A Lenda do Destruidor Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 3: Vazio interior

Ethan caminhava pela estrada, o céu azul e limpo de nuvens, junto as planícies verdes que o cercavam eram um claro contraste com suas emoções e pensamentos. Caminhou mais um pouco na estrada de pedra e olhou de volta para a direção da cidade de Oldale e, como consequência, para a vila Cucko.

A culpa e ódio cresciam, e, com eles, o vazio voltava. Não entendia o que era aquilo, no entanto, começara a notar um padrão. Sempre que se deparava com alguma coisa que causasse uma resposta emocional forte, ou sempre que relembrava de algo que causou grande estresse, esse sentimento voltava.

“Se eu fosse um pouco mais forte…” Sim, precisava de mais poder. Isso sempre esteve claro, mas apenas agora percebeu o quão verdadeiro esse fato era… e o quão doloroso era ser fraco. Não podia mais perder ninguém importante. Não queria sentir essa dor de novo.

Para tal, teria que exercitar-se mais do que nunca pois sabia que, sem os Ciels, apenas sua força natural seria confiável. A aura que os Ciels dão aos humanos aumenta seus Status consideravelmente, mas, mesmo que fosse difícil, tentaria correr atrás de seu sonho.

Com isso em mente, olhou em sua volta e notou que não havia ninguém ali. Parou na estrada, desabotoou sua camisa, abaixou-se até tocar na pedra refinada da estrada para começar algumas séries de flexões.

Chegou na décima, e o suor começou a pingar de sua testa, na vigésima já havia começado a bufar, mas não desistiu. Manteve o foco até chegar na casa dos 30 e, quando seus braços não aguentaram mais suportar o peso do próprio corpo, caiu no chão, sua respiração estava errante, mas isso não o impediu de amaldiçoar sua condição atual.

O rapaz olhou para o céu azul e contou até dez e, enquanto fazia um esforço para recuperar o folego, sentiu-se abismado com a sua fraqueza. Claro, nunca pôs muita ênfase no treino físico, mas isso já era exagero.

Ao chegar no 10, voltou a contar, sua respiração mais estável, mas ainda descompassada só pôde melhorar quando Ethan fez o esforço de trancar o ar dos pulmões, de forma que pôde recuperar o fôlego na marca dos 17 segundos.

Isso não o agradou.

Rolou para a direita, em direção a Oldale, e contemplou o quão fácil seria abandonar sua missão e ambição para viver uma vida pacata naquela cidade, e o mero pensamento causou repulsa dentro de si.

O mais estranho era o fato do sentimento não partir dele, mas sim de outra pessoa, uma que parecia dividir seu emocional. Um sentimento familiar, mas que, por alguma razão, não conseguia lembrar quando foi a primeira vez.

Como se uma parte dele estivesse faltando, sumido sem deixar rastros, e isso o cortava por dentro, pois sentia como se algo ou alguém tirasse uma parte essencial sua. Levantou-se e começou a fazer alguns polichinelos, mas seus braços estavam cansados demais do exercício anterior e pareciam frouxos, sem força alguma.

Mais uma vez, pôde perceber o quão frágil seu corpo era. A realização trouxe um gosto ruim a sua boca, e não pôde deixar de lembrar dos insultos que seus compatriotas direcionavam contra si. A palavra preguiçoso era uma constante em sua mente, e, pela primeira vez, começou a dar um pouco de razão para eles.

Decidiu treinar por mais alguns meses. Haviam dois exames por ano, e como estavam apenas em janeiro, podia aproveitar para treinar um pouco. Com esse pensamento, voltou a treinar, todos seus músculos tremiam com o esforço, mas a lembrança da risada de Agar era um forte motivador.

Após algumas séries dos exercícios que conhecia, Ethan caiu sem forças no chão. Tentava se levantar e continuar mas, para a sua frustração, o cansaço o venceu. Se arrastou para longe enquanto pensava no quão patética era a sua situação atual e amaldiçoou-se por sentir pena de si mesmo.

