Volume 3

Capítulo 1: Luz, aquilo que se desfaz

Parte 1

 

Algum tempo havia se passado desde a destruição da Torre do Relógio e agora já era meio dia.

De olho no cesto que havia sido empurrado para ele de forma suspeita, Raishin virou sua cabeça na direção oposta.

— Eu aprecio seu esforço para fazer isso, mas eu não quero.

Diante de sua fria recusa, a donzela de cabelo cor de pérola — Frey, transformou-se em pedra.

A cesta que ela estava carregando em suas mãos, que estava cheia de deliciosos sanduíches que pareciam ter vindo diretamente de um clube, balançou ligeiramente. A propósito, as duas grandes protuberâncias em seu peito fizeram o mesmo.

— De todo modo, provavelmente você colocou alguma coisa dentro deles outra vez, não foi? Alguma coisa venenosa.

Frey agarrou-se ao cão que a acompanhava e começou a chorar.

— Não tente usar suas lágrimas para forçar seu caminho! Eu sou o único querendo chorar aqui!

— Uu... mas você não confia nada em mim...

— Isso porque seu comportamento costumava ser suspeito, tudo bem? Este é o resultado de suas várias ofensivas, entendeu?

Enquanto Raishin estava advertindo-a, uma lâmina cheia de malícia subitamente foi posta contra seu pescoço.

Yaya havia se levantado em estado de choque. Parecia que ela queria tentar livrar o Raishin daquela situação, mas a lâmina já teria cortado o pescoço de Raishin, de modo que ela não poderia fazer nenhum movimento em falso.

Diretamente ao lado de Raishin, uma máquina humanoide cuja forma grotesca tornava difícil dizer se era um anjo ou um demônio, estava parada. Todo o seu corpo era, aparentemente, feito de lâminas. Sua principal característica era que seu corpo parecia ser completamente revestido em ângulos agudos. Obviamente, era o autômato do Loki, Cherubim.

— ...qual é o significado disso, querido vizinho, Loki?

— Se eu tivesse que dizer por mim mesmo, eu sou uma pessoa tolerante... entretanto, há três coisas neste mundo que eu não posso perdoar. Pessoas que me dão ordens. Pessoas que me desafiam. E, finalmente, escórias que fazem minha irmã chorar.

— Mesmo se eu for a vítima!? Dia após dia, eu sou o único cujo corpo é submetido a venenos aqui!

A lâmina penetrou um pouco mais fundo, cortando os protestos de Raishin.

— Ok, tudo bem! Tudo que eu tenho que fazer é comer eles, certo!?

Rangendo os dentes, Raishin finalmente resignou-se e Cherubim o soltou.

Expectativa encheu os olhos vermelhos de Frey enquanto ela estendia a cesta mais uma vez.

As pupilas dos olhos de Yaya escureceram, tornando-se semelhantes a um lago sem fundo, enquanto ela olhava para Raishin.

Raishin parecia um homem encarando a morte quando ele pegou a cesta que estava sendo oferecida a ele.

— ...você está absolutamente certa de que não colocou nada estranho dentro deles desta vez?

A cabeça de Frey balançou para cima e para baixo enquanto ela assentia.

— Então você não colocou sal ou rum ou tritões ou escorpiões em pó ou pílulas para dormir?

Balança, balança.

Raishin se preparou e pegou um macio sanduíche de ovo.

Respirando fundo, ele armou sua determinação e deu uma mordida.

— Geh!

Estava estupidamente amargo e sua garganta estava queimando. Por um breve momento, Raishin tossiu violentamente.

Raishin silenciosamente olhou para ela, fazendo com que Frey confessasse enquanto estava à beira das lágrimas.

— A professora do Departamento de Medicina... me deu um protótipo de medicamento...

— ...que tipo de medicamento é esse?

— Supostamente é algo para aumentar a fertilidade de animais como vacas e cavalos.

— Não misture algo assim dentro dos sanduíches! Espere, você mentiu para mim!?

— Uu... não foi uma mentira.

Enquanto abraçava o pescoço do cão, Frey negou com uma rara demonstração de teimosia.

— Normalmente, eu teria colocado alguma coisa entre os ingredientes dos sanduíches, mas...

— O que há com esse, ‘mas’?

— Desta vez, em vez de fazer isso, eu separei a droga dos ingredientes e a coloquei entre eles e o pão...

— Você apenas os separou! De qualquer modo, o que você está fazendo já é testes em humanos, não é!?

Com um estrondo, Yaya chutou a cadeira para o lado quando se levantou.

— Isso já é o bastante!

— Oh, Yaya. É isso mesmo, diga a ela.

— Por que você ainda não aprendeu sua lição, Raishin!?

— ...hum, eu? Por que você está irritada comigo?

— Mesmo que você tenha sido enganado todo esse tempo, você continua a comer a comida dela... não me diga que, na verdade, você ama essa megera...!?

Em pânico, Yaya virou-se para olhar na direção de Frey.

Frey corou, ainda que levemente, e desviou o olhar de forma significativa.

Yaya começou a chorar convulsivamente e, ao mesmo tempo, o chão começou a tremer.

E assim, como vinha acontecendo ultimamente— Raishin recebeu novos ferimentos leves.

— ...ela saltou?

Enquanto colocava band-aids no rosto de Raishin, Frey repetiu o que ele havia dito.

Coberto de feridas por toda parte, Raishin estava, no momento, sendo atendido por Frey. Ela estava esterilizando as feridas e colocando os band-aids de modo experiente. Embora os reflexos dela fossem terríveis, parecia que ela era habilidosa com os dedos.

Yaya havia saído emburrada. Tendo dito isso, uma vez que havia uma aura maliciosa ao redor dela quando ela saltou pela janela, ela, provavelmente, estava os vigiando de perto.

Estava barulhento lá fora. Um fluxo contínuo de estudantes fluía incessantemente para cima e para baixo da empoeirada Rua Principal. Professores e seguranças estavam por lá e até mesmo os Oficiais da Cidade haviam feito toda a viagem até aqui. Por causa da queda da Torre do Relógio mais cedo naquele dia, todos na Academia estavam parecendo gatos sobre tijolos quentes. O ar estava tomado por um tipo diferente de inquietação e de tensão, diferentes daquelas associadas à Festa Noturna.

