Volume 1
Pista 9: Silhueta (1)
Como o último grito antes de sua morte. Estridente, capaz de estourar até os tímpanos de um fantasma. Era possível ver em seu rosto o verdadeiro desespero de um pecador na sua mais pura forma.
Quando o corpo de Jessie encontrou o chão, o baque da carne contra a madeira amoleceu as pernas de James, levando-as para o mesmo destino.
Os dedos rasgaram o carpete, alcançando a madeira e rasgando a pele na superfície áspera. Farpas e pregos furaram-lhe a mão, e o sangue começou a escorrer, ainda assim seus olhos não desviaram do corpo.
O grande e desconhecido coração bateu outra vez, batimentos lentos e poderosos que comprimiam os órgãos do detetive cada vez que ressoavam.
Por mais que se esforçasse, seu rosto simplesmente não se erguia. A própria mente soube, e um instinto de autopreservação foi acionado no exato momento do disparo.
Se olhasse para frente, ficaria maluco! Mas se não o fizesse, a bigorna que pesava em seu peito acabaria lhe matando antes.
Não é real!
É real sim!
Não, não é real!!
Não tem como ser mentira!!!
Um colapso se desenvolvia em velocidade alarmante, quase ao ponto de uma segunda personalidade se materializar ali mesmo em sua frente.
Rosto… A estátua tinha um rosto! A informação foi rebobinada na mente do homem várias vezes, e por mais que tentasse, era incapaz de compreender qualquer coisa, até mesmo seu próprio nome ele esqueceu por um momento.
Não apenas uma face, mas algo a mais pareceu ecoar em seus ouvidos além dos batimentos cardíacos da mansão. Aquilo foi uma voz, certo? Um tom de superioridade que premeditava o futuro, tão poderosa que a tontura gerada quase o fez desmaiar.
Com tantas coisas para processar em um só momento, os ouvidos imitaram uma panela de pressão ao expelir vapor ardente.
Ei! O mundo escurecia lentamente, girando em espirais inacabáveis.
Ei! Cada vez mais fundo em seu poço de loucura, podia sentir e observar alguém ao fundo, rindo de sua cara com um sorriso maligno estampado.
— JAMES! Fala comigo!!
Aquela voz novamente? Não, estava diferente, menos grossa e com um tom desesperado. Seu corpo balançava aparentemente sem motivo, talvez fosse até sua alma indo embora do corpo, mas bastou um movimento para trazê-lo de volta à realidade.
Um tapa caiu sobre seu rosto. — Se você morrer eu te mato, seu idiota!
Seu instinto foi imediato, e ainda assim contido por uma força maior. Seu rosto ergueu lentamente, pronto para desviar para outra direção no menor sinal de ilusão.
Porém, em meio à tantas preocupações, pelo menos aquela poderia ser classificada como resolvida.
— Je-Jessie!?
Pendendo por cima dos ombros da silhueta, os cabelos ruivos refletiram a luz do sol da manhã até os olhos castanhos do homem, permitindo que enxergasse o resto da figura.
Seu corpo parou de se debater, o coração se acalmou e a visão tornou-se turva quando lágrimas salgadas começaram a sair.
A mão trêmula moveu-se inconscientemente, indo em direção ao rosto familiar e o tocando levemente. Calor, foi tudo o que sentiu, uma ardente sensação que trouxe de volta toda a vida que à pouco se esvaia de seu corpo.
— Você tá ferido? Me responde, porra!
Ele o fez, mas não em palavras. Ao ter certeza de que não era uma mera ilusão, as pernas impulsionaram o corpo mole para frente. Seus braços envolveram a mulher e a cabeça caiu sobre seu ombro.
Hã!? Um resmungo foi a única coisa que saiu. Em um primeiro pensamento, quase afastou o homem de si, mas a ideia se foi imediatamente quando os ouvidos captaram os soluços que saíam com dificuldade de sua boca.
Enfim, seu único movimento foi leve, com a mão pousando sobre a cabeça do marido.
— Tá-Tá tudo bem…?
Com a pouca força contida em sua voz, ele superou os soluços e respondeu num murmuro.
— Sim… tô aliviado.
Ela decidiu que não tentaria entender o que havia acontecido. Tinha passado, certo? Foi capaz de chegar na sala antes do inimigo, então era isso que importava!
