Volume 1

Capítulo 4: Um jantar fictício

— Você iria... A um encontro comigo?

Foi o que Charl disse. Com as bochechas coradas e o olhar voltado para cima.

Pensando ter ouvido errado—Desejando ter ouvido errado—Raishin confirmou seu pedido.

—Hum?

Em uma tentativa de esconder seu rubor, Charl falou de forma indignada:

— Sua cabeça é tão ruim quanto a sua cara? Eu perguntei se você iria a um encontro comigo.

Tendo recebido um considerável ataque verbal, Raishin sentiu-se atordoado.

Tentar entender o que ela acabara de falar era como tentar apanhar uma enguia escorregadia.

— Limpe sua agenda para hoje após a aula. Entendido?

A primeira a reagir foi Yaya. Enquanto empalidecia, seu corpo todo começou a tremer.

— Em- em- embora ele aprecie o fato de você ter vindo até aqui para convidá-lo, Raishin já tem planos para depois da aula. Ele não tem tempo para sair com você.

— Tudo bem. Irei abrir espaço em minha agenda.

Yaya transformou os pedaços do copo quebrado em sua mão em fragmentos ainda menores.

— B- bem, então eu devo me retirar. Vejo você mais tarde na sala de aula.

Com a inocência e o constrangimento de duas pessoas que haviam começado a namorar, ela rapidamente saiu.

Observando a estranha figura se retirar, Raishin bocejou.

— O que há com ela? Me dando arrepios logo pela manhã—

Um violento arrepio, de repente, passou por ele.

Por um breve momento, ele teve a sensação de que o ceifador iria separar sua cabeça de seu corpo com sua foice. Virando-se timidamente, viu o cabelo de Yaya balançando no ar, contorcendo-se como se ela fosse uma medusa.

— Es- espere um pouco... Acalme-se, ok? Só respire fundo e conte até o maior número primo que você conseguir se lembrar... por favor?

Um segundo depois, um gemido de agonia ecoou por todo o dormitório Tartaruga.

— ... Você é mesmo um homem barulhento. Seu cérebro está infestado de vermes?

Sendo estrangulado, pouco antes de sua visão ficar completamente escura, a consciência de Raishin foi sacudida de volta por uma conhecida voz o insultando.

Talvez ela tenha caído em si, ou talvez a presença de outra pessoa tenha a assustado, mas Yaya livrou a traqueia de Raishin.

Com o oxigênio correndo de volta para seus pulmões sedentos, Raishin virou-se para encarar a dona da voz.

Lá estava uma estudante de óculos—Lisette. Acompanhando-a estava a bela responsável pelo dormitório. Diferente de Charl, que apenas foi até lá audaciosamente, Lisette havia conseguido uma permissão para visitar o dormitório masculino.

Sem sequer um sorriso, Lisette, com uma atitude professional, o entregou um grande envelope.

— ... O que é isso?

— Não é óbvio se você pensar sobre isso? Ou será que seu cérebro foi completamente devorado por vermes?

— Por que você está tão obcecada por vermes?

Lisette lançou um olhar de desprezo, antes de retornar a sua postura profissional.

— O contrato entre você e o Comitê Disciplinar—e também o material que temos sobre o Canibal Candy.

Era por volta de três e meia. Foi um pouco antes de quando as aulas estavam programadas para terminar.

Embora ainda restasse uma aula, ele havia saído da sala de aula, por insistência de Charl.

Vendo-o coberto de hematomas que, aparentemente, tinham surgido do nada, Charl olhou desconfiada.

— Por que você está todo machucado? Teve uma briga com um leão ou algo assim?

— Não se preocupe com isso. É apenas Diana sendo ciumenta.

— Que homem difícil de se compreender.

“Você é a única incompreensível.”, ele pensou. Graças ao capricho de Charl, Yaya estava claramente de mal humor. Mesmo agora, suas pupilas estavam anormalmente grandes, tão negras quanto um lago sem fundo.

— Bem, tanto faz. Venha comigo.

Charl foi na frente, caminhando para fora da sala de aula. Como de costume, Sigmund estava no topo de seu chapéu. Abanando o rabo para a esquerda e para a direita, isso o fazia parecer estranhamente adorável.

Após sair, Charl continuou andando sem parar para descansar. Saindo da rua principal, eles procuraram atrás do prédio de Vocações Técnicas, dentro do bosque e no pátio.

Não importa onde eles procurassem, a única certeza era a de mais uma caminhada. Mesmo que eles escolhessem caminhos sem sinais de pessoas atravessando-os, eles não encontravam nada.

Rapidamente, duas horas improdutivas se passaram.

As luzes da rua mais próxima haviam sido acesas, e o sol se punha atrás das paredes.

Com Yaya liberando intenções assassinas, a situação tornava-se inquietante.

Charl parecia que não iria desistir ainda. Chegando em um caminho deserto, onde os restos de um autômato haviam sido descobertos na noite anterior, ela deu-lhe uma ordem que cheirava a falso orgulho.

— Raishin, ande para trás e para frente por este caminho dez—não, vinte vezes.

— ... Isso é algum tipo de encanto?

— Não seja absurdo. É óbvio que você vai ser um chamariz.

Sua resposta havia sido como ele esperava. Farto, Raishin suspirou.

– Mesmo se o Canibal Candy aparecer, estará tudo bem já que eu irei derrota-lo. Portanto, apena relaxe de se deixe ser atacado. Agora vai!

– Eu recuso. Além disso, o Canibal Candy só ataca no meio da noite.

—Onde você ouviu isso?

A fonte era o Comitê Disciplinar. Yaya havia traduzido os documentos que Lisette tinha entregue a ele, e foi assim que Raishin teve acesso a estas poucas informações confidenciais.