Raishin prosseguiu, enquanto observava a agitação sem fim.

— Sim. Pouco tempo atrás, ela saltou do telhado. Quase imediatamente antes da destruição da Torre do Relógio.

— ...que tipo de pessoa era ela?

— Hm... bem, ela tinha cabelo cor de linho e usava uma boina.

Frey inclinou ligeiramente a cabeça. Com essas poucas informações, não seria possível identificar a garota.

— O que mais... ah, ela tinha esse tipo de sensação sobre ela.

Raishin estava apontando para alguém do lado de fora da janela. Um pouco atordoada na frente do bosque, estava uma estudante solitária. Ela tinha cabelos castanhos e estatura mediada. Ela era o tipo de garota que não iria deixar uma impressão duradoura, mas ela estava olhando intensamente em sua direção— uma vez que ela percebeu a linha de visão de Raishin, ela desapareceu abruptamente.

Ele estava um pouco curioso sobre o comportamento dela, mas uma vez que ele não reconheceu o rosto dela, Raishin logo se esqueceu da garota e voltou para sua conversa com Frey.

Oh, bem, ela se parecia um pouco com a Charl. Especialmente seu rosto e constituição.

— Essa é... a Henri. Provavelmente.

— Henri? Ela não é uma garota?

— Henriette Belew.

— Você disse Belew?

Em Inglês, Henriette seria Henrietta. Para seu primeiro nome ser lido em Francês, assim como o fato de ter Belew como seu nome de família— ela era igual a Charl.

Como se ela tivesse visto através das dúvidas de Raishin, Frey rapidamente falou.

— Henri é a irmã mais nova da T-Rex e também sua companheira de quarto.

— Sério? Espere, antes disso, a irmã dela sempre esteve na Academia?

— Não, ela não estava. Ela entrou recentemente...

Parece que tinha sido há uma semana atrás. Ela havia sido inscrita para o Dormitório Grifo do nada.

Como uma estudante transferida, assim como por ser a irmã mais nova da T-Rex, seria de se esperar que rumores sobre ela se espalhassem rapidamente. Raishin pensou que sua falta de conhecimento sobre o assunto se devia ao fato dele estar distante de Charl recentemente, mas parecia que Frey também não tinha muitos detalhes.

— Hum, eu achava que elas eram parecidas... mas eu não esperava que ela fosse a irmã da Charl.

Seus rostos pareciam iguais. Contudo...

Se ele a comparasse a Charl, cuja beleza era como uma elegante fada, então Henri seria uma mulher mais simples.

Seu cabelo não era dourado como o de Charl e a cor de sua pele também era ligeiramente diferente da dela. A diferença entre elas era semelhante a duas plantas pertencentes à família Rosácea. Entretanto, enquanto Charl era uma grande e florescida rosa, sua irmã era uma mera flor de morango.

Por alguma razão, ele se sentia deprimido. Era a mesma sensação de quando uma antiga ferida era desenterrada.

— Henri já tentou se suicidar seis vezes. Se contarmos a que o Raishin viu, então agora são sete vezes.

— ...sete vezes?

— A corda com a qual ela tentou se enforcar arrebentou, quando ela se envenenou, eles foram capazes de conseguir o antídoto a tempo de salvá-la...

— Heh... então eles foram capazes de ajudá-la facilmente. Eu não sei se deveria chamar isso de boa ou de má sorte.

Mesmo para o período de uma semana, sete tentativas de suicídio era um número demasiadamente grande. O quanto ela queria morrer de qualquer jeito?

Raishin cruzou os braços, imerso em pensamentos.

Uma das qualificações básicas necessárias para se entrar na Academia era, obviamente, ser capaz de pagar as mensalidades muito altas.

Embora este seja o ano em que a Festa Noturna está sendo realizada, o número de candidatos a entrar na Academia é bastante baixo, de modo que a seleção tem sido muito branda... ou foi o que eu escutei. Uma vez que os calouros não têm muita experiência de batalha, eles estariam em desvantagem caso tivessem que lutar. Mesmo assim, a família de Charl era da nobreza, entretanto havia caído em ruína. Eles não teriam dinheiro para gastar desse jeito. Isso significava que deveria haver um patrocinador por trás dela.

Abruptamente, ele percebeu que Loki havia se sentado na cama ao lado da dele com um olhar triste no rosto.

— Loki. Sabe de alguma coisa?

— ...se eu pudesse dizer por mim mesmo, eu sou uma pessoa tolerante, mas as pessoas que espalham informações infundadas me enojam.

É por isso que não vou dizer nada— o isso é o que parecia.

— O que há com isso? Não comece e, em seguida, deixe as pessoas penduradas no meio da frase.

— Quando eu comecei a dizer alguma coisa? Não coloque palavras na minha boca, idiota.

— Você é um idiota. Sempre com picuinhas e encontrando falhas e deslizes menores nas pessoas, você é o exemplo clássico de uma pessoa de cabeça dura. É tão óbvio que você está emitindo uma aura forte que diz ‘fale comigo’.

— Que aura? Seu idiota sonhando acordado, não misture seus delírios orientais com coisas que não existem no mundo real.

— É uma figura de linguagem. Um artifício literário. E também, não zombe do Leste, seu idiota Ocidental.

— Silêncio, maior idiota do mundo.

— Maior idiota do sistema solar.

— Maior idiota da Via Láctea.

— O grande idiota, que ultrapassa a quarta dimensão!

Com veias aparecendo, os dois começaram a brigar como se fossem crianças pequenas. Frey pareceu ter, de repente, se lembrado de algo e então, disse em voz alta para impedi-los de lutar,

— Ah... falando da T-Rex. Ela está desaparecida desde ontem.

As orelhas de Raishin animaram-se. O que ela disse?

— Ela não voltou para o Dormitório... A responsável estava completamente alvoroçada por causa disso.

Raishin não esperou para ouvir o final. Ele saltou da cama e, descalço, correu para fora da enfermaria.

 

Parte 2

 

Poucos minutos depois, Raishin estava no lobby, tendo uma acalorada conversa telefônica.

— É por isso que eu estou te dizendo para colocar a Shouko na linha! Eu tenho algo que preciso confirmar com ela urgentemente!

