, e diante esta realidade, qualquer tentativa de escape era simplesmente impossível.

O anjo, poluído pela vida em sua mais pura forma, desfez seu punho. A sentença que tanto aguardou para aplicar foi finalmente realizada, tendo o resultado logo aos seus pés, na forma de um corpo dividido em dois.

Por outro lado, o vermelho era lentamente superado pelo dourado que dominava o salão. Todos os dez altares estavam cumpridos, cada um emanando a misteriosa luz.

Os únicos movimentos realizados vinham por parte da escultura. Sua face caminhava por cada mandamento, admirando frase por frase pelo tempo que julgava necessário para tal.

Porém, ao encarar a pessoa ajoelhada, foi incapaz de encontrar qualquer resquício de luz. O olhar da mulher era inexpressivo, poderia-se dizer que isento até de uma alma.

— Trágico — A voz ecoou de dentro da escultura. — Não pensei que essa seria minha primeira palavra depois de tanto tempo.

Os batimentos que alertavam o início da Silhueta se propagaram pela mansão mais uma vez. A onda de choque foi intensa, quase derrubando o corpo mole de Jessie.

— Nem acredito que duas pessoas normais fizeram tudo isso, estou realmente impressionado! É uma pena que não possamos conversar.

As batidas do tambor se intensificaram em força, onde cada onda de choque propagada pelo salão atingia a estátua numa força grande o suficiente para fazer cada vez mais partes da casca de pedra se desprenderem.

As fissuras se conectavam rapidamente, e não demorou para que o primeiro grande pedaço se desprendesse. Ao contrário do corpo exterior, o abdômen translúcido de aparência jovial exibia um fraco brilho misterioso como se fosse feito de luz.

Conforme os fragmentos se separavam do corpo, mais a imagem de um anjo se tornava real. O grande par de asas ganhou um brilho semelhante ao do corpo, intensificado pela luz natural do sol que invadiu o salão.

Entretanto, mesmo com diversas coisas que tanto ansiou acontecendo ao seu redor, Jessie não se moveu um centímetro sequer.

Fitando a mulher de olhos vazios e o cadáver aos seus pés, o anjo falou:

— Você quer voltar com ele?

Uma leve reação foi demonstrada, mas a cabeça ainda se recusava a levantar.

— Esta mansão não é um lugar resguardado por boas entidades, pelo menos não mais — disse, o olhar vagando ao redor. — Se o corpo dele for deixado aqui, sua alma provavelmente vai ser puxada para um local não muito agradável, independente do quão pura sua alma seja.

Ante o aviso e atraída por um calor aconchegante, Jessie então ergueu levemente sua cabeça.

Viva sobre a mão da estátua, estava a chama até então guardada no lampião, cuja exibia sua imortalidade ao sobreviver sem qualquer tipo de combustível.

Jessie apenas observou o trajeto realizado pela mão áspera de pedra, que se aproximou do cadáver de James e, num movimento leve, pressionou a chama contra o peito do homem, fazendo com que esta desaparecesse.

A estátua então se virou, caminhando na direção das escadas enquanto o peso extra que carregou por incontáveis anos finalmente esvaía-se de seu corpo.

O que? Seu murmúrio alcançou a escultura em decaimento, a qual conteve um riso satisfeito ao alcançar o último degrau.

O sangue, os… os órgãos espalhados pelo chão e… até o corpo de seu marido! Ele não estava mais dividido em dois pedaços!!

Com o perdurante silêncio da mulher, o anjo se permitiu continuar a falar.

— Sei que deve ter muitas perguntas que você queira que eu responda, mas meu eu de carne e osso morreu há muito tempo, levando minhas memórias. Além disso, a maioria daqueles que tiveram contato comigo naquela época já me esperam após o grande portão.

Longos cabelos foram libertos, seguidos de um par de olhos tão brilhantes que a mulher não fora sequer capaz de admirar.

— Vamos conversar de novo quando a próxima oportunidade aparecer, e tenho certeza de que, algum dia, ela virá.

Sem a necessidade de um bater de asas, o anjo começou a levitar e seu corpo a desvanecer.

— Estarei aguardando-os lá em cima, e digo mais uma vez, do fundo da minha alma. Obrigado.

Nem mesmo um sorriso foi necessário para acalmar a alma da detetive, pois apenas aquele olhar brilhante lhe trouxe uma paz que nunca poderia imaginar existir.

Sua atenção estava totalmente fixada na entidade, buscando apreciar esta visão única ao passo em que o mundo ganhava cada vez mais cor.