De acordo com os documentos, o Canibal Candy era ativo apenas da meia noite até o amanhecer.

Além disso, ele nunca atacou autômatos em dois dias consecutivos.

Em outras palavras, seja lá o que Charl estivesse planejando, era praticamente inútil.

— Isso é apenas no que as pessoas normais acreditam. É por essa maneira tendenciosa que os Comitês Disciplinar e de Segurança não tem sido capazes de produzir resultados. Não é, necessariamente, verdade que ele nunca ataca em dias consecutivos e nem que ele não vá aparecer neste momento.

— ... Essa é uma outra forma de se olhar para isso, eu acho.

Raishin coçou a cabeça, profundamente perturbado. Charl estava completamente entusiasmada com isso. Desse jeito, ela iria fazer com que ele procurasse com ela até de manhã.

Parecia que ele não seria capaz de fazê-la desistir. Elaborando um plano, ele decidiu abordar o problema de um ângulo diferente.

— Aliás, você não tinha dito que iriamos a um encontro?

Charl olhou fixamente para ele,

— Não estamos em um agora mesmo?

— Não seja estúpida. Não tem como algo assim poder ser considerado um encontro.

— Es- estúpida? Você me chamou de estúpida? Quando você aponta um dedo para alguém, você aponta quatro para si mesmo!

— Entendi. Simplificando, você não tem amigos, tem?

— O que—Eu—Você—

— Você acabou de me conhecer, mas como você não tem ninguém para ajudá-la, então você teve que pedir a mim.

Ele acertou em cheio. Ainda que levemente, lágrimas se formaram nos olhos de Charl.

— Não seja tão presunçoso. Eu não preciso dessa atitude de eu-sei-de-tudo, seu pervertido!

— Vamos em um encontro—me enganar com essas palavras doces, fazendo com que eu desperdiçasse tempo e energia ao me fazer caminhar por uma distância tão grande que quase atravessaria o rio Sanzu, e me chamando de pervertido. Você realmente é uma obra-prima de dama.

— Eu apenas estava tentando ajuda-lo. Esta é minha forma de mostrar agradecimento. Acusar-me de outras coisas é desnecessário.

— Hum, então você sabia sobre eu ter aceito a oferta do Felix?

Ela ficou em silêncio. Parece que ela sabia. Ela provavelmente tinha escutado isso de alguém em algum lugar.

Se esse é o caso, então—

Raishin lançou um olhar para Yaya. Para ser honesto, ele estava relutante em fazer o que ele iria fazer...

— Já chega de brincar de detetive. É hora de começarmos o encontro apropriadamente.

Charl enrijeceu-se ao ouvir as palavras de Raishin. Yaya também congelou.

— Não diga bobagens tão livremente. Eu sou uma pessoa ocupada, não tenho tempo para brincar com você.

— Você não foi a única a dizer ‘Vamos em um encontro.’? Ou a família Belew não cumpre com sua palavra?

Ele a acertou onde doía. Os ombros de Charl balançaram em vexame.

— Tu... Tudo bem. Vamos a algum lugar, então.

— Bom. Nesse caso, vamos até a cidade.

— A cidade—você quer dizer fora da Academia...?

— Obviamente. Já que o sol se pôs, não há nada para fazer na Academia.

Um olhar de pânico penetrou em seus olhos. De repente, ela tornou-se muito hesitante e olhou para os próprios pés.

— Mas, se nós vamos a cidade, então o Sigmund...

— Sua idiota. Já que vamos em um encontro, nossos autômatos não nos acompanhariam.

— Uu... Sigmund, diga alguma coisa!

— Hum. Eu não sou tão descuidado.

Abrindo suas quatro asas, ele voou da cabeça de Charl.

— Pode ser uma boa oportunidade. Divirta-se.

— Seu traidor!

Parece que ele havia recebido o consentimento do guardião (?). Raishin agarrou com força a mão de Charl, puxando-a enquanto caminhavam para fora da Academia.

O rosto de Yaya tonou-se uma medonha sombra branca, enquanto observava os dois partirem de mãos dadas.

A árvore em que ela estava apoiada soltou um rangido. No momento seguinte, ela havia esmagado a árvore como se fosse feita de tofu, dividindo-a em duas.

Cambaleando feito um zumbi, ela caminhava em direção ao portão.

— Espere, Yaya.

Mordendo seu cabelo negro, Sigmund a puxou de volta.

— Solte. Solte-me!

— Você se esqueceu? Autômatos da Academia não podem se aventurar pela cidade.

Ele acenou com a cabeça na direção do portão semelhante ao de uma prisão.

— Veja. A segurança do campus já está começando a mirar em você.

Como ele disse, já haviam coisas brilhantes nos pontos de observação.

Foi um flash frio como o aço. Era óbvio que eles já haviam posto seus olhos nela.

— Eu ouvi que a segurança daqui tem alguns graduados em sua folha de pagamento. Assim, você não só teria que lidar com os rifles, mas com as marionetes também. Eu posso garantir que você acabaria sendo destruída.

— Mas...

— Pense com calma. Se você causar uma confusão aqui, apenas iria gerar problemas ao seu mestre.

Este foi um golpe mais eficaz do que uma bala de verdade.

Yaya vacilou, e então caiu no chão.

Com as duas mãos cobrindo os olhos, ela começou a chorar.

— Não chore. Por que não ter um pouco mais de fé em seu mestre?

— Uu... Fé...?

— Eu já vivi por 150 anos. Já observei muitos homens durante esse tempo, e posso te dizer que não havia sinais de luxúria nos olhos dele. Ele não está indo atrás da Charl.

— ... Verdade?

— Embora os homens nessa idade sejam geralmente muito promíscuos—esse é um fato da vida.