— Raishin, por favor acalme-se. A mestre no momento está com o Major e— oh, mestre.

Soava como se alguém tivesse arrancado o telefone do outro lado. Quase imediatamente depois, alguém, que não era a Irori, estava na linha.

— Você é barulhento, garoto. Eu podia escutá-lo por todo caminho até o outro quarto.

— Shouko!

— Você é muito lento para telefonar. Eu fiquei preocupada depois que eu soube que a Torre do Relógio havia sido destruída, sabia?

— ...sinto muito. O pensamento de entrar em contato com você não passou pela minha cabeça.

— Bem, parece que nada aconteceu a você e isso que é importante. Embora pareça que você fez a Yaya fazer algo bastante imprudente.

Raishin engoliu em seco. Agora que ela mencionou isso, ele quase saltou para sua própria morte.

Não querendo levar esta conversa adiante e também uma vez que este não era o momento para tal conversa, Raishin rapidamente mudou de assunto.

— Além disso, bem... eu tenho um favor para lhe pedir.

— Eu pareço uma fada madrinha para você?

— Bem... não, mas...

— Você também, garoto. Você precisa saber qual é o seu lugar.

O que Shouko estava dizendo era que ele não deveria ‘se meter em mais situações desnecessárias’.

Claramente, Shouko havia visto através dos pensamentos de Raishin.

— Você se esqueceu do nosso acordo? Você não está livre para morrer quando e como quiser, lembra?

— ...não é como se isso seja algo que vai realmente colocar minha vida em risco. Eu vou apenas dar uma olhada nas coisas.

— Eu sugiro que você saia.

A voz da Shouko rachou. Nunca tendo confrontado uma reação como essa antes, Raishin estava completamente sem palavras.

— Volte para a sua cama neste instante. Não irei tolerar nenhuma outra palavra de reclamação.

Sem lhe dar tempo para responder, o clique do telefone indicou que ela havia desligado.

Shouko provavelmente estava brava. Sua voz estava misturada com irritação.

Deixar aquela Shouko irritada... isso não era algo que qualquer um pudesse fazer com facilidade. Mesmo em um momento como esse, Raishin sentia-se um pouco orgulhoso por ter conseguido se manter sob sua pele.

Embora, tendo dito isso, Raishin também estava sentindo-se pior do que nunca. Ele rangeu os dentes e desligou o telefone.

— Raishin...

Ele não tinha certeza de quando ela havia surgido, mas de pé atrás de Raishin, estava uma ansiosa Yaya.

— A Shouko disse ‘não’, não foi?

— Sim.

— Ótimo. Bem, então seja um bom garoto e volte para a Enfermaria. Se você estiver realmente interessado no desaparecimento da Charlotte, a Yaya irá procurar por ela.

— Comece a guardar as coisas, Yaya. Nós vamos receber alta do hospital agora mesmo.

Raishin abruptamente girou sobre seus calcanhares e, apressadamente, começou a caminhar de volta para a Enfermaria.

— Eh— Espere, Raishin!

Uma vez dentro da Enfermaria, Raishin tirou as roupas hospitalares.

Envoltas por ataduras, partes do seu peito apareceram através do tecido branco. Seu abdômen podia ser visto claramente. Frey saltou, vermelha como uma beterraba, e fugiu do quarto com Rabi.

Enquanto Loki olhava com desconfiança, Raishin vestia seu uniforme escolar. Seu braço direito estava se movendo tão bem quanto ele queria, mas a dor atacava toda vez que ele se movia, então ele estava tendo dificuldades para se trocar. Ao vê-lo assim, Yaya tentou ajudá-lo, mas já que ela só estava tocando em lugares estranhos, Raishin deu um peteleco na testa dela, para mantê-la afastada.

Uma vez que ele tinha acabado de se vestir, ele foi para o consultório médico ao lado.

O médico de plantão em tempo integral, o Dr. Cruel, estava aquecendo um copo de sopa. O cheiro de consommé fez o estômago de Raishin resmungar. Recusando o aroma, ele aproximou-se de Cruel.

— Ah, é você. O que há com essa roupa?

Por trás dos óculos, as pupilas dos olhos de Cruel brilharam com uma luz afiada. Um arrepio percorreu a espinha de Raishin. Por alguma razão, ele sentiu que este homem não era apenas um médico comum.

— Eu não acho que seja provável, mas não me diga que você quer receber alta agora mesmo?

— Não tem o mesmo impacto quando o elemento surpresa é perdido.

— ...você realmente entende as implicações do que você está dizendo?

Arrumando seus óculos com um dedo, Cruel olhou para Raishin, como se o estivesse avaliando.

— Bem, eu não sou contra a ideia de destruir homens. Se eu fosse te dar alta agora, em outras palavras:

— Eu estaria apto para voltar a participar da Festa Noturna, certo?

— Exatamente. Você voltaria a ocupar o centésimo assento deste momento em diante.

Simplificando, ele teria que aparecer no palco da Festa Noturna desta noite em diante.

E tudo isso enquanto Raishin nem mesmo podia trocar de roupa de forma satisfatória.

Raishin olhou para Yaya. Ela estava inquieta, mas permaneceu em silêncio. Como se ela estivesse segurando-se para dizer algo, ela olhava para Raishin com tristeza em seus olhos.

Raishin permaneceu em silêncio e Cruel tinha um olhar estupefato no rosto.

— Sério, você deve estar louco. Eu nem sequer removi seus pontos ainda. Volte a fazer coisas exageradas agora e você irá apenas piorar suas feridas. No pior dos cenários, seu corpo nunca mais será o mesmo.

— Não, elas já estão curadas. Eu voltarei em alguns dias para retirar os pontos.

— Já estão curadas, ele diz... bem, por falar nisso, essa explosão de antes— não, eu acho que nós ainda não sabemos se foi mesmo uma explosão. O ponto mais importante é que a única coisa que foi destruída foi a Torre do Relógio.

De repente, ele mudou de assunto. De olho no médico duvidoso, Raishin seguiu escutando.

— Uma das garotas da equipe médica me falou sobre isso. Supostamente, a responsável pela explosão é a T-Rex, Charlotte Belew.

— ...!

