Volume 2

Capítulo 3: Uma pergunta estúpida

Parte 1

 

Embora soubesse que não seria visto, Raishin ainda estava tenso quando passou pelos portões da Academia.

Normalmente, ele seria capaz de passar por ali por conta própria, mas agora ele tinha Komurasaki ao seu lado. Os canos de ferro saindo através do muro não estavam atirando fogo, mas isso o deixava estranhamente nervoso.

Era como estar na mira de uma arma e tudo o que ele podia fazer era manter aquele silêncio insuportável.

Após passarem pelos portões, eles caminharam um pouco, antes de pararem diante de um automóvel.

— É o carro das Forças Armadas— Vamos lá, entre!

Com sua mão sendo puxada por Komurasaki, ele entrou no carro. O motorista parecia ter sido avisado de antemão. Uma vez que ele sentiu o carro vibrar quando “alguém” entrou, ele deu a partida.

Cortando através da cidade, eles foram na direção de uma área mais rural. Saindo da estrada principal, eles pegaram uma estrada rural, a qual estava cheia de lama devido a uma combinação de chuva e falta de sol.

Para evitar que levantassem suspeitas, o carro parou antes que o orfanato ficasse a vista.

Com Komurasaki mostrando o caminho, eles prosseguiram a pé.

Os prédios diante deles pareciam pertencer a algum fazendeiro rico.

Dois andares e feitos de pedra. Haviam dois deles e ambos foram construídos de forma soberba. No centro do terreno havia um alto silo erguido, assim como um pequeno galpão de madeira, que parecia servir de casa para os animais.

— Isso é... um celeiro, certo?

— Sim. Mas hum, eu realmente não sinto nenhum cheiro de gado—

Com espasmos em seu pequeno nariz, Komurasaki cheirou ao redor. Ela estava certa, o cheiro ruim de esterco bovino estava ausente.

— Não importa como você olhe, isso não parece em nada com um orfanato. Tem certeza que esse é o lugar certo?

— Definitivamente é aqui— Eu deveria caminhar 43.189 e 22.546 quilômetros a partir da casa da Shouko.

Komurasaki não estava enganada. Havia uma placa acima da entrada para as instalações e a palavra “Orfanato” claramente estava gravada nela. Julgando pela aparência, as pessoas encarregadas pareciam ser de algum monastério nas proximidades.

Passando sob a placa, eles entraram na construção mais próxima, que era o pequeno galpão.

O lugar parecia ter sido usado anteriormente para o descanso dos peões. Um homem, que parecia ser algum tipo de sentinela, estava ali, mas obviamente não podia notá-los. Bocejando, ele olhava na direção da estrada rural.

A espingarda inclinada ao lado dele chamou a atenção de Raishin.

(Esse lugar é ridiculamente seguro.)

Não havia nada ameaçando a segurança do lugar. O sentinela não precisava estar armado, mas ele estava.

Eles se dirigiram para o centro do terreno, onde ficava o edifício suspeito.

A forma como o edifício fora construído era ainda mais impressionante de perto. Ele era enorme e parecia resistente. Não havia dúvidas de que as pessoas que construíram aquele edifício eram especializadas.

Estranhamente, porém, todas as janelas eram protegidas por barras de ferro.

— Ah, veja, Raishin! Cãezinhos!

Puxando a jaqueta de Raishin, Komurasaki virou-se na direção do celeiro.

A enorme entrada estava aberta, permitindo que o interior pudesse ser visto. Haviam gaiolas de metal lá dentro, mas ao invés de gado, elas continham cães.

Extremamente tentada por eles, parecia que Komurasaki queria entrar. O espírito livre dela era como o de uma borboleta que acabara de sair do casulo. Não vendo nenhuma outra maneira de contornar aquela situação, Raishin virou-se na direção do celeiro.

Um grande Dinamarquês, Golden Retriever, Pastor, Doberman e um Collie. Além desses, haviam diversos outros híbridos dentro das gaiolas. Eles pareciam ser de raças que eram usadas exclusivamente como cães policiais ou do Exército. Uma armadura cobria as pernas e os ombros de todos eles.

Se ele tivesse que adivinhar, ele diria que todos eram autômatos.

As raças eram diferentes, mas não haviam dúvidas de que eram o mesmo tipo de autômato que Rabi.

Raishin entrou no celeiro com Komurasaki seguindo logo atrás dele, mas os cães estavam dormindo e não notaram a presença deles. Parecia que eles não estavam operando com toda sua capacidade, embora fosse possível que eles estivessem em seu estado normal. Mas a forma oculta de Komurasaki estava enganando seus sentidos.

— Eles são tão fofos— Eu quero acariciar um também—

Komurasaki havia enfiado o braço através da gaiola de ferro, tentando tocá-los, mas seus braços eram muito curtos e ela não conseguia alcançá-los.

Mesmo com o pequeno braço branco dela balançando desajeitadamente, os cães autômatos não acordaram. A contração de suas orelhas fazia com que parecessem cães reais.

De repente, Raishin parou, sentindo uma forte sensação de desconforto.

(Isso é estranho. Esses cães, mesmo sendo autômatos—eles não são um pouco realistas demais?)

A forma como eles haviam sido construídos fazia com que fossem o extremo oposto do autômato de Loki, Cherubim. Na verdade, eles pareciam bastante com Yaya. Autômatos que lembravam criaturas vivas.

(Realmente era necessário fazer com que eles fossem tão parecidos com cães reais?)