Yaya recomeçou a chorar. Estranhamente, as lágrimas pareciam cristalizar em um piscar de olhos, caindo no chão com um tinido.

— Céus... Pelo modo como você está agindo, significa que este assunto está em um nível completamente diferente da simples fidelidade para você, heim?

Sigmund ficou pasmo. Pousando diante dela, ele começou a falar como se estivesse ensinando um novato.

— Nós somos diferentes dos humanos. Mesmo que você pareça com eles, tenha as mesmas funções, tenha tão poucas diferenças com eles quanto possível—isso não muda o fato de que você nunca será humana.

— Yaya... já sabe disso...

— Autômatos funcionam com energia mágica que lhes é fornecido por seus controladores. Você poderia dizer que o relacionamento entre eles é como o de uma mãe com seu filho. É extremamente natural para um autômato crescer apaixonado por seu proprietário... mas eu acho que você está indo longe demais. Por que você é tão persistente quando se trata dele?

— Isso é... Bem... Is- isso é al-algo que não posso dizer.

Remexendo constrangida, ela começou a desenhar círculos no chão. Essa era uma ação muito semelhante a de um humano.

— Isso tem alguma relação com o objetivo dele?

— Isso é...

— Quem exatamente ele é? Por que está tão obcecado pela Festa Noturna?

— Bem...

— Nos atacar não era sua verdadeira intenção. Mas se ele estava disposto a ir tão longe, isso significa que tem que haver uma razão pela qual ele está tão obcecado pela Festa Noturna. Qual é? Não parece que ele seja motivado por ambição ou interesse próprio.

— Eu não posso entrar em detalhes, mas...

Ela hesitou por um segundo. Então murmurou solenemente.

— Raishin está em busca de vingança.

— ... Hum. De qualquer forma, ambos atualmente estamos sem nossos mestres.

Batendo as asas, Sigmund pousou sobre a cabeça de Yaya.

— Isso quer dizer que precisamos tomar cuidado com o Canibal Candy, ou então—

— É—

Como a escuridão da noite, de repente, tornou-se mais profunda ao redor deles, os olhos de Sigmund se iluminaram como os de um gato.

 

4

— Como esperado da Cidade das Máquinas. Mesmo a essa hora as lojas ainda estão abertas para negócios.

Andando pelas ruas iluminadas, Raishin falou alegremente.

O sol já havia se posto, mas a vida nas ruas continuava agitada. As ruas ainda estavam lotadas devido ao tráfego de pessoas, e as lojas e restaurantes ainda estavam repletas de clientes. Havia lojas de calçados, de roupas, de joias, lojas que vendiam peças mecânicas e itens usados para artes mágicas, assim como lojas que manipulavam autômatos.

“Ei, os dois estudantes aí!” “Venham cá!” “Eu lhes darei um desconto!”

Eles foram atacados por todos os lados pelas vozes dos lojistas. Raishin riu,

— Uau, eles são muito gentis com orientais também.

— É só porque você está usando o uniforme da Academia.

Charl, que estava de mal humor desde que fora arrastada para fora, refutou arduamente seu comentário.

— Estudantes estrangeiros são ricos. Eles são como VIPs aos olhos dos lojistas.

— Eu realmente não odeio isso. Pelo menos, essa é uma explicação mais plausível que compaixão ou caridade.

— Humpf... Essa é uma visão bastante impiedosa.

— Eu sou realista, entende.

De repente, Charl encolheu a cabeça e escondeu-se atrás dele.

Caminhando em direção a eles, estava um homem de rosto vermelho.

Embora ele parecesse um pouco embriagado, ele não parecia estar completamente fora de si.

— ... O que foi?

— N- não é nada.

Apesar de dizer isso, estava claro que ela não estava nem um pouco calma.

Abruptamente, um bando de crianças riu atrás deles, e Charl saltou devido ao som.

Raishin parou, comparando Charl com a agitação da cidade.

— ... Haaaa.

— O- o que esse ‘Haaaa’ deveria significar? Não fique tão orgulhoso.

— Resumindo, você se sente impotente quando Sigmund não está por perto.

Ele acertou em cheio de novo. Charl subitamente ficou em silêncio.

— Isso é normal para marionetistas. Mas não se preocupe. Você já viu o quanto eu sou forte, certo?

— ... É com isso que estou preocupada. Não há garantias de que você não irá tentar me passar a perna mais tarde, quando me levar de volta.

— Você realmente não confia nem um pouco em mim, não é? ... Bem, eu acho que estou colhendo o que plantei.

Com um sorriso irônico, ele voltou a andar. Charl rapidamente o seguiu. De alguma forma, ela o lembrou de um filhotinho que não gosta de ser deixado para trás, e ele riu em pensamento.

— N- não vá simplesmente saindo assim. Onde você está pensando em ir de qualquer forma?

— Eu estava pensando em caminhar ao longo dos canais. Yaya estava falando sobre como a paisagem noturna é, supostamente, muito bonita.

— ... Humpf, isso é muito clichê. Se isso é o melhor que você pode fazer, então vamos voltar. Estou começando a ficar com fome.

— Tudo bem. Se é esse o caso, então vamos fazer um lanche.

— Então vamos voltar aos dormitórios?

— Não seja tão desagradável. Vamos achar um lugar com um bom ambiente e comer lá.

— Se- sem chance!

Era uma recusa forte, mas quase imediatamente ela fechou a boca, murmurando alguma coisa.

— Este mês... Parece que estou vivendo uma angústia econômica... Quer dizer, estou tendo dificuldades financeiras...

— Se você está preocupada com dinheiro, está tudo bem. Hoje eu trouxe minha carteira, então posso pagar por você.

— Eh—<3

Os olhos de Charl faiscaram.