Num último aperto, James desfez o abraço, logo questionado pela esposa. O que havia acontecido, afinal? E tudo que disse foi que agora estava tudo bem, “apesar de que, em partes, ainda gostaria que isso tudo fosse um sonho”, acrescentou enquanto massageava a testa.
— O que aconteceu pra você ficar assim do nada? Nem com você isso é normal!
— Tá tentando me acalmar ou o quê?
Esta situação, ou melhor, todo este lugar estava mexendo com sua cabeça de forma que praticamente nenhum ser humano seria capaz de imaginar. Jessie não parecia tão afetada, mas se tinha algo que ela era boa em fazer era esconder as coisas.
De qualquer maneira, o foco deveria se manter na fuga, antes que os danos em sua sanidade se tornassem irreversíveis. Por hora, tudo o que viu ficaria apenas em sua memória.
— Jessie, olhe! Eu encontrei este livro!
— Uma enciclopédia? O que tem isso?
Tentou explicar, mas foi interrompido antes que pudesse dizer qualquer coisa.
Um agarrão na porta atraiu a atenção de ambos. A mão que ali surgiu lembrou Jessie de quem ela havia superado em velocidade, assim como o potencial perigo que tal representava no momento.
Surgindo como uma besta farejando a presa, a estátua bloqueou a porta.
James foi o primeiro a reagir, afastando-se o máximo que o cômodo permitia. A mulher lhe fitou de canto, mas constantemente focada na escultura.
— Tá de boa! Ela não tá no “modo de ataque”, se é que dá pra chamar assim.
A criatura então adentrou o cômodo, provando a teoria da mulher. Com o lampião iluminando o caminho, passou direto por ela e foi em direção à uma das estantes.
Mesmo observando de longe, James notou um arregalar dos olhos da esposa quando essa se virou. Expressava confusão, e focava nas costas do ídolo de pedra. No entanto, por mais que tentasse, o ângulo não lhe favorecia para ver o mesmo que Jessie.
Com toda a sua calma, a imagem esticou o braço até o diário de D. Rossi que James largou na mesa. Seus movimentos foram friamente encarados pela dupla.
Sua mão livre pegou, folheou e por fim fechou o diário, para então devolvê-lo ao exato local da mesa no qual se encontrava antes de ser lido.
A dupla estava em constante silêncio, enquanto aquela coisa apenas passava os dedos ásperos entre os livros empoeirados.
Após isso, seguiu até uma das prateleiras na quina da parede, agarrando sem qualquer hesitação um livro pequeno e de poucas páginas.
Sua capa verde musgo estava mais limpa que as demais ao seu redor, e uma escrita em dourado avisava seu conteúdo.
Anotações anuais: Evolução do Anjo
Um título curioso, que talvez remetesse a algo relacionado aos cultos religiosos.
Anjos, de acordo com a mitologia, nada mais eram do que humanos puros o bastante para se tornarem guardiões de outros ainda vivos.
Vocês vão ver vários casos deste em suas vidas como investigadores. Acreditem, não há nada pior do que lidar com um Ascendente esperto.
Uma lembrança do curso de formação.
Ao contrário do que era dito nos livros, a estátua. não demonstrava absolutamente nada de angelical ou puro. Seu rosto de pedra não conseguia expressar nada, suas ações corporais muito menos, pois por mais simples que pudessem ser, qualquer movimento de seu punho gerava medo em qualquer pessoa.
Esse fator incoerente entre as duas coisas chamou a atenção da dupla de detetives.
A escultura folheou rapidamente as poucas páginas, logo devolvendo o livro para a prateleira e partindo para uma do outro lado da sala, mais uma vez sendo contornada pela dupla. A mesa oval já havia se tornado uma espécie de ponto seguro para eles.
James não perdeu tempo, agarrando aquele livro na mesma hora que a estátua se afastou o mínimo necessário para sentir segurança.
Evolução do Anjo… Para a surpresa de ambos, a maioria das folhas estava completamente vazia. Um total de vinte e nove páginas, com apenas seis detendo frases enigmáticas.
As informações eram o tipo de breves anotações que apenas o autor seria capaz de compreender por inteiro, mesmo assim, James proferiu-as em voz alta, esperando que isso pudesse de alguma forma ajudá-lo a decifrar aquelas espécies de códigos.