Se eles eram para uso militar, estaria tudo bem mesmo se eles tivessem uma aparência mais mecânica.

Coçando a cabeça, ele inspirou fundo.

No centro, havia um quarto feito de pedra.

Esta era a única construção estranha dentro do celeiro. Ela tinha uma porta de aço espessa e um selo, que parecia ser o resultado de alguma arte mágica, fora posto sobre ela. As janelas estavam fechadas, protegidas com barras de aço. A aparência daquilo trazia a mente dele uma certa coisa.

—— Uma prisão.

— Raishin, o que há de errado—? Você está interessado no que está lá dentro?

— Vamos abrir.

— Eh? Mas, se você abrir a porta, vai acordar todos os cães!

— Eu não vejo nenhuma barreira que vá disparar um alarme. Se nós abrirmos e fecharmos sem fazer barulho, não vai haver nenhum problema.

Tirando algumas ferramentas de sua bolsa, Raishin começou a arrombar a fechadura. Nenhuma terceira parte poderia ter identificado o barulho que ele fazia. Mesmo os cães não mostraram nenhuma reação ao som de Raishin arrombando a fechadura.

Com um clique final, a porta estava destrancada.

Ela se abriu devagar.

— ... Está vazia?

Não havia ninguém dentro.

Komurasaki e Raishin entraram no quarto e, quando ele virou-se para fechar a porta atrás dele.

— Que negócios vocês têm aqui, pirralhos?

Inesperadamente, uma voz pode ser ouvida.

 

Parte 2

 

Um elegante prédio de três andares erguia-se na beira da floresta.

Parecia a propriedade de um nobre. Com um exterior refinado e com uma excelente arquitetura, aquele era o Dormitório Grifo para as garotas. Apenas as melhores e mais brilhantes eram permitidas a fixar residência ali.

No terceiro andar, descansando na borda de uma janela, Sigmund estava fechando os olhos.

Ele estava tomando banho de sol. Embora o Verão já estivesse próximo, ainda havia uma brisa refrescante soprando, então o ar estava frio. Apesar disso, Sigmund esticou suas asas.

— Sigmund—

De repente, alguém o chamou de baixo.

Olhando para baixo, ele viu uma garota de cabelo preto olhando para cima.

Vestida em um elegante quimono, tratava-se de um autômato oriental. Os detalhes de sua aparência externa eram requintados, fazendo-a parecer com um humano real.

Sigmund voou em sua direção.

— O que foi, Yaya? É raro vê-la sozinha.

— Onde está a Charlotte...?

— Ela está dormindo. Ela não conseguiu dormir muito na noite passada.

O motivo era a Festa Noturna. Mesmo que ainda não fosse a vez dela de entrar na batalha, Charl ainda estava nervosa com isso. O motivo, obviamente, era porque ela estava preocupada com Raishin—mas ele não podia contar isso para Yaya.

Isso não parecia ter passado pela mente de Yaya e, ao invés disso, ela estava de cabeça baixa, com um olhar abatido no rosto.

— Hm. Você parece triste. Aconteceu alguma coisa?

Yaya silenciosamente segurou a barra de seu quimono.

— Por que não nos sentamos primeiro?

Ele apontou para um banco no jardim. Seguindo o conselho dele, Yaya sentou-se.

Batendo as asas, Sigmund voou e pousou ao lado dela.

— O que foi? Você veio para conversar sobre algo, certo?

Yaya não respondeu. Ele decidiu mudar de assunto.

— Onde está o Raishin?

Dessa vez houve uma resposta. Depois de hesitar por um instante, Yaya falou:

— Uma coisa aconteceu... então ele teve que sair um pouco.

— Entendo. Então ele foi investigar mais sobre a Frey?

Yaya visivelmente encolheu-se.

— Eu imaginei. E, obviamente, você tem um problema com isso, mas não sabe o que fazer com esses sentimentos.

— Mas isso é porque...! A Festa Noturna é hoje. Raishin cruzou o oceano apenas por essa ocasião. Então, em um momento tão importante, não importa que tipo de ordem ele receba, ele não deveria ter que... E também, Raishin é muito bom para aquela megera. Mesmo ela já tendo tentado matá-lo...!

A insatisfação em seu tom foi perdendo força e suas palavras sumindo.

Yaya não estava com raiva. Era uma mistura de inveja e de ansiedade e isso claramente estava consumindo-a.

O olhar em seu rosto naquele momento era exatamente igual ao de uma garota humana.

O tom em sua voz mudou quando ela, em meio a um suspiro, perguntou.

— Sigmund, você já pensou: “Eu quero ser humana”?

— Hm. Esta é uma pergunta estúpida— mas descartá-la assim seria muito simples. Pelo modo como você formulou a pergunta, você obviamente já pensou em se tornar humana, certo?

— Garotas humanas são tão... injustas. Se Yaya... se Yaya também fosse humana... então...

Ela levou as mãos ao rosto. Lágrimas estavam se formando na base de seus olhos.

— Se você fosse uma garota humana, você não seria capaz de proteger o Raishin.

— !

— Você não seria capaz de se tornar o escudo dele e, certamente, também não seria capaz de se tornar a espada dele.

Mordendo o lábio, Yaya olhou para Sigmund com uma expressão de dor.