Um instante depois, ela saiu de lá, virando a cabeça com um “Humpf!”

— Eu me recuso a aceitar caridade de um pervertido como você.

Entretanto—seu estômago traiu o que ela estava dizendo, afirmando sua opinião ao roncar alto.

Charl virou-se, visivelmente vermelha, e começou a bater em Raishin.

— Bobo insolente~!

— ... Eh, eu? Como isso é culpa minha?

— Para eu estar envergonhada assim... Imperdoável...!

Finalmente, com uma pitada de desespero e algumas lágrimas nos olhos, Charl declarou em voz alta.

— Ótimo. Eu entendi. Eu irei aceitar que você pague tudo por mim.

 

Vinte minutos depois, os dois estavam em um restaurante próximo da hidrovia.

Eles estavam sentados na varanda do segundo andar.

A luz refletida na hidrovia podia ser vista claramente. O interior do prédio tinha um design moderno, que combinava estruturas de aço e de tijolo, dando-lhe uma boa impressão, sem parecer muito pretencioso.

Como aperitivo, eles tinham presunto defumado marinado. Enquanto Charl mastigava sua comida, ela olhou para as mãos de Raishin como se estivesse vendo algo curioso.

— Ouvi dizer que os japoneses possuem péssimas maneiras a mesa—surpreendentemente, você é bem normal.

— Para sua informação, usar hashis é muito mais difícil do que usar um garfo.

— Vocês tomam sopa levando a tigela aos lábios para beber. Isso é tão barulhento.

— Não há nada errado em chupar a sopa de miso, é apenas uma cultura diferente. Não fale mal dos costumes de outro país.

Com algumas brincadeiras leves, mas nada mal-intencionado, o jantar prosseguiu.

Em seguida, uma sopa clara, com um cheiro forte foi servida a eles. Raishin achou o gosto forte demais para ele, mas Charl parecia gostar. “Aqui, aqui, isso não é para qualquer um”, ela disse alegremente.

Enquanto esperavam pela carne, seus olhos se encontraram.

Ela estava olhando para ele como se quisesse dizer alguma coisa.

— O que há?

— Nada.

— Você deveria ser mais honesta. Por favor, sinta-se livre para abrir sua mente, minha donzela.

Ele brincou usando um discurso educado. Ele pensou que finalmente a faria falar... Embora esse não tenha sido o caso. Charl, hesitante, abriu a boca,

— ... Por que você me chamou para sair?

— Foi você quem me chamou para sair.

— Não. Não estou falando disso... é sobre ontem, durante o almoço.

Ela desviou o olhar. A ponta do nariz dela ficou levemente rosa, algo que ele achou surpreendentemente fofo.

Embora um pouco surpreso com a pergunta, Raishin conseguiu responder.

— Porque, você pergunta—acho que estava apenas seguindo o fluxo.

— Seguindo o fluxo? Que resposta idiota.

Ao contrário de estar descontente com a resposta, Charl deu uma risadinha, e não uma resposta insatisfeita, como ele pensou que aconteceria.

— Você é realmente uma pessoa imprudente. Não apenas desafiou a mim, a T-Rex, para uma luta, mas também teve a audácia de me convidar para almoçar logo em seguida. Você é mesmo um idiota sem salvação.

— Eu a agradeço por seus elogios.

— Eu tenho uma pergunta para este idiota.

— Pergunte, minha donzela.

— Por que você mirou minha Qualificação de Entrada?

Nesse ponto, o garçom serviu-lhes a refeição. Era vitela; Apenas de se olhar para ela, já se podia sentir sua textura. Ela havia sido grelhada até uma cor bonita, e o cheiro perfumado aguçava o apetite deles.

Após o garçom colocar os pratos na mesa, Charl esperou que ele saísse para continuar.

— Existem cem entradas para a Festa Noturna. Devem existir oponentes mais fáceis para você atacar.

— ... Se fosse alguém que eu pudesse vencer facilmente, então não haveria razão.

— Para fazer o Comitê Executivo da Festa Noturna notar você?

— Não... bem, eu acho que há isso também, mas não foi por isso.

Com a faca na mão, ele procurava as palavras certas. Não era bom em explicar as coisas.

Assim como Charl havia dito, para chamar a atenção do Comitê Executivo, derrotar um adversário forte teria um maior impacto.

Mesmo que ele vencesse a luta, não havia qualquer garantia que ele receberia uma Qualificação de Entrada dessa forma. Vencer inúmeros Benchwarmers para entrar na Festa Noturna... Se ele tivesse feito isso dessa forma, ele teria falhado.

No entanto, a razão para Raishin procurar um adversário mais forte não era apenas essa.

— Eu pensei comigo mesmo, eu vou derrotar alguém e subir no ranking para tomar seu lugar. Para mim, chegar do nada e conseguir uma Qualificação de Entrada por meio da força bruta parece errado de algum modo. Então eu senti que precisaria ter algum tipo de risco, ou seria injusto... Bem, quero dizer, de qualquer forma ainda seria injusto.

Raishin lutou para se expressar corretamente—no fim, ele desistiu.

— Desculpe. Acho que também não entendo porque fiz isso. Aliás, isso é delicioso.

— ... Eu pensei que você fosse alguém difícil de ler, alguém cujos pensamentos eu não poderia obter tão facilmente.

Com seus olhos entreabertos, Charl falou em tom de espanto.

— Mas parece que você não estava nem mesmo pensando. Seus pensamentos estavam apenas sendo levados pelo vento, assim como uma peça de roupa no varal. Não há nenhuma maneira de eu ler uma pessoa assim.

— Isso é verdade. Isso é tudo que você tinha para perguntar?

— Mais uma pergunta. Qual é o seu estilo de luta? Foi a primeira vez que vi alguém lutar ao lado de sua marionete.