Como um verme, chegou na grama verde, que acariciava seu corpo cansado. Sorriu com o sentimento e pôs-se a pensar no que faria agora. Não tinha mais energia para usar, e mal conseguia ficar em pé, logo, só havia uma coisa a ser feita. Sentou-se numa Posição de Lótus, algo que suas pernas protestaram.

Fechou os olhos enquanto meditava. Uma prática que já fazia a tempos, mas que nunca o ajudou a abrir seus Ciels, algo que, para sua frustração, nunca mudaria. Dentro de si, não pôde deixar de pensar se todo o Status de inteligência que adquiriu nos 16 anos que esteve vivo foi em vão.

Afinal, se até mesmo os Meio-orcs, os mais burros dentre os habitantes de Cucko, conseguiam despertar os Ciels, alguém inteligente como ele só podia sentir-se frustrado por não conseguir fazer algo tão fácil que até mesmo os brutos conseguiam. Sua inteligência elevada foi fruto de vários anos de meditação e leitura, e esse esforço foi recompensado, visto que se livrou de várias encrencas com pura esperteza quando mais novo.

E, mesmo com tempo de sobra, ainda sabia que, no ritmo que estava avançando, para aperfeiçoar seu corpo, construir uma boa resiliência levaria mais do que 6 meses e teria que esperar por mais 6 meses para tentar de novo. E essa espera era algo que Ethan não podia deixar acontecer.

Tinha que ficar mais forte e se tornar um Mármore, aconteça o que acontecer.

Mesmo com a inteligência elevada, esperteza não o permitiria passar pelos testes espartanos que o aguardavam. Assim como sabia da importância de um Nível elevado na associação, visto que, nas várias histórias de seu avô, essa era outra coisa era presente em todas. Os Níveis.

Sorriu ao lembrar-se que, mesmo com um nível alto, não dá para dizer que alguém é mais forte que outra pessoa em combate apenas baseado em números. Claro, um Status balanceado ajudava, mas haviam vários especialistas que derrotaram Mármores de níveis superiores.

Lembrou-se dos Ladinos, que usavam Destreza e Constituição para superar seus adversários e os matar rapidamente. Era uma classe perigosa que, em condições ideais, podia matar vários adversários em Níveis superiores sozinho.

No geral, tudo dependia de como alguém treinava e se especializava no que era bom, e saber disso foi o que manteve as suas esperanças em se tornar um Mármore. Mesmo sem conseguir fazer o que os outros faziam, a ideia de ser um Especialista sempre foi agradável.

No entanto, não pôde deixar de lembrar o porquê era necessário um nível alto e, ao fazê-lo, seus ombros caíram em clara tristeza. O motivo para tal era que, mesmo que pudesse derrotar vários adversários de Nível Alto caso se especializasse, ainda teria muitas portas fechadas, visto que vários requisitos de Missões Classe D ou superior era ser de um nível mediano… e as melhores recompensas vinham com essas missões.

De certa forma, a fortuna que herdou o permitiria não passar fome.

E mais, era conhecimento comum que para avançar no cultivo de Ciels, era necessário grande resistência física e mental, por mais que soubesse que não faria grande progresso nisso, ainda assim precisava aumentar seus Status físicos, apenas para que pudesse chegar num nível elevado.

Com todas essas considerações, pôs-se tentativamente a meditar. Era a única coisa que ele conseguia fazer sem dificuldades, mas, para sua frustração, sua mente parecia querer reviver o dia do massacre sempre que fechava os olhos. Lembrou-se daqueles que perdeu, e apenas pôde sentir raiva e tristeza… que se tornavam ódio com a lembrança da maldita risada.

Um ódio que queimava frio e que aumentava o sentimento de vazio em seu peito.

“Talvez devesse me focar nisso…” O vazio dentro de si era anormal, mas, para alguém que sempre foi comum em todos os aspectos, ter aquilo era motivo de comemoração e alegria. Mesmo que não fosse agradável, exploraria o vazio dentro de si para que pudesse se aperfeiçoar.

A princípio, só podia tremer um pouco os ombros e as pernas com os calafrios que percorriam sua espinha e que causavam um sentimento de que algo o observava. Algo antigo e perigoso, que o devoraria se fizesse um movimento errado.

