Volume 1
Pista 10: Silhueta (2)
Os olhares da dupla não desgrudaram da parede nem por um mero segundo, pois as mentes estavam tão concentradas em reter a informação sem sentido que ameaçavam explodir.
Penas? Aquilo nas costas da estátua eram… penas de pássaro!? Dentre todas as coisas que eles já tinham visto até agora, esta talvez fosse a mais estranha.
Jessie fitou o marido em busca de respostas, mas se nem ela tinha algo a dizer sobre o evento, quem diria ele.
— Aquilo eram penas brancas! Penas de pássaro! Crescendo numa estátua de PEDRA! — Ele coçou a cabeça, arrancando alguns tufos.
Com a realidade confirmada pela perda de sanidade de seu homem, Jessie tentou à todo custo manter a firmeza de sua voz.
— A-Aquela silhueta que sa-saiu do meu corpo tantas vezes… O-O que foi aquilo?
Abriu e fechou a mão repetidas vezes. Cinco dedos, dois braços, duas pernas… Até onde fora capaz de ver, tudo estava normal com o seu corpo e o de James. Nenhum terceiro olho avistado.
— Parando pra pensar, aquela “evolução do anjo” que acabamos de ver, se juntar com isso ela faz bastante sentido.
De volta à biblioteca, ela pegou o livro e folheou até encontrar aquelas mesmas páginas, marcando cada uma com um dos dedos.
— Veja só! — continuou Jessie — Primeiro tem a “Iluminação”. As únicas coisas brilhantes aqui até agora são o lampião e os altares!
James mancou na direção da esposa, e por mais que a dor de seu abdômen estivesse bem menor, o mais simples gesto de entusiasmo com algo lhe fazia sentir uma enorme agulha perfurar-lhe o peito.
— Em segundo, tem o “Conserto”... — A mera citação da palavra fez James se lembrar de um ocorrido. — Hum… Eu lembro que quando fui atacado na primeira vez, os altares foram destruídos pelos golpes da estátua, mas quando olhei pra eles no fim da luta, todos estavam em perfeito estado.
Jessie engoliu seco. — Terceiro, “Dia e Noite”, que tá mais que óbvio se referir à aceleração do tempo.
Ambos encararam a janela. Sol e luz, noite e escuridão. Aquelas duas duplas opostas já lutavam intensamente pela dominação dos céus. Entre cinco e quinze minutos, este era o tempo aproximado que cada um destes dois astros dominava o céu.
Em seguida, havia a “Silhueta”, também mais que óbvia nesta altura do campeonato. O apelido estava realmente certo, sendo de fato uma silhueta. Mas… o que ela fazia exatamente ainda era um grande mistério. Sua forma de funcionamento era confusa e, até onde indicava, incompreensível para pessoas normais.
Contudo, ainda existia a quinta fase da evolução. “Crescimento”! Se não fosse por James ter decidido visitar a biblioteca, teriam dito que o encontro com o livro era a coincidência encarnada.
Por fim, a última evolução. Em uníssono, a dupla leu: — Fase… adulta.
O primeiro questionamento era óbvio. O que exatamente aconteceria se essa fase fosse atingida? Bem, nenhum deles parecia disposto a esperar para descobrir.
Em um ato final, Jessie fechou o livro com força e o arremessou contra a parede.
— Isso só serviu pra avisar que ainda vai piorar! Que se dane essa merda de “fase adulta” ou “evolução”! Continuar com o esquema dos altares será bem mais útil que ler esses livros!
De punhos cerrados e uma raiva intimidadora em sua face, ela caminhou de volta ao corredor. Ao se tocar da situação, James a parou pousando a mão em seu ombro.
— Sobre os altares! Eu acho que descobri o que são essas visões que você diz ter quando toca neles!
Hein?! O interesse dela era mais que notável. Seu sorriso brilhante cegava tanto quanto o sol, mas como marido da mulher, sabia que deveria tomar cuidado para não perder a voz ao começar a conversar com essa doida.
— Eu não cheguei a ler o livro, mas algo no glossário me fez lembrar de um caso antigo que investigamos juntos. Então diga-me, a palavra Ascendentes, ela não te lembra alguma coisa?
Um flash de luz passou pela cabeça da mulher, que arregalou seus olhos e tentou falar antes mesmo de seu cérebro pensar em quais palavras usar.
— Aquele médico que dizia curar qualquer doença!
— Memória boa como sempre, ein. Estou falando dele mesmo, foi o nosso terceiro caso depois que nos casamos.
Naquele momento, ambos esqueceram completamente de onde estavam e o perigo que se escondia nos corredores.
— Descobriu algo sobre o médico? — A pergunta foi desanimada, já que ela não via como uma informação daquelas poderia ajudar.
—O quê? Nã-Não, não foi sobre ele, estou falando dos Ascendentes em si! Você deve ser um deles!
Eh!? Parecia uma criança indignada ao ser chamada de malcriada. Não sabia o significado da palavra, muito menos que tipo de pessoa poderia estar encaixada neste grupo, mas definitivamente não queria fazer parte dele!