Finalmente, ao fim da troca de olhares, o anjo desapareceu em pleno ar, deixando para trás nada além dos restos de sua prisão de pedra.

Alguns instantes se passaram com a garota encarando o céu além do vitral, vendo o sol agora estagnado na imensidão do céu azul.

Não muito longe dali, a floresta silenciosa foi transformada em um tumulto sem igual de um momento para o outro.

— Por que estamos avançando assim do nada? — perguntou um dos policiais, tentando acompanhar a corrida do grupo.

— Ordens dos superiores — disse o membro da tropa especial.

— Mesmo assim, ainda não faz sentido!

— Mansão avistada! — avisou o líder.

Logo, a dita surgiu no campo de visão de todos os homens ali, saindo da névoa como um monstro de outra dimensão.

— A porta está aberta! Avancem com cuidado!

Se dispersando ao redor da estrutura, os membros que entraram pela porta da frente averiguaram os arredores enquanto miravam com os fuzis, para só então notarem a pessoa ajoelhada sobre o tapete vermelho.

— Ei! — O líder se aproximou. — Jessie, certo? Você está bem?

O soldado não recebeu resposta, e ao notar James debruçado sobre os braços da garota, averiguou-o, sendo antes necessário mover a jovem que mantinha suas mãos sobre o peito do parceiro.

— Ainda tem pulso, fraco, mas ainda existe! — disse, aliviado. — Equipe médica!

Diversos profissionais correram até a dupla, priorizando James que estava inconsciente.

Levando seu olhar até os restos da casca do anjo, tudo que Jessie pôde fazer neste instante foi dar um curto sorriso. "Que bom que acabou", ela então cambaleou e desmaiou ali mesmo.

— Rápido! Levem os dois para o hospital!

A equipe se retirou tão rápido quanto chegou, levando as duas novas vítimas da mansão para a cidade.

Quando os médicos desapareceram na névoa, uma outra figura entrou na mansão, esbanjando um largo sorriso.

— Senhor Potestades, é perigoso ficar aqui! — falou o soldado, usando o corpo de barreira.

O velho analisou o salão, rapidamente aterrissando o olhar estreito na casca de pedra.

— Não há mais nada com o que se preocupar. — Ele empurrou o soldado, indo direto para o segundo andar.

O abrir violento da porta dupla ecoou por toda a mansão, mas foi superado pelas potentes batidas do coração de Potestades ao se deparar com a biblioteca intacta.

— Assim como esperávamos, tudo parece perfeito! Não acredito que aquele maldito Trovão pensou que seria capaz de esconder algo desse calibre… Finalmente conseguimos acesso a ela! A Biblioteca dos Sete Maestros!

A exaltação do velho contagiou aqueles ao seu redor, uma sensação única que seria mantida naquela floresta.

Dentre todos esses gritos entusiasmados, apenas um dos soldados se colocava em silêncio.

O fuzil abaixado demonstrava sua total despreocupação, e mesmo se fosse possível enxergar seu rosto através do vidro escuro de seu capacete, não haveria como descrever aquele olhar direcionado para as lascas de pedra no chão.

— Então realmente acabou. Será que os dois conseguiram se libertar? Não… aquele cara já deve estar insano demais para sequer pensar em morrer.

Ele então direcionou seu olhar para o céu, sabendo que além das nuvens e em algum lugar abaixo da realidade, espectadores especiais do mundo deleitavam seus olhos naquele momento, uns mais ansiosos com o futuro do que os outros.

 

***

 

As notícias correram como água em um rio e a cidade entrou em alvoroça, buscando notícias o mais rápido possível.

— Jessie e James retornaram! Jessie e James retornaram! — gritou o jornaleiro.

Na porta do hospital, uma multidão de repórteres curiosos eram barrados por grandes seguranças, todos clamando de pé junto por uma entrevista com a dupla de detetives.

Dentro de uma das salas do grande hospital, o casal era vigiado por um médico, o qual acreditava estar, na verdade, sendo mantido ali para ser torturado pelos dois.

— Acredite em nós! A culpada por tudo naquela mansão era a estátua! — esperneou James.

— Isso mesmo! Sei que é loucura ouvindo dessa forma, mas a estátua e os mandamentos estavam conectados, a estátua era na verdade uma pessoa! — acrescentou Jessie, ganhando um resmungo como resposta.

— Apenas descansem, suas mentes estão cansadas depois de ficarem trancafiados em um prédio abandonado. — O médico se levantou, caminhando até a porta.

— Espere... — James leu o crachá do homem. — Thomas… TG? — Arqueou a sobrancelha.