E, conforme o tempo passava, Ethan reparou que sua energia voltava mais rápido quando focava no vazio que o assustava… e o sentimento que veio dessa descoberta só o deixou mais apavorado.

Era como se pertencesse ao vazio. Como se… como se aquele fosse seu berço, onde nasceu e cresceu, e o desconforto de sair dali era tão grande quanto o de ficar lá. Dois lados dentro de si lutavam e buscavam dominar o outro.

Um humano.

E algo… algo incompreensível.

Saiu do estupor e voltou a se exercitar. Para a sua alegria, chegou na próxima dezena de flexões antes de não conseguir mais aguentar o próprio peso. Nisso, começou a série de polichinelos e de abdominais, até que esgotou-se e voltou para o mesmo local que meditou antes.

Voltou para o mesmo lugar, nos confins de sua mente.

Uma leve irritação brotou dentro de si quando percebera que dependeu da mesma sensação que trouxe a catástrofe para sua vila, mas não ligou. Era algo necessário, por mais que os punhos cerrados e a carranca mostravam bem como se sentia em relação a isso.

Não gostava do fato que dependia daquele maldito sentimento, mas precisava disso, pois era alguém comum, que não tinha nada de especial, algo que o destacasse e o permitisse lutar contra os demais em pé de igualdade, e, por isso, teria que confiar nesse poder que tanto odiava.

Conforme prestava mais atenção no vazio, o rapaz de cabelos negros percebeu que estava adentrando mais e mais naquela escuridão, e a cada camada explorada, notou que a segunda era mais complexa que a primeira.

Como um labirinto que se dividia em andares, e cujas riquezas no fundo clamavam por sua atenção.

A enorme escuridão o cercava. Sentia-se sufocado naquele mar, a pressão sobre seus ombros tentava o derrubar, e quanto mais avançava, mais densa ficava a escuridão. Sentia-se fraco demais para fazer qualquer coisa, não podia se mover, não podia lutar… apenas podia seguir naquela camada, deixando as águas escuras o levarem para as profundezas.

Na primeira camada do primeiro andar, só pôde aguentar o frio, um tão intenso que congelaria seus ossos se o tocasse no plano físico. O pensamento trouxe um calafrio para sua espinha, mas seguiu avançando. Estava curioso demais com o que encontraria adiante.

Na segunda, não só havia mais frio, como também pontos que ofereciam mais resistência, como passagens do labirinto em que devesse empurrar as paredes para avançar, mas que o empurravam para fora. Mesmo assim, as águas o levavam para o fundo. Sentia que, desde que tivesse vontade, podia continuar seguindo em frente.

Ele decidiu chamar essas subcamadas de Portões, e, no primeiro, ele exerceu uma força mental grande para ultrapassar. No segundo, ele quase perdeu o ar dos pulmões com o esforço e com o susto de ouvir vozes cochichando seu nome em meio a água.

Vozes mais velhas ou mais jovens, mais agudas ou mais graves. Mas um padrão se repetia naquelas vozes.

Todas elas lembravam a sua.

Finalmente no terceiro, o jovem parou de forçar após as vozes gritarem. A força o empurrou para fora e, sem poder sequer impedir, a água moveu-o de volta para a luz que a tanto o deixou. No entanto, algo interessante veio de sua experiência ali.

— Sou aquele que anuncia o prelúdio do fim… — As palavras que saíram de sua boca eram estranhas, mas ressoavam com algo dentro de si. Foi ali que, com as mãos no peito e empapado de suor, ajoelhou-se.

Claro, tentou levantar-se, mas apenas caiu no chão de novo. Não sabia como se sentir em relação a isso, o cansaço não o permitia pensar. O frio voltou ao seu interior enquanto a carne e pele ferviam em febre e, por um instante, seu coração havia parado.

Havia morrido por alguns dolorosos segundos.

Com o cansaço mental, não conseguiu fazer mais do que ficar de quatro, a bile logo subiu sua garganta, e, com clara confusão em sua expressão, o rapaz despejou o conteúdo de seu estômago. Porém, o que devia ser vômito era algo diferente. Algo que, por mais que não se lembrasse, já havia encontrado antes.