— Acredite ou não, — continuou James — mas na biblioteca existem incontáveis livros do Século 4, então as coisas escritas ali devem ultrapassar qualquer conhecimento que a gente tem atualmente!
Outra lembrança acordou na mente da mulher. De fato, sempre lhes foi ensinado a valorizar o conhecimento antigo, por mais obsoleto que pudesse parecer. Ainda assim, seu instinto como Ser Humano lhe dizia o total oposto.
Ela sabia onde James queria chegar com o assunto. Naquele mesmo século, rodava pela boca do povo lendas sobre pessoas com capacidades sobre-humanas, as quais se tornaram comuns, mas que não passam de histórias fictícias nos tempos atuais.
— Então… você tá querendo insinuar que eu sou uma vidente ou algo do tipo agora?
— Be-Bem, basicamente, sim. Aquela estátua, por exemplo, deve fazer parte dessa linhagem, senão de que outro jeito a alma teria ficado presa dentro da escultura? Deve ser o efeito de alguma habilidade maluca, alguma maldição, como você disse!
— Se for isso, então a tal Fase Adulta deve ser o último recurso dela pra nos matar. Algum ataque foda, tipo uma bomba ultra potente ou coisa assim.
A possibilidade foi imediatamente gravada em suas cabeças. Fugir! Definitivamente esse era e sempre seria o objetivo principal, ainda mais depois de imaginarem seus corpos sendo engolidos pelo fogo de uma explosão.
— Faltam apenas quatro altares pra concluir e seis para eu verificar a Visão do Passado.
— Visão do Passado? Até que não soa tão mal. — Vindo de sua mulher, um nome legal era algo a se elogiar.
Com uma última bufada de raiva, ela obrigou-o a lhe acompanhar até o salão principal. Entre as esquinas dos corredores, apenas o silêncio era audível. Os passos da estátua não mais faziam barulho, e para ocupar esse espaço, a respiração pesada dos únicos seres verdadeiramente vivos no local fazia o papel com grande exatidão.
Em todos os momentos que Jessie encarava o rosto de seu homem, tudo que via era o suor escorrendo e o olhar vidrado vagando por todos os cantos que conseguia alcançar. Não virava o rosto, pois o pescoço estava simplesmente congelado.
Quando suspirou, notou o incômodo que causou. — Não tá cansado de ficar tão apavorado?
— Hã? Claro que sim, acha que eu gosto de ficar tremendo o tempo inteiro?
— Perde esse medo de uma vez!
“E por que você não sobe pra baixo, se é assim?” Se isso saísse de sua boca, não seria a estátua o motivo de sua morte. — Não é algo tão fácil…
— Eu sei que não é, mas também não ajuda ter alguém encostado em você ou escondido no canto quando a coisa aperta de verdade.
Uma fincada acertou-lhe o peito. — Você tá… diferente, Jessie.
Sem paciência! Foi o que ela retrucou para encerrar o assunto. No entanto, estava longe de ser apenas isso. Como marido, James sabia mais que qualquer um que algo tinha de fato se alterado, uma agressividade emergente que não era normal nem para sua esposa.
Porém, essa nova dúvida se juntou às várias outras que já ocupavam sua cabeça, cuja latejava de tantas informações para processar.
Eles então alcançaram o salão, descendo o lance de escadas antes que um certo obstáculo surgisse na divisória das alas.
Jessie não perdeu um segundo sequer, indo na direção de um dos altares não tocados.
"Não pecar contra a castidade" era o mandamento da vez. Quanto nunca, ela desejou que a visão durasse mais para adquirir informações, mas como nem a opção de ficar ou sair existia neste lugar, o único direito que ainda lhe restava era o de observar.
— Aqui vou eu! — avisou, fitando James que se colocava logo atrás dela.
Ele assentiu com a cabeça, pronto para segurá-la em seus braços. E com essa segurança, ela estapeou o altar vazio, então cegada pela luz branca e a atacada pela pressão de ter a alma perdida.
Desta vez, a casa de madeira nostálgica também estava presente. No entanto, o clarão não havia desaparecido por completo, pois todo o arredor da casa era coberto por uma espessa camada branca de neve, tanto que a luz refletida fez os olhos do jovem arderem.
— Por que não vem logo morar conosco, irmãozinho? — perguntou, esfregando os olhos.
— E que motivo eu tenho para fazer isso? Já não andamos juntos como antigamente, não somos mais crianças, e também trabalhamos de forma completamente diferente — reclamou o mais novo em uma expressão cansada.
— Eu entendo suas razões para não me acompanhar. Você está vivendo livre, e imagino que já tenha ficado com diversas mulheres, e por isso está incomodado com seu irmão mais velho ter se casado.
— O quê? He! Realmente acha que é uma coisa besta dessas? — O mais novo encarou o irmão, furioso. — Você realmente não mudou nada.
— Então, diga-me logo qual o motivo!