— Você é um autômato esplêndido. De fato, provavelmente você está no topo em termos de construção. Eu não sei quais são os objetivos de Raishin— mas ele certamente não é qualquer um, uma vez que ele objetiva o trono de Wiseman. Desde que ele a escolheu para ficar ao lado dele, isso não quer dizer que você é vital para a Festa Noturna?

— ...

— Seu papel não é algo que qualquer garota possa desempenhar. E nesse momento, o que Raishin mais precisa não é de uma garota normal, que ele possa encontrar em qualquer lugar, mas sim de uma existência como a sua.

Sigmund perguntou para confirmar,

— Sabendo disso, você ainda deseja ser humana?

— Yaya...

Ela franziu a testa enquanto continuou,

— ... está bem como um autômato.

Ela sorriu levemente. Era um sorriso cheio de tristeza, um pouco de clareza e também um pouco de dor.

— Mesmo que o Raishin não olhe mais para a Yaya, Yaya ainda vai protegê-lo. Mesmo que o Raishin se apaixone por uma garota humana e pare completamente de se importar com a Yaya. Mesmo se ele fizer coisa como andar de mãos dadas com uma megera, ou beijá-la, ou ter um caso secreto...

Agarrando o banco com força, Yaya começou a arrancar pedaços dele.

— Acalme-se. Não destrua a propriedade de escola.

— No fim, eu não posso suportar isso!

O cabelo dela levantou-se, ela gritou na direção do céu.

Recuando devido a força assassina de Yaya, Sigmund falou.

— Você é extremamente como uma humana e Raishin é um homem que trata os autômatos de forma justa. Do meu ponto de vista, a razão pela qual ele não está cedendo aos seus encantos não é porque você seja uma humana ou um autômato, entende?

Yaya inclinou a cabeça, um pouco confusa.

— O que você quer dizer?

— Em outras palavras, isso pode ser um pouco delicado, mas a sua natureza humana é um pouco— Abaixe!

— Hum?

Ela não o fez a tempo. Com um som abafado e pesado, algo atingiu Yaya diretamente.

Foi um ataque semelhante a um enorme golpe de martelo.

Uma grande quantidade de sangue jorrou para todos os lados, como se fosse uma fonte, quando Yaya foi arremessada do banco, sendo jogada a muitos metros de distância.

 

Parte 3

 

Um arrepio percorreu a espinha de Raishin.

A voz era quase um sussurro, mas era claramente hostil. A presença do inimigo estava acima deles a direita.

Atirando-se para frente, ele se virou.

Olhando para cima, havia uma saliência sobre a porta e algo preto estava parado lá.

— ... Rabi?

Era um cão. Parecia um lobo, com suas orelhas pontudas contraindo-se.

Komurasaki também estava surpresa, os olhos dela arregalando-se.

— O cãozinho falou...?

— Sim, eu sou um cão. Sim, eu falo.

O cão olhava friamente para baixo, na direção dos dois— não, isso não era verdade. Seus olhos estavam estranhamente fechados. Suas pálpebras estavam fechadas, mas ele olhava na direção em que eles estavam, como se soubesse de alguma coisa.

— Mas, essa é uma questão completamente diferente. Vocês sabem que cães são extremamente territorialistas, certo? Entrando em meus domínios sem permissão, vocês, pirralhos, não deveriam ao menos ter a cortesia de se apresentar?

Soou como uma velha senhora. Até mesmo as palavras escolhidas foram como as de uma velha senhora.

Por um instante, Raishin pensou que ela era parecida com Sigmund. Entretanto, embora Sigmund também possuísse inteligência, ele ao menos parecia mais jovem. Este cão, por outro lado, parecia não ter vida sobrando dentro dela, como um velho as portas da morte.

Raishin observou o cão de perto—então fez uma pequena reverência, enquanto se apresentava.

— Desculpe por isso. Eu sou Akabane Raishin, e eu venho do Japão.

— Espere, Raishin!

Komurasaki estava em pânico. O velho cão soltou um “Oh?”, com admiração em sua voz.

— Vejo que você não faz as coisas pela metade, pirralho. Anunciando seu nome, mesmo que você seja um intruso.

— Bem, você disse que essa era a coisa certa a se fazer.

— Minha inteligência, assim como minha habilidade de fala, podem ser comparadas a dos humanos. Eu me pergunto, isso seria algo bom ou ruim para vocês, pirralhos?

— Você ser capaz de falar torna as coisas muito mais fáceis. Como você foi capaz de detectar nossa presença?

— Que pirralho atrevido. Você não apenas teve coragem de se esgueirar até aqui, mas também está, descaradamente, perguntando sobre o segredo do funcionamento desta arte mágica.

O velho cão estava olhando para Raishin com diversão—não, isso não estava certo. Os olhos dela ainda estavam fechados. Entretanto, seu focinho estava apontado na direção de Komurasaki e Raishin e sua cabeça estava inclinada para baixo “como se ela estivesse olhando para eles”.

E então, ela prontamente o respondeu.

— Eu tenho um sensor especial instalado em mim.

— Mas a forma oculta de Komurasaki é impecável. Você não deveria ser capaz de ver nossas sombras, ou de nos ouvir ou sentir qualquer coisa que venha de nós.

— Um sensor passivo pode ser enganado, mas o meu é um sensor ativo.

— Ativo?

Raishin inclinou a cabeça, confuso, mas Komurasaki pareceu ter entendido. Ela, nervosamente, começou a olhar para o entorno deles.

— Parece que a garotinha aí entendeu.

As presas do velho cão estavam a mostra. Parecia que ela estava... sorrindo?