— Hmph. Você realmente não pode ler a expressão de um oriental... é o que eu gostaria de dizer, mas isso seria uma mentira. Seu rosto te trai. Quem é você? É o namorado dela?

— Sim, exatamente.

Yaya vacilou, tendo sido atingida pelo golpe de um martelo invisível.

Instavelmente tropeçando em seus próprios pés, um instante depois ela começou a irradiar uma aura assassina violentamente feroz. Seu cabelo ficou de pé, balançando de um lado para o outro como se fossem serpentes. Raishin apressadamente continuou.

— Aqui, eu já falei demais, então agora você vai me dar alta? Claro, deve ser óbvio que eu não sou namorado dela.

Houve um longo suspiro. Cruel adotou uma postura resignada.

— Faça como quiser. Seu idiota.

— É isso que eu pretendia. Obrigado por cuidar de mim durante todo esse tempo.

Raishin imediatamente virou-se e saiu do escritório.

Sem sequer olhar para trás, ele avançou até o corredor.

— Espere, Raishin!

Assim que ele chegou à entrada, Yaya agarrou o braço esquerdo de Raishin.

— Acalme-se, Yaya. Você sabe que essa coisa de ser namorado dela era uma mentira, certo?

— ...eu vou pegar os detalhes sobre vocês mais tarde. Mais importante ainda, por que você está com tanta pressa?

— ...eu conheço esse tipo de sentimento.

Seu peito estava quente. Sua respiração era tensa. O que ele sentia era um mal-estar.

Ele teve uma premonição cheia de desespero e ruína. Muito em breve, ele já não seria mais capaz de desfazer o que havia sido feito. Disso, ele tinha certeza.

Foi quando ele estava avançando através da fumaça preta, vagando pelo mar de fogo.

Era o mesmo sentimento de quando ele estava procurando por sua irmã e a perdeu.

— Por que você está... tão desesperado em ajudá-la? Charlotte é alguém que um dia estará diante do Raishin como uma inimiga a ser derrotada... e ela é uma forte inimiga. Além disso, o Raishin gosta da Shouko, não é? Uma vez que a Shouko já lhe disse que não, então por que você ainda...

— ...eu... isso é...

— Por favor, não se esqueça do seu objetivo. E também... não se esqueça da sua posição.

Ela estava certa. Raishin era apenas o cão do exército. Seu papel na Academia, ao menos oficialmente, era apenas uma pequena parte em um esquema maior de coleta de informações.

Além disso, ele não poderia usar a Yaya para ir encarar o perigo apenas devido ao seu próprio egoísmo. Seu papel era o de se esgueirar na Festa Noturna e espionar os mais recentes tipos de Machinarts desenvolvidos pelos mais importantes centros de poder— e isso tudo só aconteceu depois da Shouko mediar em seu nome. Mesmo que houvesse um entendimento comum entre eles de que ele poderia se vingar, ele não tinha permissão para exagerar nas coisas aqui.

Naquele momento, ele ouviu o latido alto de um cão.

Vários cães estavam reunidos no corredor, todos latindo com voz alta e ofegante. Haviam cinco deles. Um collie, um Pastor Alemão, um grande Dinamarquês, um Dachshund e o cão parecido com um lobo. Seus ombros e pés estavam cobertos com uma armadura. Eram autômatos do tipo Garm.

Parada no meio do pelotão, estava Frey, que tinha um olhar estranhamente afiado no rosto.

— Você está procurando pela T-Rex, certo?

— Isso é o que eu estava planejando fazer...

— Eu também vou ajudar.

Raishin pensou sobre isso durante um breve momento.

Frey era uma rival na Festa Noturna. Hoje à noite, eles iriam se encontrar e, talvez, um deles fosse até mesmo eliminado. Frey tinha uma razão para participar daquela batalha e ela não iria desistir tão facilmente da competição. Na verdade, para ela, a Festa Noturna deveria ser sua maior prioridade.

Ele queria que Frey voltasse sua atenção para a Festa Noturna. Ele não pensava nela apenas como uma rival, mas sim como sua amiga.

Contudo...

O olhar de Raishin caiu sobre os cães.

Cada um deles era uma Bandoll. Mesmo que fossem apenas cães normais, sua habilidade de busca seria indiscutível. Além disso, haviam treze deles ao todo. Em vez de ter apenas o Raishin e a Yaya procurando, muitas mãos tornariam aquele trabalho um pouco mais leve.

Raishin ponderou se deveria recusar a ajuda dela, por ela não ter obrigação de fazer isso, ou se deveria aceitar a gentileza dela. No fim, ele decidiu aceitar a bondade dela.

— Nesse caso, estou em dívida com você.

Aceitando a oferta de Frey, ele se curvou para ela em gratidão.

 

Parte 3

 

O Comitê Executivo da Festa Noturna estava localizado no terceiro andar do Grande Salão.

Na Comissão, as decisões eram tomadas por três pessoas: um representante dos professores, um representante dos alunos e pelo Diretor da Academia. Para evitar que os adultos influenciassem excessivamente o processo, o representante dos alunos foi nomeado o presidente da Comissão, para equilibrar a distribuição de poderes.

E agora, uma reunião estava prestes a acontecer em uma pequena sala.

Em um canto da sala, o representante dos professores estava tendo uma conversa amigável com seu assistente. Um tapete escarlate cobria todo o chão e cortinas vermelho vinho estavam penduradas nas paredes. Uma grande mesa redonda em estilo Vitoriano estava posicionada no centro da sala. Haviam quatro cadeiras ao redor dela e o presidente do corpo estudantil já estava sentado em uma delas.

Um prisma triangular feito de mármore tinhas as palavras ‘Presidente Cedric Granville’ gravadas nele.

Esse era o nome do jovem sentado na cadeira. Com um pequeno e esguio corpo, ele quase parecia ser uma garota. O ar que ele exalava era aquele das linhagens aristocratas. Cruzando as pernas elegantemente, ele estava tomando chá preto em uma xícara de porcelana.

As velhas portas se abriram, revelando uma garota solitária caminhando para dentro da sala.

Suas feições eram simples e não causavam nenhum tipo de impressão duradoura. No entanto, havia uma pomba branca descansando em seu ombro, o que fazia com que ela se destacasse um pouco.