— Ah... Isso é algo como um truque ardiloso.

— Ardiloso?

— Originalmente, eu fui criado em uma casa de guerra. Meu clã é... era habilidoso nos combates em grupo.

O garfo de Charl parou de repente. Algo havia lhe chamado a atenção.

— Controlar uma unidade militar—essa era a marca dos marionetistas do clã Akabane.

Naquele momento, o olhar no rosto de Charl mudou. Ela havia percebido alguma coisa.

Na Academia, havia uma pessoa que era hábil em lutas em grupo. O marionetista mais forte, que controlava seis autômatos ao mesmo tempo.

Entretanto, Charl não disse nada. Levando um pedaço de carne de vitela a boca, ela esperou silenciosamente que ele prosseguisse,

Apreciando a consideração dela, Raishin continuou.

— Bem, eles também tinham pessoas sem talento, como eu, dentro do clã. Apenas controlar a Yaya sozinho já é um fardo pesado para mim. Portanto, no lugar de uma marionete, eu uso o meu próprio corpo. Por sorte, eu sei um pouco de artes marciais. Então, ao invés de preparar magia às pressas, eu confio em meus punhos para lutar.

— Preparadas às pressas...? Então, diga-me, como se parecem os feitiços orientais?

— Nós não usamos feitiços ou invocações. Suimei, Shinkan, Kouen, Tenken—para ser franco, o Fuurinkanzan. Conceitos de batalha rudimentares em forma de palavra. No caso do meu clã, você pode pensar nisso como uma espécie de... código. Ao usá-los, eu posso ajustar a natureza da energia mágica, o fluxo, o tipo de arte mágica e a formação que estou transmitindo para a Yaya.

— Você verbaliza os seus comandos? Parece algo que um iniciante faria.

— Eu SOU um iniciante. Eu só tenho estudado marionetismo seriamente há dois anos.

A mandíbula de Charl caiu.

— Estou chocada. Nesse caso, por que você quer se tornar Wiseman? Se você nem mesmo é um expert em marionetismo, por que voou todo esse caminho desde o leste? Por que você quer o trono do Wiseman—

Raishin ergueu o dedo para pará-la.

— Eu tenho diversas razões para querer isso. Agora, acho que é minha vez de fazer algumas perguntas.

Ele evitou a pergunta. Charl tinha um evidente olhar de desagrado no rosto, mas recusar-lhe não seria justo, ou foi isso que ele pensou quando ela relutantemente concordou.

— Qual é o seu relacionamento com o Felix? Onde vocês se encontraram pela primeira vez?

— Você está interessado nele? Não me diga que você realmente é um hom—

— O que você está dizendo? Por que você me vê dessa forma?

— ... Ele me ajudou algum tempo atrás.

Charl corou ligeiramente e seus olhos voltaram-se para baixo.

— Porque eu estava fazendo inimigos mesmo antes de o conhecer... Não, isso é bom, certo? Eu estou mais confortável sozinha, e eu não tinha planos de começar a ser amigável com futuros inimigos. No entanto—

Seus olhos de safira ficaram nublados.

— Agir sozinha tem seus pontos positivos e negativos. Há uma grande quantidade de pessoas que iriam ficar estranhamente vaidosas ao saberem que seu adversário era uma única pessoa. Danificar meu armário, ou esconder minha mochila... Eles realmente tinham muito tempo livre. Além disso, eles tiveram a ousadia de fazer coisas que as pessoas normais não fariam.

Ela falou em um tom irritado. Depois disso, sua expressão mudou para um sorriso gentil.

— Felix era um membro do Comitê Disciplinar, então ele podia cuidar de mim.

— Entendo. Então foi quando você começou a gostar dele.

— Eu não. Pare de dizer coisas sem sentido ou eu irei queimá-lo vivo!

— Você, na verdade, preferiria que fosse ele e não neste encontro, certo?

— O qu—Eu—Você—

— Ele te convidou para sair antes. Por que você recusou? Tudo teria sido como você deseja.

— ... E não posso.

Sua raiva desapareceu. Perdendo rapidamente seu espírito, Charl desviou seu olhar vazio.

Com seu olhar voltado para a escuridão da hidrovia, ela falou com uma voz vazia.

— Felix tem um tipo diferente de popularidade da que você possui. Muitas estudantes são loucas por ele. Se alguma palavra sobre eu ter ido a um encontro com ele vazasse...

— Você aumentaria desnecessariamente o número de inimigos que já tem, hum.

Ela ficou em silêncio. Não querendo pressioná-la ainda mais,

— Vamos mudar de assunto. Por que você quer virar o Wiseman?

— ... Isso não tem nada a ver com você.

— Não tem. Mas eu estou interessado assim mesmo.

Charl pensou sobre isso por um momento, suspirando na metade, ela respondeu.

— Eu tenho um sonho... que eu devo realizar.

— Um sonho?

Ela não respondeu. Entretanto, seus lábios, fortemente pressionados um contra o outro, transbordavam de uma triste determinação. Não era por fama ou status social, mas sua determinação era mais brilhante do que qualquer fogo.

Era algo de grande importância para Charl. Ela provavelmente não confiava nele o suficiente para dividir isso com ele, e ele sabia disso. Raishin sabia que aquele era o fim da conversa particular.

— Parece que você tem a sua própria pilha de problemas.

— Humpf. Eu poderia dizer o mesmo sobre você.

Charl respondeu secamente—e então ela riu um pouco.

Talvez ela tenha achado estranho, ou tenha se divertido, mas ela estava rindo. Quando ela ria dessa forma, Raishin não a via como uma violenta criança problemática, ou como uma arrogante dama aristocrata, mas sim como uma garota perfeitamente normal.