— Iluminação... Conserto... Dia e noite... Silhueta... Crescimento... Fase adulta.
As palavras inundaram James, mas não com conhecimento.
Com seu cenho torcido, ele disse, entristecido: — A cada segundo que se passa, minhas esperanças apenas desaparecem.
Jessie, por sua vez, analisou aquelas palavras firmemente, e pareceu conseguir relacionar com alguma coisa.
— Mas isso não significa que vamos desistir! — disse ela, encarando a estátua que caminhava na direção da porta. — Venha! Eu tenho que descobrir o que é aquela coisa nas costas dela!
Então realmente havia algo!? Sem tempo para explicar em palavras, agarrou o braço do marido, pronta para puxá-lo mansão adentro.
Quando a escultura sumiu no corredor, eles caminharam a passos largos até a batente da porta, tendo os semblantes transformados em surpresa ao avistarem a imagem já no fim do longo caminho.
— Como ela chegou lá tão rápido? — Jessie se colocou no corredor, dando sinal com a mão para o parceiro lhe seguir. — Vamos logo!
A detetive deu um passo à frente, seguida pelo hesitante companheiro. James foi assolado por um mal pressentimento, mas não sabia se devia confiar em seus instintos que já lhe enganavam desde que entrou na mansão.
Um ao lado do outro, andaram com delicadeza. Pelas diversas janelas, a luz noturna desenhava pelo assoalho diversos galhos secos, os quais imitavam dedos que apontavam na direção contrária dos passos da dupla.
Aquela sensação alcançou Jessie, cujo rosto era gradualmente dominado pela palidez conforme caminhava na direção da curva no corredor que de longe mais se assemelhava com um beco sem saída. Essa tensão que assolou os dois não durou muito tempo, pois foi transformada em puro desespero.
Um som alto e familiar ecoou dentro de suas cabeças. Era um batimento cardíaco, potente e extremamente devagar. Junto dele, uma onda de choque desconhecida os atingiu.
— E essa agora!? — gaguejou James.
Quando o mundo pôde ser visto mais uma vez, ele estava decorado com um novo item. A estátua retornou, mas apesar de seu rosto não ser visível, a sua pouca distância permitiu que eles visualizassem com perfeição a estranha protuberância em suas costas.
O batimento solitário os atingiu novamente, mais forte, e repetidas vezes. A onda de choque atravessava o corredor, como uma veia sanguínea levando uma carga de sangue para outras partes de seu corpo, no caso, a mansão.
Agora, ambos puderam observar um novo fenômeno ocorrer. Como se suas visões estivessem se distorcendo, uma segunda imagem de seus corpos projetou-se para fora do original.
— O que é isso? Um… pós-imagem!? — perguntou James, movimentando o braço como se tentasse se livrar de um inseto.
Confusos, piscaram incontáveis vezes na vã tentativa de arrumarem suas vistas. Contudo, ao bater do tambor incessante, a silhueta voltou para o corpo em um piscar de olhos. Os detetives nada sentiram no momento, e a ação de saída e retorno de suas cópias repetiu-se diversas vezes, em um espaço de tempo que poderia ser apenas alguns segundos.
O último batimento, muito mais potente que seus antecessores, não apenas gerou a onda de choque, como uma fila de diversas imagens de Jessie e James ao longo do corredor. Uma multidão que passou despercebida por eles, e que ao voltarem ao seus donos originais, acumularam uma carga invisível em seus corpos.
Com a imitação de fluxo sanguíneo finalizado, a estátua retornou para sua caminhada, os raios de sol que se erguiam rapidamente pelo céu atravessavam a janela, dando um breve destaque para suas costas antes que desaparecesse mansão adentro.
Nenhum dos detetives sentiu-se diferente após as diversas silhuetas saírem e voltarem aos seus corpos. Porém, a grande mudança sequer estava acontecendo neles, e sim na escultura, que deixou isso mais do que claro.
— Eram brancas… — disse James, encarando a parede. — Talvez eu esteja realmente louco.
— Não, acho que nós dois estamos — acrescentou a garota. — Eu realmente não delirei quando vi aquilo crescendo nas costas dela…
— Eram penas brancas! Tem penas de pássaro nascendo nas costas dela!
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