O jovem colocou sua xícara na mesa e pediu que a garota fosse em sua direção.

— Ah, você voltou, Ravena. Eu tenho um petisco. Tenho certeza que você vai achar interessante. É sobre o Penúltimo— parece que, de alguma forma, ele está determinado a encontrar a Charlotte Belew.

Baixando a voz, ele falou suavemente, de modo que apenas a garota pudesse escutá-lo.

— É tão idiota como chorar, sério. Uma pessoa tão ferida se esforçar tanto pelo bem de uma garota que, eventualmente, será uma inimiga que ele terá que encarar na Festa Noturna. Devo dizer que a T-Rex é inesperadamente popular.

Os ombros da garota tremeram violentamente e ela olhou em silêncio para o jovem.

— Eu não vou deixar você ir atrás dele.

Os olhos da garota se arregalaram. Parecia que a decisão do jovem era extremamente difícil de aceitar.

— Você entende, certo? Eu já disse que se você ficar vagando por aí, eu vou ficar muito ofendido.

O jovem sorriu alegremente, mas não havia veneno atado naquele sorriso enquanto ele falava.

— Quero dizer, você já está com problemas, sabe? As 40 horas com as quais concordamos já se passaram. E devido ao seu fracasso idiota, a situação agora está prestes a piorar mais ainda.

A garota mordeu o lábio, seu olhar hesitava enquanto ela não se decidia.

O jovem riu levemente e, em seguida, estalou os dedos.

Naquele instante, o corpo da garota começou a mudar.

Seu cabelo e sua pele começaram a verter, como se fossem pétalas de uma flor, revelando uma cor nova e mais fresca por baixo.

Seu cabelo brilhava com um tom dourado e sua pele tornou-se lindamente branca.

A pomba em seu ombro começou a se transformar e assumiu a forma de um dragão cor de aço.

Notando a mudança, o professor olhou em sua direção. O jovem também tinha uma expressão de surpresa em seu rosto. Atenções não desejadas eram desnecessárias. A garota rapidamente saltou pela janela.

Montada sobre o enorme dragão, ela desapareceu no céu.

Se alguém visse sua figura enquanto desaparecia, sem dúvidas diriam que se tratava de Charlotte Belew.

 

Parte 4

 

Na Rua Principal que atravessava a Academia...

Mesmo no centro, onde a Torre do Relógio costumava ficar, a passagem tinha sido completamente interditada.

A Torre havia desmoronado sob seu próprio peso, estava completamente diferente do seu formato original. Agora, ela era apenas uma montanha de escombros. Olhando para aquilo, era difícil de se imaginar como ela parecia em seus dias de glória.

Diante de nenhuma outra possibilidade, Raishin teve que fazer um desvio pelo bosque, em direção ao Sul, com os outros logo atrás dele.

Yaya correu até Raishin e sussurrou em seu ouvido.

— Raishin, se continuarmos caminhando nessa direção, você sabe que vamos acabar chegando ao Dormitório Grifo, certo?

— Sim. Antes de qualquer coisa, vamos fazer algumas perguntas para a irmã da Charl.

A testa de Yaya enrugou-se. Seu descontentamento era óbvio.

— A atitude que ela teve ontem não foi normal. Ela definitivamente sabe alguma coisa sobre a Charl.

— Como você pode ter certeza?

— Chame isso de instinto. Eu sou bom em ler as pessoas. Você não sabia disso?

— Não, o Raishin com certeza é uma pessoa densa.

Yaya o rebateu com um tom de voz deprimido. Mesmo a Frey assentiu incisivamente a isso, concordando.

Uma aliança havia surgido entre as duas garotas em algum ponto desconhecido por Raishin. Ele também se perguntava quando é que aquelas duas haviam começado a se dar tão bem. Raishin estava um pouco curioso quanto aquela resposta, mas uma vez que elas comecem a se dar bem torna as coisas mais fáceis, ele deixou aquilo de lado.

De repente, a atmosfera no bosque havia mudado. A vegetação selvagem e as ervas daninhas deram lugar a árvores bem ordenadas e aparadas. Caminhando um pouco mais para frente, as paredes brancas do Dormitório Grifo surgiram diante dos olhos deles.

Chegando até a frente do Dormitório, uma mulher veio correndo pela entrada.

Parecia que ela tinha vinte e poucos anos. Ela tinha um rosto suave e parecia bastante refinada.

Ela era, provavelmente, a responsável pelo dormitório. Mantendo um olho em Raishin, ela começou a repreender a Frey.

— Agora olhe aqui. Você não pode trazer um garoto para este lugar. Estudantes do sexo masculino são proibidos de entrar nos Dormitórios Femininos.

— Uu... não é isso. Nós estamos procurando pela Henri...

A cor no rosto da responsável mudou. Havia uma tensão complicada em sua voz quando ela disse.

— Entendo. Infelizmente, a Henri desapareceu mais uma vez.

— Eh...

— Eu vou procurá-la agora. Esperemos que nada... estranho aconteça novamente.

Com um adeus, ela saiu correndo de forma afobada. Frey a observou ir e, em seguida, virou-se para encarar Raishin com um olhar perturbado no rosto. Raishin girou sobre seus calcanhares.

— É muito provável que isso seja algo relacionado a vida dela. É melhor nos apressarmos e também procurarmos por ela.

— Espere. Raishin... espere aqui um momento.

Dizendo isso, Frey correu para o Dormitório sem dar nenhuma explicação.

Raishin e Yaya se entreolharam. Eles não entenderam a razão por trás da ação dela, mas uma vez que ela havia deixado seus preciosos cães para trás, ela certamente voltaria em breve.

Eles esperaram impacientemente por ela. Finalmente, depois que alguns minutos preciosos haviam se passado, Frey apareceu.

Oito novas caras estavam seguindo-a. Obviamente, eram todos autômatos do tipo Garm.

— Desculpe por fazê-los esperar...

— Você é lenta. Você estava apenas pegando eles?

— Não. Eu também trouxe isso...

A coisa que Frey tirou de seu bolso era branca com listras azuis atravessando-a. Era um pedaço de pano feito de algodão e com formato triangular. Apenas olhando para aquilo, Raishin poderia dizer que era macio.