Depois de pagá-la três bolas de sorvete, Raishin levantou.

— Vamos. Antes de voltarmos aos dormitórios, tem algo que eu preciso comprar.

Saindo do restaurante, eles caminharam pela cidade no ritmo de Charl.

Em torno das vitrines da cidade, eles passaram um longo tempo em uma loja de sapatos antes de voltarem para a estrada que os levaria de volta para a Academia, uma vez que já era quase hora do toque de recolher.

— Obrigado por me ajudar a escolher. Eu não tenho ideia quando se trata de roupas femininas.

Batendo levemente no pacote da loja de sapatos, ele deu um pequeno sorriso a Charl.

— Humpf. Eu não esperava que você tivesse tanta consideração com os outros. Isso é bastante surpreendente, considerando que eu pensava que você fosse um bárbaro estrangeiro rude, insensível, egoísta, rude e pervertido.

Isso foi excessivamente longo. Entretanto, ele descobriu que não podia discordar dela (exceto na parte do pervertido), então ele não respondeu.

— Ou talvez a razão pela qual você está indo tão longe sobre isso seja por que aquela garota é assustadora?

— Hm... Eu não estou certo se assustadora é a palavra certa... perigosa seria mais apropriado...

— Que homem patético. Ser controlado pelo seu próprio autômato é o oposto das relações convencionais, não acha?

Embora ela estivesse o insultando, não havia despeito real em suas palavras. Charl ria de uma maneira descontraída.

Eventualmente, quando os portões da Academia surgiram a vista, ela disse algo inesperado.

— Sobre nossa conversa mais cedo. Quando você me deu suas razões para me atacar.

— Ah... Eu acho que te disse que eu mesmo não entendo.

— Eu entendo.

Ouvindo-a dizer algo tão inesperado, Raishin virou-se para ela sem pensar.

— Pode ser apenas um pouco, mas eu acho que entendo. O sentimento de querer ser punido... Isso porque eu cometi um pecado antes.

Ele estava prestes a perguntar o que ela queria dizer com isso—mas então notou algo estranho acontecendo logo a frente.

— O que foi?

Já passava das nove. Normalmente, a essa hora, a Academia deveria estar pacificamente tranquila.

Entretanto, havia algum tipo de comoção acontecendo do lado de dentro dos portões.

— O que é isso? Ei, espere um pouco—Raishin!?

Charl estava gritando atrás dele. Porém, ele não parou. Tão rápido quanto um vendaval, Raishin percorreu correndo o caminho, indo em alta velocidade em direção a Academia.

Assim como ele havia pensado, havia uma grande comoção acontecendo dentro da Academia.

Mesmo já sendo tão tarde, os alunos foram se reunindo e empurravam uns aos outros para conseguirem uma visão melhor.

A frente da multidão, uma corda com os dizeres “Fique longe” foi pendurada, e Raishin podia ver os membros do Comitê Disciplinar se movimentando ativamente, iluminados por suas lanternas.

Vendo a figura de Felix no meio da multidão, Raishin pulou a corda.

Reconhecendo Raishin, Felix sorriu para ele.

— Yo, você chegou aqui mais rápido do que eu esperava.

— Guarde o sarcasmo. Qual é a situação?

— Outro autômato foi atacado. Você quer vê-lo?

Ele concordou. Felix indicou outro membro do Comitê para assumir, e guiou Raishin para dentro do jardim.

Por um breve momento, o pior cenário passou pela cabeça de Raishin.

Não podia ser... Não há nenhuma maneira de ser...

Ele apressou o passo. Suprimindo o desejo de sair correndo, Raishin seguiu Felix.

Vendo através de seus pensamentos, Felix falou.

— Seu autômato não está com você esta noite?

— Eu estava na cidade. Eu poderia pergunta-lo o mesmo—

De repente, uma dúvida penetrou em sua mente.

— De qualquer modo, onde está o seu autômato? Agora que mencionou isso, eu nunca o vi antes.

— Obviamente, eu deixei o meu guardado. Eu sou membro dos Rounds, sabe—com a Festa Noturna tão próxima, se eu ficasse com ele, querendo ou não estaria me abrindo a ataques de bandidos como você.

Era verdade. Charl havia sido atacada por um grupo de dez. Para evitar esse tipo de problema, alguns participantes haviam escolhido a fácil solução de não levar seus autômatos consigo.

— Entendo. Então, ao invés de usar o seu próprio poder, você planeja usar o meu no lugar.

— Não diga isso de modo tão rancoroso. Bem, não posso culpá-lo por pensar dessa forma. Para mim você é—

— Raishin!

Alguém cortou-o, deixando as palavras de Felix soltas no ar.

Uma Charl sem fôlego correu na direção deles.

— Felix—

— Yo, Charl. Você foi a cidade com ele?

Ele era afiado. Mesmo que ele não estivesse repreendendo-a, Charl ainda fez uma careta.

— Espere, não tenha a ideia errada, eu estava apenas—

— Bem, agora Raishin, a vítima está bem aqui.

Felix friamente a interrompeu, apontando para a sombra de um arbusto.

Rodeado por um número de membros do Comitê Disciplinar, um autômato meio destruído estava horizontalmente no chão.

Desta vez, o corpo não estava em pedaços. O autômato era um modelo feminino. Uma cicatriz indicando que o coração havia sido arrancado estava presente. Com uma luz brilhando sobre a ferida, a área havia sido parcialmente derretida, mas diferente de todos os casos até o momento, este retinha consideravelmente sua forma.

A pele do autômato era levemente negra—podia-se concluir que não era nada parecida com Yaya.

Olhar para a cabeça do autômato estranhamente fez uma memória remexer em sua mente.