— Não se preocupe, pequena. Os filhotes estão todos dormindo.

— Filhotes? Então aqueles cães autômatos lá fora são todos suas crias?

— Apenas alguns. Os outros não são meus. Agora mesmo você mencionou o Rabi, bem, eu sou o protótipo da série Garm, a qual Rabi—ele é meu filho legítimo, aliás—pertence.

— ... O circuito mágico Sonic.

— Oh, você é bem informado. Sim, nós temos o circuito mágico Sonic instalado dentro de nós. Nós lançamos ondas sonoras e, quando elas voltam após colidir com coisas como vocês, nós podemos perceber as mudanças no comprimento de onda e somos capazes de enxergar o mundo, assim como de ouvir.

Depois de escutar o que ela havia dito, Raishin percebeu uma coisa.

— Você é uma Bandoll, não é?

— Esse não é um termo que você possa usar levianamente. O que o faz pensar isso?

— Eu não sinto a presença de um marionetista por perto. Mesmo assim, você é capaz de usar artes mágicas. A maneira como você move seus olhos e ouvidos também é muito realista. Acima de tudo, você disse que Rabi é o seu “filho”. Isso significa que você possui partes vivas em você. Ou eu estou enganado?

— Hoho, parece que você não é apenas um idiota qualquer...

A presença dela mudou. Agora era fria e, com intenção assassina, ela falou.

— Eu só teria que latir uma vez e vocês estariam em apuros. Então, o que você vai fazer agora?

Raishin começou a rir.

— ... O que é tão engraçado?

— Você está sendo muito dramática. Se você realmente quisesse fazer isso, teria feito muito tempo atrás.

— ...

— Aliás, eu notei que você tem mantido sua voz baixa, para que os outros cães não acordem, por nossa causa. O que há com isso?

— ... Você realmente é um pirralho atrevido. Mas, suponho que também possua alguma sagacidade.

O velho cão riu com ironia. Então, ela falou abertamente.

Eu já fui designada ao sacrifício. Acho que isso pode ser sorte ou azar, depende de para quem você pergunta. E, acima disso, no momento eu sou mantida prisioneira aqui. Eu já não tenho nenhuma obrigação para com as pessoas que gerem este lugar.

— Sacrifício? Por que?

— Que pergunta estúpida. Isso não é óbvio? É porque eles não sentem necessidade de realizar minha manutenção. Como estou agora, o custo de minha manutenção—

— Não fode comigo!

Komurasaki recuou, surpresa e assustada, com a explosão de Raishin. O velho cão também estava surpreso. As pálpebras dela finalmente se abriram e ela olhava para Raishin diretamente.

— ... Desculpe. O sangue apenas me subiu à cabeça.

Balançando a cabeça, ele riu de sua explosão.

— Acho que sou um pouco antiquado. Eu odeio essa tendência atual de sempre atribuir eficácia, custo e estatísticas a tudo. Eu odeio especialmente quando tentam colocar um preço em criaturas vivas.

Os olhos de Komurasaki estavam cheios de paixão. O velho cão mais uma vez olhou para Raishin.

Inquieto devido a ambos os olhares, Raishin subitamente foi atingido por uma ideia.

— Diga. Você gostaria de vir conosco?

— ... O que você disse?

— Aposto que é muito tedioso ficar enfiada nesse pequeno espaço abafado. Se você nos seguir, acredito que seria capaz de se livrar do tédio, mesmo que apenas por pouco tempo. Além disso, há também uma Festa prestes a começar hoje à noite.

O velho cão lançou um olhar duro e longo para Raishin antes de dar uma pequena risada.

— Você é um pirralho bastante interessante. Por que você se esgueirou até aqui?

— A verdade é que eu estou sendo alvo de uma garota chamada Frey. Ela já tentou me matar algumas vezes.

O olhar no rosto dela mudou. Com seus dentes a mostra, ela praticamente rosnou a frase seguinte.

— Qual é o significado disso? Que tipo de relacionamento você tem com essa garota—ou melhor, por que essa garota age dessa maneira com você? Você fez algo a ela?

— Eu também gostaria de saber a resposta para essa pergunta. Eu soube que se viesse até aqui, eu poderia descobrir alguma coisa.

— ...

— Nós temos que voltar para a Academia a noite. Assim, por exemplo, se houvesse alguém para nos guiar pelo lugar, seria muito útil.

Houve um momento de silêncio.

Em seguida, ela se levantou. Suas pernas pareciam estar um pouco vacilantes, mas era como se a vida estivesse voltando a ela. Ela estava descansando cerca de dois metros acima do chão, mas ela facilmente saltou e aterrissou ao lado deles. Comparada aos outros cães, ela parecia muito mais forte e resistente.

O velho cão sentou-se e empurrou o pescoço na direção de Raishin.

Havia uma coleira reforçada com metal ao redor do pescoço dela. Havia uma luz branco-azulada saindo da coleira—uma corrente mágica e ela estava em uma barra de ferro próxima. Roubando energia mágica para manter a corrente, aquele era o dispositivo que roubava sua liberdade.

— Você pode me livrar disso?

Raishin enfiou a mão em sua bolsa e tirou de lá uma lima e uma serra. Uma vez que elas haviam sido feitas para serem portáteis, elas eram pequenas e difíceis de usar. Mesmo assim, depois de lutar por alguns minutos, a coleira foi rompida.

Finalmente livre, o velho cão se dirigiu a entrada, sua cauda balançando suavemente.