— Tsc! Você não entenderia. — Deu as costas.
— Por favor, irmão! Dê apenas uma chance a mim e aos outros!
Um olhar demorado foi de encontro ao mais velho: — Outros?
— Sim. Lembra que eu havia comentado? Eles chegaram... — Um sorriso simples e acolhedor formou-se em seu rosto.
O mais novo de repente se mostrou agitado. Boquiaberto e de olhos arregalados, ele fitou o irmão sorrir tranquilamente, como se tal acontecimento não afetasse em nada as suas vidas.
— Irmão… — Agora não mais apenas no mais velho, o outro também ganhou um sorriso, que atravessava seu rosto e lhe entregava um aspecto demoníaco. — Será um prazer acompanhá-lo até sua mansão.
A visão encerrou-se, o branco que já dominava o ambiente intensificou para tomá-lo por completo, repetindo o processo de devolver Jessie para a escuridão do salão principal. Ao tomar consciência, ela levantou a cabeça em grande animação.
— Finalmente! Algo interessante realmente apareceu! Então quer dizer que aqueles dois vieram para cá junto de outras pessoas! As sete cadeiras, sete quartos! As coisas estão finalmente se encaixando!
Seus curtos saltos chamaram a atenção de James, que a aguardava logo ao seu lado.
— Então deu certo!? Encontrou algo bom?! — Seu entusiasmo era quase equiparável ao da esposa.
Ela confirmou, explicando tudo que era capaz no momento. Captando todo o conhecimento e mesclando ao seu, James aos poucos construía uma rota coerente em sua cabeça, capaz de guiar tanto ele quanto Jessie para uma resposta plausível.
— Certo, então… qual vai ser o próximo? — perguntou ele, olhando ao redor.
Jessie ponderou, e assim que imitou a ação do marido, se deparou com uma curta questão. Um dos mandamentos chamou sua atenção não pelo o que estava talhado, mas pelo o que fez a mulher se lembrar.
— Nós entramos aqui numa quarta-feira, não foi?
— Hum… Acho que sim. Por que da pergunta?
Hesitou por um instante. — Eu tava me perguntando… Que dia é hoje?
Uma pergunta simples, mas que tirou um resmungo preocupado do homem. Seu olhar caiu sobre o altar em questão. "Guardar os Domingos". Parando para pensar, esse mandamento em específico só deveria ser cumprido aos domingos! O que aconteceria se fosse feito no momento errado? Ou melhor, como eles poderiam saber que este era o momento certo de realizá-lo!?
Seu olhar caiu sobre o vitral azul, que mostrava do outro lado o sol e a lua atravessando o céu em velocidades assustadoras. De quinze, talvez agora cada ciclo do dia durasse no máximo sete minutos.
Ele resmungou novamente. — Ma-Mas se fosse assim, já estaríamos debilitados por ficarmos sem comida e bebida por tanto tempo.
— Eu sei, mas aí que tá o mais estranho. Desde que aquela coisa da Silhueta aconteceu, eu não senti nem um pouco de fome, sede, vontade de ir ao banheiro e nada desse tipo!
Nesse caso, não havia nem o que ser discutido. Uma das habilidades da estátua era a aceleração de tempo, mas ao mesmo tempo aquela Silhueta parecia ter um efeito contrário, sem contar o “Conserto” no livro da Evolução do Anjo.
— Independente do que signifique, é só outro motivo para terminarmos esse esquema dos altares o mais rápido possível! Não quero ficar aqui e descobrir o efeito desses fenômenos no meu corpo.
O veredito ecoou como uma ordem para todo o salão, entretanto, um terceiro membro presente no tribunal pareceu ter ouvido algo diferente do que foi dito.
Quando se viraram, lá estava ela, parada na divisão entre as escadas. Com o olhar petrificante, julgava as criaturas abaixo, pronta para queimá-los usando sua chama imortal.
— O que ela faz ali? Não tá na posição de sempre! Não tá nem no lugar certo!
Pela primeira vez em sua vida, James desejou que aquela fosse uma questão nunca feita.
Uma luz intensa tomou todo o salão por um instante, fazendo Jessie pensar ter tocado um dos altares por acidente, mas quem dera fosse apenas isso.
Aquelas coisas que antes se encontravam em menor quantidade no corpo da escultura, agora eram exuberantes, tanto em quantidade quanto em beleza.
As penas em suas costas cresciam numa velocidade absurda. Do limbo de pedra que ganhava as suas primeiras rachaduras, incontáveis penachos se acumularam nas costas, até formarem as duas grandes asas que ansiavam pela liberdade.
Aquele par esbranquiçado era grande o suficiente para cobrir por inteiro a imagem de pedra como se fosse um cobertor, além de ser capaz de hipnotizar as mais desesperadas presas.
A estátua já não era um filhote, mas sim um adulto que faria qualquer coisa para alcançar seu objetivo, até mesmo cumprir as mais absurdas ordens que alguém poderia imaginar.
Ela estava completa! A Fase Adulta havia sido alcançada!
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