Diretamente diante deles, havia um estudante chorando enquanto se agarrava aos restos. Parecia que ele estava de luto por sua morte. Olhando para seu rosto, Raishin finalmente se lembrou.

Ele pertencia ao grupo que atacou Charl no dia anterior; o estudante que estava controlando o autômato Undine. Ele se perguntou se isso significava que aquela era a Undine. A condição do corpo estava muito diferente de como ele se lembrava, e isso o distraiu por um segundo.

Deveria ter sido mais óbvio para ele, mas a translucidez do corpo era o resultado de uma arte mágica para converter o corpo em estado líquido. Como esperado, sua constituição padrão era mais resistente.

Charl brevemente olhou para o aluno, pasma.

Em seguida, com os olhos ardendo com um fogo feroz, ela girou sobre os calcanhares.

— Espere, Charl.

Ainda de costas, Felix a parou com um tom inesperadamente forte.

— Eu acho que seria melhor se você parasse de se envolver com o Canibal Candy de agora em diante.

— Mas—!

— Deixe o Canibal Candy para o Comitê Disciplinar. E também—

Felix virou-se para Charl.

Ele não tinha seu habitual sorriso no rosto, mas suas sobrancelhas estavam franzidas de tristeza.

— Eu entendo os seus sentimentos. É lamentável, mas irei me retirar elegantemente.

— Eh—

— Você escolheu Raishin ao invés de mim—Isso é o que você decidiu, estou certo?

Charl enrijeceu-se em estado de choque.

— Não, você entendeu tudo err—

— ... Ainda há trabalho a ser feito aqui. Me desculpe, mas eu poderia pedir para você ir embora? E também—eu acho que não deveríamos nos ver por algum tempo.

Afastando-se desanimado, ele se foi.

Charl virou-se tão pálida quanto um fantasma, tremendo todo.

— O que... O que devo fazer...

— Ei, acalme-se.

— Felix... me... odeia...

— Acalme-se. Olha, isso é só um grande mal-entendido.

— Deixe-me só!

Afastando a mão de Raishin, ela fugiu como se fosse uma bala atirada por uma arma.

Seus ombros magros desapareceram a distância. Raishin só podia olhar com espanto para a figura dela desaparecendo. Incapaz de acreditar no que acabara de ver, ele murmurou para si mesmo.

— ... Não é algo pelo qual vale a pena chorar, certo?

Suas palavras foram levadas pelo vento da noite, desaparecendo como a espuma do mar.

Raishin voltou para o seu quarto, completamente insatisfeito.

— ... Yaya?

Ele cautelosamente olhou para dentro do quarto. O quanto ela estaria de mal humor?

A alternativa era que ela estivesse irritada. De qualquer maneira, ele não estava olhando para frente.

Entretanto.

— Bem vindo de volta, Raishin <3

Seus pés tamborilavam no chão, enquanto corria em direção a ele, com um ótimo humor.

— Eu fiz o jantar. Eu estou confiante nas minhas habilidades culinárias hoje à noite.

— Uh... O que você está dizendo...?

Refeições no dormitório eram feitas na cantina. Não haviam instalações ou equipamentos para os estudantes cozinharem por conta própria.

Seus olhos voltaram-se para a mesa—e ele se assustou.

— O que... você está fazendo agora?

— Qual o problema? Apresse-se e sente.

Yaya sorriu para ele, chamando-o para a mesa.

Haviam vários pratos colocados a mesa sobre uma toalha branca.

Todos eles estavam vazios.

— O que você tem? Saia dessa!

— Ufufu, não há nada de errado comigo. Raishin, você está sendo tão estranho.

Embora Yaya estivesse sorrindo brilhantemente, seus olhos estavam vazios, desprovidos de luz.

Raishin sentiu um arrepio na espinha.

Houve uma avaria no processo de pensamento...!?

Sem saber o que fazer, Raishin puxou Yaya e a abraçou com força.

— É minha culpa! Me desculpe! Então, por favor, volte ao normal!

Yaya quebrou, enterrando seu rosto no peito de Raishin—

E então ela começou a chorar.

— Uu, uu, Raishin é tão cruel... Mesmo sabendo como Yaya se sente, você ainda corre atrás de outras mulheres...

— Eu já pedi desculpas, então pare de chorar. Veja, eu te comprei uma coisa.

Ele entregou a ela o pacote da loja de sapatos. Era algo que ele havia comprado na cidade, com Charl.

Yaya olhou para ele com surpresa, depois, com uma mistura de expectativa e inquietação no rosto, abriu o pacote, fazendo o papel farfalhar.

Era um par de brilhantes botas pretas de amarrar.

Eram um pouco antiquadas, mas bem trabalhadas e elegantes.

— Quando você lutou nos trilhos do trem naquela vez, seus tamancos foram muito danificados e desgastaram-se. É difícil para você lutar usando isso, e há sempre o risco da cinta romper. Então use isso em nossos momentos juntos.

Raishin ajudou a calçá-las, e Yaya sorriu alegremente.

— Serviu perfeitamente... <3

Ela virou os pés diversas vezes, muito feliz.

Embora ela estivesse sendo um pouco exuberante, ela estava de volta ao normal. Raishin deixou escapar um suspiro de alívio.

— Yaya. Você tem cometido um erro fundamental em seu pensamento. Eu não me sinto atraído por Charl nem nada, e eu não a convidei para sair por causa disso.

Derrubar seu mal entendido era perigoso. Raishin explicou tudo cuidadosa e minunciosamente de uma maneira fácil de ser entendida.

— Em primeiro lugar, eu não estou interessado em garotas que precisem usar enchimentos. Prefiro alguém como a Shouko, uma senhora com um decote tão farto quanto uma deusa da colheita.