— Sigam-me. Eu irei guiá-los pelo orfanato.

— Isso será de grande ajuda.

— Entretanto, fiquem alertas. O que vocês irão ver é um vislumbre do inferno na Terra.

O olhar dela estava testando-os. Um cão negro com um olhar tão intenso, trazia a mente a figura de um cão infernal guardando as entranhas do inferno. Komurasaki recuou, mas Raishin apenas deu de ombros e sorriu cinicamente.

— Bem, isso não é algo que eu gostaria de ver... Mas eu preciso saber mais sobre as circunstâncias da Frey.

— Então, você quer prosseguir?

— Agora essa é uma pergunta estúpida.

— Tudo bem, então vamos. Mas primeiro, use sua arte mágica em mim também.

— Entendido... Falando nisso, nós ainda não sabemos qual é o seu nome.

— Yomi.

De todos os nomes que ela poderia ter, ela tinha que ter o mesmo nome do rio que levava as pessoas para o submundo, Yomi.

Raishin pensou que o nome dela fosse estranhamente adequado.

Em pouco tempo, eles encontravam-se ao lado do inferno que ela havia mencionado.

 

Parte 4

 

Um pouco depois do Auditório Central, a Enfermaria estava localizada dentro da Faculdade de Medicina.

A Academia era considerada o maior instituto de educação em Maquinagem em todo o mundo das artes mágicas. Dito isso, haviam milhares de estudantes ali.  A Enfermaria tinha várias salas de consulta, mas havia apenas um médico que ficava lá permanentemente.

No momento, havia uma professora da Academia, vestida com um jaleco branco, diante deste escritório.

Não preciso dizer que se tratava de Kimberly. Ela estava arrastando um baú, que parecia muito pesado.

Kimberly bateu na porta e a agitação da atividade no interior foi imediatamente por um silêncio nada natural.

(Não me diga... Estou muito atrasada?)

Deixando o baú no chão, Kimberly enfiou a mão no bolso interno.

Tranquilamente tirando de lá um punhal, ela se preparava para arrombar a porta e invadir... mas antes que ela pudesse fazer isso, a porta foi aberta por dentro.

Uma garota seminua irrompeu pela porta anteriormente fechada.

A parte superior de seu corpo estava desarrumada e ela mantinha suas roupas de baixo próximas ao peito, tentando mantê-las fora de vista.

Observando a figura da estudante se afastar, Kimberly soltou um longo suspiro. Guardando o punhal, ele pegou o pesado baú e entrou no escritório.

Havia um médico lá dentro, assobiando inocentemente, enquanto reunia alguns registros.

Se ele fosse dez anos mais novo, ele seria considerado um belo jovem. Ele parecia um pouco cansado, mas sua boa aparência estava praticamente intacta. Rugas adornavam seu rosto e sua gravata estava confortavelmente ajeitada em torno de seu colarinho. A aparência como um todo passava uma impressão acadêmica, mas ele definitivamente não era um tipo de flor delicada. Seu olhar era afiado e havia uma terrível intensidade nele.

Kimberly olhou para ele com o mais frio dos olhares.

— Incorrigível como sempre, Doutor.

— Não, não, isto é um mal-entendido, Professora. Eu obviamente estava tratando dela. Pense assim. Nós estávamos no meio de uma consulta agora, certo? Eu precisei usar o estetoscópio, então eu tive que remover a roupa dela.

— Que seja. Eu não estou aqui para interrogá-lo sobre seus assuntos privados. Mas eu o aconselho a não sair sozinho a noite. Seria terrível se essa coisa balançando entre suas pernas caísse misteriosamente, estou certa?

Seu belo rosto murchou e ele fechou bem as pernas. De alguma forma nervoso, ele olhou para Kimberly.

— Se você não está aqui para bisbilhotar, então que diabos você faz aqui!? Você acabou com minha diversão. Você está com dores abdominais? São cólicas menstruais? Se você está tendo problemas com a menopausa, eu sugiro que você procure um médico especializado em qualquer outro lu—

*Whoosh*

Uma tesoura, que estava em cima da mesa, voou na direção dele.

Naturalmente, foi Kimberly quem a atirou, com grande velocidade e destreza.

Ela roçou na testa do médico e ficou presa na parede.

— Eu realmente acho que você deveria segurar essa sua língua inútil por um tempo, não acha? Ou talvez seja melhor que eu a corte?

— ... Peço profundas desculpas.

— Não se preocupe, não vou demorar. Eu apenas quero sua opinião sobre algo.

— Minha opinião?

— Sobre Raishin Akabane.

No momento em que ela mencionou aquele nome, a atmosfera congelou instantaneamente.

Depois de um tempo, o médico pegou um prontuário, com um sorriso frio no rosto.

— Whew. Então, finalmente chegou a isso.

— Finalmente?

— Eu sempre pensei que os militares, ou a Academia ou alguma agência de inteligência de algum lugar viria bater aqui cedo ou tarde.

— ... Por que você pensaria isso?

— Bem, as pessoas ficariam interessadas no garoto. Afinal, aquele problemático humilhou o herdeiro da linhagem Kingsfort, até mesmo conseguindo roubar sua Entrada para a Festa Noturna. Por causa disso, o Senhor Walter perdeu muito de seu prestígio. Você leu o Times esta manhã?

— Que pergunta idiota. Eu tenho o hábito de ler jornais enquanto tomo meu café todas as manhãs.