Tendo descoberto o que era aquilo, Raishin encontrou-se corando incontrolavelmente.

— Por que você está segurando essa coisa!? Onde é que você conseguiu isso!?

— No quarto da Henri.

— Em outras palavras, essa é a calcinha da... quer dizer, o que você planeja fazer com isso?

— Isso...

Frey reuniu todos os cães e estendeu a roupa de baixo de Henri. Os cães começaram a farejá-la e, momentos depois, todos começaram a latir.

Frey soprou um apito. Todos os cães, exceto Rabi, se dispersaram. Confirmando a intenção de sua senhora, os cães correram em direções diferentes.

(Entendo, rastreando-a pelo cheiro.)

Vendo o brilho emocionado nos olhos dele, Yaya cobriu a boca com a mão, surpresa.

— Raishin! Se você quer cheirar calcinhas assim tão desesperadamente, então a Yaya está disposta a...

— Eu não estava pensando em nada disso! Você é a única pervertida o bastante para pensar em algo assim!

Depois de um momento, um grito pode ser ouvido à distância.

Rabi levantou-se lentamente. Frey sentou-se nas costas dele.

— Eles... encontraram a Henri.

— O quê, já?

Balançando a cabeça, Frey avançou nas costas de Rabi. Raishin e Yaya apressadamente correram atrás deles.

Os uivos intermitentes continuavam à distância. Aumentando lentamente em número, uma harmonia acabava de nascer.

Frey corria por entre as árvores, nunca perdendo de vista a direção da qual vinham os uivos. Raishin sentiu suas pernas enfraquecerem no caminho, tendo que se esforçar para continuar a acompanhá-la.

O pior cenário passou pela sua mente.

E se a Henri que os cães encontraram não fosse nada além de um corpo morto?

Eles chegaram ao lado de um pequeno lago, que estava localizado no campo de práticas de batalha.

Os cães estavam na base de um jovem carvalho ainda verde e estavam cercando-o completamente. Uma vez que eles notaram a presença de Frey, eles pararam de uivar e começaram a abanar os rabos.

Em meio aos ramos do carvalho, havia uma donzela parecida com um gatinho.

Ela provavelmente havia planejado se enforcar, pois havia uma corda amarrada em um galho. No entanto, parece que ela não tinha força de vontade para continuar com isso no momento. A garota estava abraçada ao tronco da árvore, gritando com os olhos arregalados.

— Não—! Cães—! Shoo... shoo, vão embora... alguém me ajude!

Era a Henri gritando. Isso era bom. Isso significava que ela ainda estava viva.

Sua figura trêmula fazia com que ela parecesse exatamente como um pequeno animal. Mesmo que ela fosse se matar apenas há alguns momentos atrás, agora ela estava praticamente implorando por ajuda, sem se importar com o que os outros pensariam dela.

Muito resumidamente, em pânico, a Henri tentou se levantar, mas acabou caindo do galho.

Raishin apressadamente correu até ela, mal conseguindo pegá-la a tempo. Usando os joelhos para amortecer o impacto, ele sentiu uma pontada de dor percorrer todo seu corpo até chegar a sua clavícula enquanto ela caía em seus braços.

— Não. não... os cães, os cães!

— Acalme-se. Está tudo bem. Esses caras são completamente domesticados. Eles não vão...

— Hii! Um homem—!

Violentamente empurrado para longe, Raishin foi pego de surpresa e acabou caindo de costas.

Henri odiava cães, mas parecia que ela odiava homens ainda mais.

Raishin levantou-se, um pouco infeliz com a falta de gratidão após ele tê-la salvado, e olhou para Henri.

Rodeada por treze cães, ela estava prestes a desmaiar.

— Ei, Henriette Belew...

Ao ouvir seu nome, Henri saltou devido a surpresa.

— Onde está a Charl? É verdade que ela não voltou para o Dormitório na noite passada? Será que ela tem alguma coisa a ver com a destruição da Torre do Relógio hoje mais cedo? Por que você quer tanto morrer?

Henri puxou sua boina para baixo, escondendo o rosto atrás dela, e permaneceu em silêncio.

— Diga alguma coisa. Se você sabe onde a Charl está no momento, então...

— Espere um pouco, Raishin. Você não deveria fazer todas essas perguntas a ela de uma só vez.

Estranhamente, Yaya havia o interrompido. Com um olhar compreensivo em seu rosto, o peito de Yaya estufou orgulhosamente enquanto ela dizia.

— Por favor, deixe isso com a Yaya. Henriette, por favor responda honestamente. Você só está fingindo todas essas tentativas de suicídio para conseguir chamar a atenção do Raishin, estou certa?

O punho de Raishin desceu, silenciando Yaya.

Yaya esfregou a cabeça, com lágrimas vazando de seus olhos, mas Raishin a ignorou e virou-se para Frey, fazendo um sinal para ela com os olhos. Parecia que Henri odiava todas as coisas. Ao invés de prosseguir com sua linha dura de questionamentos, talvez fosse melhor que uma estudante do mesmo dormitório que ela tentasse uma abordagem mais suave.

Sua linha de raciocínio, portanto, concluiu que ele precisava da ajuda de Frey. Com um leve aceno de cabeça,

— Uu... Henri. Você só está fingindo todas essas tentativas de suicídio para conseguir chamar a atenção do Rai...

O punho de Raishin desceu mais uma vez, atuando como o homem sério diante do comentário do idiota.

Ignorando Frey, que agora estava esfregando a cabeça por causa da dor, Raishin caminhou até Henri.

— Não... um homem... e um estrangeiro também!

— Você não pode escapar. Se você sabe onde a Charl está, diga-me agora mesmo.

Com essas palavras, Henri fechou a boca com força. Essa resposta— ela sabia de alguma coisa!

— Conte-me! Se você não fizer isso, eu vou mandar os cães atacarem você!

Lendo a atmosfera, os tipos Garm começaram a latir alto. Henri gritou de susto antes de cobrir a cabeça com as mãos e lamentar em voz alta.

— Como você pode deleitar-se de prazer ao assistir a esses animais devastarem uma pobre donzela, seu maníaco doente e assustador!? Querida mãe, eu sinto muito... eu... eu estou prestes a perder a minha pureza para animais e para este homem bestial!