— Já falei, não se preocupem. É só descansar e deixar os remédios fazerem efeito, assim tudo pelo que vocês passaram vai parecer ter sido apenas um sonho ruim.

O doutor bateu a porta, parecendo correr para longe do quarto. Jessie suspirou, enraivecida, enquanto James assumiu um semblante pensativo.

— Minha cabeça ainda dói — disse ela, tombando sobre a pilha de travesseiros. — Acho que vou só dormir como ele disse, ele é médico, afinal.

A mulher encarou de canto seu parceiro, estendendo a mão para o mesmo.

— Algum problema? — perguntou ele, incapaz de retroceder ao perceber que deu as mãos com sua mulher.

Jessie analisou, sentindo o aperto forte da mão do companheiro envolver a sua em um calor aconchegante.

— Nada, só aliviada. — Escondeu o rosto. — Isso é realmente melhor do que uma chama.

Confuso, James focou sua atenção na mão da garota e ponderou, totalmente silencioso. Uma lembrança lhe acertou.

Era da primeira vez em que deu as mãos com uma garota que no futuro tornou-se sua mulher.

Presenteado com a oportunidade de apreciar o mesmo calor daquela época, com uma intensidade e conforto que não mudaram em nada, ele sorriu, e com o coração mesclado em emoções que tentava, em suma, ignorar como sempre fez, disse:

— Realmente, nenhum calor se compara à esse.

Os travesseiros acolheram sua cabeça e, enquanto encarava o teto branco, teve um último pensamento.

“TG… Acho que já vi isso esse nome em algum lugar… Bem, não importa mais, já acabou...”

Antes que seus olhos fechassem, James vislumbrou o início de um filme na TV do quarto. Ao mesmo tempo que os números zeraram da contagem regressiva, o detetive apagou completamente.

Enquanto isso, em uma sala particular, o médico Thomas atendeu uma ligação.

— Eu segui as instruções para o medicamento, ambos já estão dormindo.

Ótimo. Não precisamos mais nos preocupar com aqueles dois então, isso já é um problema a menos para Utopia.

— Qual é o plano para a mansão? Fiquei sabendo que já estão recolhendo os livros.

Sim, é verdade. Fiquei sabendo que Alamut pretende demolir ela, então só estamos terminando de confiscar algumas coisas.

— E depois disso? O que vamos fazer com os espólios?

Isso é algo que devemos conversar em pessoa, Thomas.

— Certo, me desculpe! — O médico desligou, saindo da sala o mais rápido que conseguiu.

Seus passos ecoaram pelo corredor vazio, alcançando o quarto em que estava os detetives, mas não especificamente os ouvidos destes.

Uma figura estranha se colocava de pé entre as duas camas, encarando de cima os humanos frágeis.

Sua roupa era incomum, uma vestimenta totalmente escura e que brandia calmamente como se tivesse vida própria. Mesmo com uma aparência humanoide, ainda era difícil acreditar que aquilo se tratava de uma pessoa.

Demorou, mas realmente aconteceu.

O homem sorriu, levando o olhar para o céu além da janela do quarto.

Em meio à sua conversa solitária, a televisão no local transmitiu as notícias de última hora, tão importantes que interromperam o filme que começava.

Jon Alamut XIII acabou de anunciar a demolição da mansão que foi construída séculos atrás. Diversas pessoas tentam convencê-lo a leiloar o local, mas tudo parece ser em vão.

Não foi nada perto do que eu imaginei, mas acho que a graça da vida é essa, né? Pelo menos foi interessante.

Dentro da Federação de Solum, a família ThunderGold entrou com uma ideia inovadora, mas não mostrou intenções de revelar detalhes ao povo no presente momento.

Você finalmente conseguiu se afastar de mim. Espero que agora esteja satisfeito. Não era isso que você sempre quis?

Por fim, o Presidente Potestades anunciou uma nomeação para a cidade na qual Alamut mora atualmente, deixando para o mesmo a escolha do nome. O nobre, conhecido por todo o país, escolheu de imediato o nome para sua bela cidade.

Porém, eu ainda tenho muita coisa para ver. Diferente do que eu pensava, ainda existem que vale a pena observar por aqui.

Dentro de três meses, a “cidade sem nome” de Utopia, será nomeada como Paradise.

Espero que esteja feliz agora, irmão.

Seu sorriso demoníaco se intensificou, e pelo olho banhado em ouro, uma faísca elétrica que ansiava pelo futuro iluminou o quarto momentaneamente.

 

 


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