— Heh. E pensar que aquela garotinha que nunca escreveu nem mesmo uma única carta de amor antes, acabaria crescendo e se tornando uma esplêndida mulher.

O som do bisturi prendendo-se na parede fez com que ele sentisse um frio na espinha.

Suor frio começou a escorrer por sua testa.

— Volte ao tópico atual, por favor. Você não notou alguma coisa sobre o Penúltimo?

Enxugando o suor, o médico olhou fixamente para Kimberly, antes de suspirar em resignação.

— Suas feridas curam muito devagar.

— Hm... Agora que você mencionou, ele mesmo disse a mesma coisa.

— Ele tem uma hematopoiese muito lenta, a divisão celular dele também é lenta e a taxa de absorção nutricional também é ruim.

— ... O que está havendo com ele?

Segurando as mãos para parar a perplexa Kimberly, ele continuou.

— Entretanto, isso só se aplica aos resultados dos primeiros dias dele aqui. Posteriormente, sua taxa de recuperação voltou ao normal. Não, na verdade, se compararmos com todos os senhores e senhoritas que estudam nesta Academia, a constituição dele é soberba. As feridas dele se curam diante de seus olhos.

— ... Em outras palavras?

— Os resultados para os quais estamos olhando agora são os de sua frequência de recuperação. É apenas logo após uma batalha que sua taxa de recuperação é drasticamente prejudicada. Parece até que o “poder de cura” dele está sendo consumido por alguma outra coisa. É verdade— É como pagar uma conta. Contas são assustadoras, certo, Professora?

— Não misture coisas estranhas nisso. Qual é o seu diagnóstico?

— Alguma coisa está sugando a força vital dele.

— —— Alguma coisa como um autômato precisando de energia para se auto reparar, estou certa?

— Pensar assim seria natural. Mas, normalmente, você usaria energia mágica para isso. Usar força vital para algo assim seria muito estranho.

— Nesse caso, o que está fazendo isso?

— Não, eu não estou dizendo que você esteja errada. A menos que alguém o tenha amaldiçoado ou que seja um novo tipo de doença da qual eu nunca ouvi falar, a única explicação é que o autômato dele está sugando sua força vital.

— No entanto... Algo assim é mesmo possível?

— Não vejo nada estranho nisso. De fato, isso é bastante normal. Isso é, se você for o proprietário de uma Bandoll.

Kimberly silenciosamente trancou a porta e sentou-se em uma cadeira.

— Conte-me os detalhes. Agora.

O interesse dela havia despertado. Ela podia não ter se dado conta, mas seus olhos brilhavam misteriosamente.

O médico suspirou e olhou para Kimberly com pena nos olhos.

— Você está se metendo em confusão outra vez.

Kimberly fingiu ignorância.

— Do que é que você está falando?

— Eu vi a tese que você escreveu para o seu doutorado. “Aplicação prática da Maquinagem com a finalidade de uma guerra Anti-Máquinas”— um tema bastante simples.

— Você está tentando encontrar falhas na minha tese? Bem, refletindo sobre isso agora, eu acho que faltou um pouco de conteúdo e eu suponho que algumas partes tenham sido escritas de modo um pouco presunçoso...

— Não estou dizendo nada assim. Estou dizendo que a tese em si era ruim. Mesmo para um pesquisador, existem linhas que não devem ser cruzadas. Qualquer um que visse sua tese teria compreendido imediatamente. Ela estava caminhando perigosamente na direção de pesquisa proibida.

A expressão no rosto de Kimberly tornava evidente que ela não estava interessada naquele sermão.

Mas o médico estava ainda mais determinado a fazê-la ouvir, então ele continuou.

— O fato de você ter se tornado uma professora desta Academia já é algo do qual você deva se orgulhar. Você deveria abandonar essa linha questionável de pesquisa e começar a procurar sua própria felicidade.

— E eu suponho que sua felicidade seja dar passes para as estudantes?

— É isso mesmo, mas além disso, eu— Não, isso já é o bastante para mim. Estou dizendo para você ir recuperar e aproveitar a sua juventude, Amy.

— Por favor, me chame de Senhorita Kimberly, Doutor. A garota chamada Amy já morreu durante aquela guerra. Além disso... é um pouco triste, mas eu não posso mais deixar de ser uma simples pesquisadora. Mesmo se isso fosse o que eu desejasse.

— ... O que você quer dizer com isso?

Kimberly levantou o baú que estava aos seus pés e bateu com ele na mesa.

Destrancando-o, ela o abriu.

Dentro do baú, arrumadas de modo que não havia a menor diferença entre elas, haviam pilhas de notas.

A boca do médico se abriu.

— Eu quero que você vigie atentamente o Raishin Akabane. Obviamente, este será um acordo exclusivo entre nós dois. E, de agora em diante, você pode, essencialmente, considerar o Governo Britânico e a Academia como seus inimigos.

Com um sorriso diabólico surgindo em seu rosto, Kimberly perguntou.

— Então, Doutor, você prefere este dinheiro ou a bala de um atirador como recompensa por sua cooperação?

— ... Essa é uma pergunta idiota, Professora.

O médico riu. Encontrando o olhar afiado de Kimberly com o seu próprio,

— É claro que vou ficar com o dinheiro.

Sua voz melosa estava repleta de bajulação.

 

Parte 5

 

— Este é o quarto da Frey.

Yomi guiou Raishin e Komurasaki até o segundo andar do orfanato.