De repente, uma intenção assassina surgiu por trás de Raishin, fazendo-o tremer involuntariamente.

Como se fosse uma Machine-doll, ele virou-se lentamente. De pé atrás dele, havia um demônio respirando. Um demônio tão assustador que faria demônios comedores de gente saírem correndo de medo.

— Raishin... você... você tinha esse tipo de interesse...

— Agora espere um pouco... acalme-se, Yaya. Pense nisso de forma racional.

— Mesmo que você nem mesmo beije a Yaya... aquela mulher... você estava prestes a... e com as feras...

Algo estalou dentro da Yaya.

— Se você vai ser roubado por outras mulheres, então a Yaya prefere matar o Raishin e depois se matar!

Enquanto gritava com os olhos arregalados, Yaya saltou para frente, carregando um pesado punho de ferro. Raishin se esquivou por pouco. O soco de Yaya acertou o carvalho, cortando-o ao meio de forma limpa.

Suor frio escorreu pelas costas de Raishin.

(Espere... a Yaya não estava brincando?)

Yaya aproximou-se dele, cambaleando de forma instável. Sua vida estava claramente em perigo! Enquanto ele estava momentaneamente distraído, Henri aproveitou a chance para fugir como uma lebre assustada.

— Caramba! Frey, vá atrás dela!

No entanto, não houve resposta. Sentindo que havia algo errado, Raishin virou-se e teve o maior choque de sua vida.

Um olhar frio que ele nunca havia visto antes, estava agora estampado no rosto de Frey. E a pessoa para quem ela estava dirigindo esse olhar era ele mesmo.

— Raishin... você é o pior... seu pervertido.

Com uma voz quase como um sussurro, ela escondeu os cães atrás dela, como se estivesse tentando protegê-los contra ele.

Para Frey, eles eram sua importante família. Se ela pensasse que eles iriam ser usados para fins impuros, é claro que ela ficaria irritada. Raishin sentiu uma enxaqueca chegando e o sentimento de querer chorar tomou conta dele.

— Você também não! Não tenha a ideia errada!

Era inútil. Não havia modo de esclarecer as coisas com nenhuma das duas. Em algum lugar profundo de seu coração, Raishin desejou que Sigmund, ou ao menos que a Charl, estivesse ali ao seu lado.

 

Parte 5

 

Yaya estava deitada de costas, enquanto Raishin havia se afundado em um monte de areia, ambos descontroladamente ofegantes.

Uma vez que a Yaya era uma Bandoll, ela podia gerar energia mágica sozinha. No entanto, mesmo dito isso, a energia gerada por ela não era infinita. Ficando sem energia mágica, ela ficou esgotada.

Yaya ainda estava fungando, mas o mais importante é que ela havia se acalmado. Raishin, aliviado, voltou-se para Frey, que estava sentada em uma sombra, agarrando-se em seus joelhos.

— Você também deveria ter sido mais razoável, tudo bem? Eu não sou um pervertido nem nada assim.

— Uu... eu acredito em você.

— Não minta! Você está duvidando de mim com todo o seu coração agora mesmo, não está!?

— Devo ir atrás da Henri?

As bochechas da Frey ficaram levemente coradas enquanto ela tentava retomar o assunto em questão.

— Eu sei onde ela está agora... no momento, a Revina está seguindo ela.

— Oh, bom trabalho. No entanto, eu acho... que podemos deixar a Henri de lado por enquanto.

Frey inclinou a cabeça, confusa.

— Do jeito que ela está agora, ela definitivamente não vai nos dizer absolutamente nada. Tentar forçá-la a isso neste momento seria uma perda de tempo.

— Mas se nós a deixarmos sozinha, ela poderia tentar cometer suicídio novamente...

— Talvez. Entretanto, eu acho que ela ficará bem.

— ...?

— É por isso que eu estou dizendo que primeiro precisamos procurar a Charl.

Ao ouvir o nome de Charl, Yaya levantou-se com um salto.

— Mas Raishin, nós não temos nenhuma pista de onde a Charlotte poderia estar. Mesmo que você tenha dito que era o namorado dela.

— Não guarde rancor sobre isso. Esqueça que eu disse aquilo, certo?

— Uma vez que você disse que deveríamos procurá-la, isso quer dizer que você tenha alguma ideia de por onde deveríamos começar?

— Eu não vou dizer que tenho uma ideia definida sobre onde procurar, mas eu acho que a Charl... o mais provável é que ela esteja em algum lugar dentro da Academia.

— Essa é a intuição de um namorado?

— Eu já te disse para não ficar presa a isso. Não é exatamente uma intuição... é mais como um desejo.

Raishin levantou-se abruptamente, fazendo a areia se espalhar pelo chão. Frey também se pôs de pé.

— Devo ir buscar uma calcinha da T-Rex, então?

— Não fique fixada em roupas íntimas.

— Então, o sutiã dela...

— Prometa! Diga que você vai parar de se fixar na roupa íntima das outras pessoas!

Frey ficou um pouco infeliz, mas afastou-se para buscar algo que permitisse que eles começassem sua caçada.

— Ah, espere.

Raishin olhou para cima, por entre as lacunas da copa das árvores, e disse enquanto notava a cor do céu.

— É quase hora da Festa Noturna. Você deveria voltar.

Frey precisava gerenciar a cuidar de seus cães. Uma vez que eram treze deles, apenas alimentá-los deveria ser uma tarefa formidável. Ele nem sequer queria pensar em como ela faria para levá-los ao banheiro.

— ... então, o que você vai fazer, Raishin?

— Eu vou procurar pela Charl. Não se preocupe, assim que o sol se pôr, eu irei para lá.

— Mas...

— Está tudo bem. Desculpe por pedir que você lidasse com isso durante o dia inteiro.

Com grande relutância, Frey pulou nas costas de Rabi e partiu. Os outros cães reuniram-se em um grupo e foram atrás deles.

— Isso parece com alguma cena saída de um mito. Correndo por aí com todos aqueles cães atrás dela.

— Então, resumindo, você está dizendo que a Frey é como uma Deusa, Raishin...

Yaya chutou uma pequena pedra. Raishin riu e, em seguida, colocou a mão em sua cabeça.