— Como você sabe que os seios dela são falsos...? Além disso, de novo isso de Shouko, Shouko, Shouko...!

Percebendo que Yaya parecia estar prestes a explodir, Raishin apressadamente tossiu e mudou de assunto.

— Vamos deixar isso de lado por hora. E, de qualquer forma, eu saí com a Charl porque eu queria confirmar algo. É sobre o Canibal Candy.

Yaya segurou em alguma coisa. Seus olhos arregalaram-se.

— Não me diga que você suspeita que Charlotte possa ser o Canibal Candy?

— O canhão de luz que Sigmund disparou deixaria para trás uma cicatriz semelhante a obra do Canibal Candy.

Raishin estava se referindo a cicatriz vítrea excepcionalmente suave, que se assemelhava a alguém lambendo um doce.

— Havia uma chance em um milhão do Canibal Candy aparecer na Academia enquanto Charl e eu estávamos fora.

— Se ele fizesse isso, criaria um álibi para Charlotte, não é?

— Exatamente. E, de fato, o Canibal Candy atacou—ou é o que parece.

— Então, isso quer dizer que a Charlotte não é a culpada?

— Não, pelo contrário. Isso só torna as coisas ainda mais sombrias.

Não importa de que modo ele olhasse para isso, parecia muito conveniente.

Até então, o Canibal Candy nunca havia atacado em dois dias consecutivos. Dessa vez, ele não esperou até a meia noite para caçar, e a ferida estava apenas meio derretida. Algo parecia fora de lugar.

O jantar desta noite tinha sido fictício—e havia fraude estampada em todas as partes dele.

Yaya não pareceu entender. Ela tinha um olhar perturbado no rosto enquanto franzia as sobrancelhas, formando uma carranca.

— Mas Sigmund e eu estávamos vigiando os quartos o tempo todo. Sem um marionetista por perto, não seríamos capazes de manifestar nossa energia mágica.

— Existe uma exceção nesse caso. Bandolls.

Bandolls eram, essencialmente, máquinas vivas que tinham partes humanas dentro delas. Por isso, elas podiam usar energia mágica própria até um certo ponto.

— Nesse caso, seu álibi não faria sentido... Então, isso realmente foi um encontro...?

— Não arregale seus olhos. Sua ausência tem um significado.

Yaya olhou para ele com um ar de dúvida. No entanto, Raishin não se explicou, passando por cima da situação em sua cabeça, ao invés.

Na verdade, Charl estar em um encontro com ele tinha algum significado. Graças a isso, ele foi capaz de agarrar o inimigo pela cauda... Ou assim ele sentia. Isso se o que ele acabara de ver realmente tivesse sido obra do Canibal Candy—

Enquanto ele estava em meio aos seus pensamentos, ele foi perturbado por uma batida inesperada na porta.

Do outro lado da porta velha, a voz do chefe do dormitório podia ser ouvida, sua voz ressoava facilmente até seus ouvidos.

— Raishin. Você tem um telefonema.

 

Raishin deixou Yaya no quarto e desceu para o átrio do primeiro andar.

O telefone ficava em frente a sala do chefe do dormitório. O telefone já estava fora do gancho e Raishin o pegou.

— Me desculpe por ligar tão tarde. É Lisette Norden.

— Oh, é você. O que quer?

— Você acha que eu ligaria para alguém tão triste quanto você apenas por diversão?

— ... Teria sido melhor se você tivesse começado com isso. Então, o que você quer?

— Nós estamos procurando pela Charlotte.

— —O que você disse?

— Ela deixou o dormitório Grifo. Eu não sei se você já sabia disso, mas Charlotte e eu vivemos neste dormitório.

— Você tem certeza de que ela não está aí?

— Se ela estivesse, eu não estaria dando este telefonema, seu verme estúpido.

— ... Você tem razão.

— Eu pensei que ela talvez tenha ido ao seu quarto para ter relações sexuais ilícitas.

— Você é a Yaya? Sua lógica é espetacular. Pare de tirar conclusões precipitadas.

— Ter você me insultando é muito humilhante. Você tem alguma ideia de onde ela possa estar?

— ... Nenhuma.

Por um momento, lembrou-se do solitário raio de luz que havia caído sobre seu rosto.

— Se você não sabe de nada, então é claramente um inútil. Adeus.

Houve um clique. Ela havia desligado.

Esquecendo-se de colocar o telefone de volta, Raishin parou por um momento,

Charl ainda estaria planejando ir atrás do Canibal Candy?

Ou—Ela estava prestes a fazer algo precipitado?

(...Não. Acalme-se. Eu não poderei fazer nada se continuar nervoso.)

Se Sigmund estiver com ela, então Charl seria capaz de derrotar o Canibal Candy—ou deveria ser capaz de fazê-lo. Além disso, se Sigmund estiver com ela, ele iria impedir que ela fizesse algo muito idiota.

No entanto, isso era supondo que Sigmund estivesse com ela. Se ele não estivesse—

— Merda, que pessoa problemática...

Ele colocou o telefone de volta no gancho, e andou na direção da entrada. Quando ele estava prestes a correr para fora da Academia—ele parou como se tivesse sido atingido por um raio.

Seus olhos estavam focados em alguém parado ali.

Embora ele quisesse abraça-la, ele não poderia dizer isso diante dela.

Seu quimono parecia mais com um vestido, e seus largos seios eram tão brancos que quase brilhavam. Como se ela estivesse escondendo sua inigualável beleza, ela usava um tapa-olho sobre o olho direito.

Com um sorriso sedutor, sua voz era como um instrumento de cordas.

— Hoje é uma ótima noite, não é garoto? A lua está linda.

— Shouko—

Raishin finalmente voltou a si, conseguindo cuspir o nome dela.



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