O segundo andar era composto por pequenos quartos alinhados de forma organizada, muito parecido com um dormitório estudantil. Parecia que o quarto de Frey era o mais a sudoeste.

Abrindo a porta, Komurasaki entrou e soltou um “Uau—“ com admiração em sua voz.

Havia uma fotografia presa em uma parede.

Era uma foto de um garoto alegre e de uma garota sorridente. Também havia um casal sorrindo gentilmente.

Raishin foi atraído pela garota. Ela estava sorrindo inocentemente. Aquela era Frey muito antes de Raishin a conhecer. Naquele momento, o rosto dela estava cheio de alegria. Era uma expressão que ele não conseguia imaginar a Frey atual fazendo. Não havia nenhum traço de medo no rosto dela.

Era apenas natural que Frey pudesse sorrir, todos os humanos podiam. Mas, ironicamente, apenas quando Raishin ficou chocado ao ver que ela podia sorrir, é que ele se deu conta de que, na verdade, ele nunca tinha visto a atual Frey sorrir.

Família. Algo que Raishin havia perdido. Ela havia sido roubada dele.

E Frey também, ela havia perdido sua família.

Os irmãos na foto eram bastante jovens. Aquela foto, provavelmente, havia sido tirada antes que eles fossem para o orfanato.

— Os pais da Frey eram marionetistas muito habilidosos... ou foi o que eu escutei.

Yomi disse isso com alguma tristeza em sua voz, enquanto olhava para o retrato.

— Eles eram de uma trupe Americana que fazia shows de marionetes para o público.

— ... Frey é o verdadeiro nome dela?

— Não, é o código de identificação dela. Foi dado a ela depois que ela veio para cá. Mesmo eu não sei o verdadeiro nome dela.

— Como os pais dela morreram?

— Eles perderam o controle dos autômatos que estavam manipulando e eles ficaram violentos. Isso foi bem no meio de uma apresentação, imagine. O público ficou coberto pelo sangue da mãe dela.

— ... Foi a própria Frey que te contou isso?

Yomi assentiu em silêncio, confirmando.

Komurasaki cobriu a boca com as mãos. Seus olhos gradualmente foram ficando úmidos e trêmulos, com lágrimas se formando.

Uma garota tão inocente ter que testemunhar um acidente tão trágico pessoalmente. Raishin estava sem palavras.

Sua mente repetiu as cenas de seu próprio passado. O mar de fogo e sangue. E, então, a sensação de perda. Frey estaria suportando a mesma dor pela qual ele havia passado...?

— Eu não sei dos detalhes ou nada sobre ela estar tentando matar você... mas felizmente ou infelizmente para ela, Frey sempre foi uma garota gentil.

Yomi disse solenemente a Raishin.

— Ela sempre era boa conosco também. Todos os dias, ela passava seu precioso intervalo escovando nosso pelo. Sem termos tido nada além de comprimidos de nutrientes ao longo de toda a nossa vida, ela nos alimentava com carne.

O pelo de Yomi estava gasto e não tinha nenhum brilho.

Em outras palavras, não havia ninguém naquela instalação que fosse responsável por escovar o pelo dos cães.

— Obviamente todos a amavam. Entretanto, por causa disso, ela acabou sendo escolhida.

— ... Para ser a mestre do Rabi?

— Isso mesmo. Ela passou por cerca de cinco mil horas de aulas e de práticas antes de, finalmente, entrar na Academia.

Cinco mil horas em um ano não era brincadeira. Raishin não podia se imaginar tendo tanto tempo de aulas.

— ... Eu ainda não sei se todo este calvário foi algo bom ou ruim para ela.

Raishin olhou para a garota na foto, queimando aquela imagem com sua retina, antes de responder Yomi.

— Eu não acho que tenha sido algo ruim. Afinal, alguém como você estava por perto, então ao menos ela tinha uma boa família.

Os olhos de Yomi arregalaram-se, antes dela rir levemente.

Homens de branco aproximaram-se pelo corredor e Raishin e as outras passaram cautelosamente por eles.

O próximo lugar para o qual Yomi os levou era o primeiro andar de uma construção diferente. Era aquela com barras de ferro nas janelas.

O interior do prédio passava a mesma sensação de uma escola. Haviam grandes salas, que aparentavam ser salas de aula, assim como lousas instaladas nas paredes e até mesmo um campo para Educação Física.

No centro do que parecia ser o refeitório da escola, uma visão inacreditável cumprimentou Raishin.

— Eles não estavam mentindo quando disseram que aqui era um orfanato... mas ainda assim...

Suor frio se formava em sua pele a medida em que ele olhava ao redor da sala.

(Que diabos está havendo aqui...!?)

As crianças sentavam-se lado a lado em fileiras, sistematicamente consumindo suas refeições. Pão e sopa. Uma salada e carne pareciam ser o menu do dia. Ninguém estava conversando e as crianças comiam silenciosamente, como um bando de robôs.

Todas as crianças tinham uma peculiaridade.

Todas elas tinham cabelos cor de pérola e pupilas avermelhadas.

Elas eram exatamente iguais a Frey e Loki!

— Eu gostaria de dizer que todos eles são irmãos... mas algo como isso seria completamente impossível.

Embora eles tivessem a mesma cor de cabelo e olhos, os rostos e os corpos de todos eles eram diferentes.

Frey e Loki eram parecidos um com o outro. No entanto, eles não eram nada parecidos com nenhuma das crianças aqui. Além disso, eles não apareciam na foto no quarto da Frey. Era muito improvável que todos tivessem alguma relação sanguínea com ela.