— Você é a minha única Deusa. Eu estou contando com você, minha Deusa da Vitória.

— Raishin... <3

— E também, eu acho que a Shouko também é uma Deusa, mas de um jeito diferente.

— A Yaya acharia bom ser esse tipo de Deusa também...

Uma encolhida Yaya murmurou isso de forma angustiada, faltando-lhe o vigor de sempre.

— Agora então, mesmo que eu tenha dito que vamos procurar por ela, por onde deveríamos começar...

Raishin suavemente bateu o punho em sua mandíbula, imerso em pensamentos.

Se Charl realmente ainda estivesse dentro dos terrenos da Academia, ela estaria em algum lugar que fosse difícil de ser encontrado. Um lugar em que nem o pessoal da segurança, os membros do comitê ou mesmo os professores poderiam encontrá-la. Ele se perguntou se havia mesmo um lugar assim dentro da Academia.

(Hum, se eu pedisse ajuda para a Professora Kimberly, ela estaria disposta a me escutar?)

Essa poderia ser a melhor escolha que ele tinha por enquanto. Tendo em vista que a Kimberly também possuía alguma influência dentro da Associação de Magos... ou ao menos era isso que parecia. Embora isso também significasse que ele teria que lidar com o sarcasmo dela por ter pedido outro favor, havia algum mérito em falar com ela.

Fora isso, o que mais ele poderia fazer...

— ...bem. Antes de tudo, vamos voltar para o Dormitório Grifo.

— Você está planejando roubar as calcinhas da Charlotte?

— Eu não sou esse tipo de pervertido. Eu apenas quero dar uma olhada no lado da Henri no quarto.

— Eh, mas agora mesmo você disse que não íamos procurar pela Henri... ah, eu entendi. Eu te seguirei, Raishin, mesmo que seja para a cama de outra mulher.

— Nós não vamos fazer nada parecido com isso, tudo bem? Além disso, isso não é seguir, é perseguir.

De qualquer modo, os dois começaram a se dirigir para o seu destino.

O sol já estava se pondo e, desse modo, o interior da floresta havia se tornado um pouco escuro.

Raishin tropeçou na grama grossa e em raízes de árvores, mas continuou a correr, mesmo baixando a velocidade.

Mais ou menos na metade do caminho até o Dormitório, de repente, as folhas das árvores diante deles começaram a farfalhar.

A presença de alguém podia ser sentida—era alguém forte— e grande!

— Yaya, pare!

Segurando a parceira, Raishin a forçou a parar subitamente.

Quase imediatamente depois, o vento acima de suas cabeças começou a soprar.

Com sua cauda varrendo os ramos das árvores, uma grande criatura descia do céu.

Com um baque, a criatura caiu pesadamente no chão, revelando-se como um dragão cor de aço com quatro asas.

Era óbvio de que não se tratava de um animal selvagem. O olhar em seus olhos transmitia a sensação de que ele possuía um intelecto brilhante. Sua figura digna estava repleta de grandeza e beleza, o que fazia com que fosse difícil descrevê-lo como um monstro.

Havia uma garota sentada nas costas do dragão.

Charlotte Belew.

Uma das poucas pessoas que poderia ser considerada como dona de um potencial para ser o próximo Wiseman e a pessoa com quem Raishin frequentemente almoçava.

Em vez de seu tradicional uniforme escolar, Charl estava vestida de preto. Embora ela não estivesse vestindo uma armadura propriamente dita e um elmo, o peito e os ombros, assim como seus pontos vitais, estavam protegidos por uma armadura protetora. Um assassino ou alguém das forças armadas não pareceria fora de lugar se estivesse vestido da forma como ela estava. Aquela roupa significava que ela havia ido para uma batalha.

Yaya a olhou com cuidado, embora não da mesma forma como normalmente faria, antes de se colocar na frente de Raishin. Raishin a puxou de volta, indo em direção à frente do dragão por si mesmo.

— Yo. Matar aula para dar um passeio? Não achei que você fosse do tipo que aproveita a vida noturna.

Ele a cumprimentou com a mesma voz despreocupada de sempre.

— Eu tenho várias perguntas para te fazer. Vamos tomar alguma coisa em algum lugar.

— ...infelizmente para você, eu não tenho nada a dizer.

A resposta de Charl foi curta e fria. Era como se ela tivesse perdido absolutamente toda a emoção— como se seu rosto fosse feito de aço. Ela continuou com seu tom inexpressivo,

— Eu estou te avisando. Não tente se aproximar da Henri.

— Eu recuso.

Por um breve momento, houve um lampejo de irritação em seu rosto enquanto ela deixou escapar a fachada inexpressiva.

— No entanto, se você apenas voltar para a Academia, eu posso considerar. Como vai ser?

— ...idiota. Que incrível idiota. Como sempre, você é incapaz de ler o contexto.

Um olhar assassino brilhava nos olhos de Charl.

— Eu estou te dizendo para não se envolver comigo.

O corpo de Charl foi preenchido com uma forte energia mágica, fazendo a atmosfera ao redor dela oscilar.

Sua intensidade era aterrorizante. Combinado com a aura avassaladora que o enorme dragão emitia, Raishin podia sentir seu cabelo ficando de pé.

— Se você não obedecer— eu vou te matar.

Os olhos de Yaya arregalaram-se e, em seguida, ela rapidamente olhou na direção de Raishin.

Raishin encolheu os ombros e falou com um tom de voz confuso.

— Você não disse que iria me proteger apenas alguns dias atrás?

— Cale-se! Eu disse que vou te matar, então eu vou! É por isso que eu estou dizendo para você não se envolver mais comigo!

A máscara inexpressiva que ela estava usando havia sido completamente destruída. Virando o rosto, ela chutou as laterais do dragão.

O dragão levantou voo com uma facilidade que desmentia seu enorme tamanho. Subindo mais e mais, eventualmente ele ficou fora de vista.

Tudo o que restou foi a forte rajada de vento e alguma vegetação espalhada por ele.

— ...você é a idiota, Charl.

Raishin suspirou antes que um sorriso fosse esculpido em seu rosto.

— Como eu posso ir embora quando você está fazendo um rosto como esse na minha frente?



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