Uma raça separada, então? Ou um único grupo étnico?

Ou aquele era um lugar para a reunião de um certo grupo específico...?

Não, isso não seria provável. Não havia chances de que algo tão conveniente assim aconteceria.

— Eles são Crianças Prometidas.

Yomi respondeu as dúvidas de Raishin.

Era a primeira vez que ele escutava aquele termo. Yomi ficou surpresa ao ver o olhar vazio no rosto de Raishin.

— Eu nunca pensei que pudesse haver uma pessoa na Academia que não saiba quem eles são. Dentro da raça humana, existem aqueles com uma forte afinidade para a energia mágica. Para cada cem mil bebês, apenas um deles nasce.

— Ei, agora... Isso não era um orfanato?

— Todos eles são órfãos, não há erro nisso. Eles foram recolhidos de todas as partes do mundo— da Britânia, do continente e até mesmo do subcontinente Indiano.

— Ainda assim, eles deveriam ser um-em-cem-mil e, convenientemente, há tantos assim em um orfanato...

— Eles não são verdadeiros... é o que você quer dizer?

— ...!

Então, esse era mesmo o caso?

Komurasaki olhava confusa, mas Raishin já estava começando a entender.

Mas algo assim poderia mesmo ser feito?

Isso era possível? Isso era mesmo permitido?

Dando as costas para eles, Yomi disse em uma voz baixa e deprimida.

— Vamos. Há algo ainda mais repulsivo que eu gostaria de mostrar a vocês.

Descendo por uma escadaria sombria, eles foram até o subterrâneo.

O ar úmido resfriou seus pulmões. Havia um cheiro anormal de sangue no ar, o que causava uma sensação incômoda em seus peitos.

Raishin notou que Komurasaki estava ficando um pouco para trás.

— O que foi, Komurasaki?

— Eu... eu estou com um pouco de medo.

Os pequenos ombros dela estavam tremendo. Ela parecia ter tido algum tipo de premonição ruim.

— Desculpe por isso, mas você sabe que não pode voltar sozinha.

Ele estendeu a mão e segurou a dela.

— Aqui, eu peguei você. Se você realmente está com medo, então apenas feche os olhos.

— Ok... Obrigada. Acho que me sinto um pouco corajosa agora. Porque eu estou com o Raishin.

De mãos dadas, eles seguiram atrás de Yomi.

Um Doberman de olhar um pouco feroz estava sentado no meio da escadaria, de guarda.

Se ele afundasse seus dentes neles, então certamente estariam perdidos... mas o Doberman não reagiu a eles. Parecia que ele não possuía a habilidade de ativar seu sensor. Muito parecido com Rabi, parecia que ele só tinha a inteligência de um cão qualquer.

— O que está diante de nós é a parte mais importante desta instalação. Nem mesmo os membros da equipe possuem autorização para entrar.

Yomi saltou o último degrau. No fim da escadaria, havia uma grande porta de ferro.

Enquanto se aproximavam, uma explosão de ar frio os atingiu.

Aquilo era um congelador... ou algo parecido.

O gelo e a neve de Inverno podiam ser replicados e produzidos através de artes mágicas. A tendência recente consistia em uma combinação de ar circulante no interior com um forte isolamento exterior e havia se mostrado bastante efetiva.

Pelo que eles podiam ver da porta, aquele lugar era projetado para ser hermético. A construção também era relativamente moderna. A temperatura lá dentro devia estar abaixo do ponto de congelamento.

Raishin novamente enfiou as mãos em sua bolsa e tirou de lá as ferramentas de arrombamento. Ele começou a trabalhar na porta.

Trabalhando em silêncio, ele conseguiu fazer a porta abrir.

Respirar aquele ar extremamente frio machucava o nariz dele. Lá dentro, o ar era tão gelado que ele começou a tremer. Estava tão frio que ele podia sentir sua pele retraindo-se e deformando-se. Assim como ele pensava, aquele lugar era um congelador.

— O que é esse lugar?

— Um depósito onde eles guardam a carne.

Yomi respondeu, mas eles não podiam vê-la. O interior do congelador era escuro como o breu.

— Qualquer tipo de luz atrairia a atenção aqui. Você vai ter que esperar até se adaptar a luz.

Komurasaki estava colada nas costas de Raishin, pressionando seu pequeno corpo contra o dele. Gradualmente os olhos dele começaram a se ajustar à escuridão. Luz saía de algum lugar e o que antes ele não conseguia ver, aos poucos tornava-se visível.

— ...!

Ele soltou um grito inconscientemente. Ao lado dele, Komurasaki estava atordoada.

Caixas de vidro estavam alinhadas.

Envoltos por anticongelante, que estava flutuando em meio a maquinaria dentro das caixas, estavam—

Braços.

Pernas.

Todos eram pequenos. Magros. Ainda não haviam amadurecido.

Eram os corpos de incontáveis crianças.

— Que... diabos... é isso...!?

Era uma questão verdadeiramente estúpida para se fazer. Ele podia sentir a bile subindo por sua garganta. Mesmo para Raishin, aquilo era demais para suportar. No momento em que ele se virou, um sino estridente soou e houve algum tipo de ruído do outro lado da porta.

— Raishin! Há uma grande quantidade de passos vindo nessa direção!

Komurasaki gritou isso para ele com urgência na voz.



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