Um líquido negro, como o que escapou de suas narinas no dia fatídico, pingava agora de sua boca. Olhou, com fascínio mórbido, a forma como o chão parecia apodrecer com a gosma negra, que tirava a cor ao redor e matava tudo que encostava em si.

Plantas, insetos e até o solo. Tudo perdeu a cor, tornou-se cinza, e decaiu. Engolira em seco e saiu de perto do buraco, voltou a caminhar. Sua cabeça estava uma bagunça. As palavras que não ousava mencionar repetiam de novo e de novo dentro de si.

E, mesmo assim, o mais estranho era a sensação de saúde que ganhou após vomitar o estranho líquido. Não sabia o porquê, mas sentia-se revigorado, apenas um pouco enjoado.

A sensação era de sair da cama depois de estar febril por vários dias. Como se expulsasse algo em excesso do organismo, um invasor. A euforia que seguiu também o deixou surpreso. Toda a raiva e tristeza fora repelida de seu corpo, e sentiu, com isso, pela primeira vez, sua energia interior¹.

A euforia só aumentara ao lembrar o que era tal coisa. Ela era nada mais que a energia residual da alma. Ela que possibilita o avanço dos Ciels, assim como era a prova de que um Ser Humano está vivo, e por mais que não pudesse sentir os pontos dentro de si onde essa energia era mais forte, que eram os chamados Ciels, ainda assim não tinha outra forma de descrever o sentimento dentro de si.

Era como se dentro dele estivesse numa temperatura agradável da sombra de uma árvore, o vazio ainda estava ali, mas agora a ausência de algo era confortável, tal qual olhar para a vastidão azul do céu.

Sorriu com isso. A euforia foi tal que começou a pular em comemoração, mesmo que tivesse que ignorar a exaustão mental. Revigorado, parou quieto e focou dentro de si uma vez mais, sua conquista fez com que um sorriso bobo brotasse em seu rosto.

— Ainda assim… — Coração, Pulmões, Estômago, Rim, Fígado, Espinha dorsal, Jugular e Cérebro. Ele sabia todos os Ciels de cor. — Por que não sinto nada em cada Ciel? De acordo com os livros, devia haver ao menos uma concentração de energia em cada um.

Tudo que sentia era um vazio imenso em cada ponto, um que fez sua cabeça doer e seu peito gelar ao focar demais num deles. Mesmo que estivesse vivo, não sentia nada dentro dos pontos com maior concentração de vida. Achou estranho, mas decidiu aproveitar a conquista atual.

Ele esperou 16 anos para conseguir tal feito.

Dessa forma, com um suspiro pesaroso, voltou a treinar. Sua força ainda não era o bastante e usaria cada grama de poder que tinha para se aperfeiçoar. Dessa forma, seguiu treinando pela noite até que o sol começou a nascer.

Esgotado, caiu de costas na pedra polida da estrada. Olhou para cima enquanto aproveitava o frio da estrada. Um bocejo saiu de sua boca, e seu estômago roncou. Foi aí que se lembrou de algo muito importante. — Merda… não tenho nada para comer!

Mesmo com o estômago clamando por uma refeição, fechou os olhos e caiu no sono, um sorriso relaxado formou-se em seu rosto, um que mostrava o quão ignorante era sobre os seus arredores. Um par de horas depois, o rapaz sentiu frio, e nos sonhos, viu a forma da parede de carne, com seu exército destruindo sua vila.

Cada pessoa olhava para si, com olhos vermelhos, que brilhavam em desespero e medo… assim como um profundo rancor. Elas mantinham suas mãos levantadas para ele, implorando por ajuda, mas o rapaz não conseguia se mover de onde estava, como se uma força sobrenatural o prendesse.

Mesmo com a impressão de correr, não se movia de onde estava. Foi aí que percebeu, para seu horror, que o demônio começara a rir. Sua raiva e ódio ressurgiram e tentou uma vez mais correr em direção aos seus compatriotas.

Tudo enquanto a risada infernal zombava de si.

As pessoas então começaram a desaparecer uma por uma, e os pedaços de carne se multiplicavam conforme isso ocorria, a risada de Agar ressoava ao vento, junto aos gritos de desespero e lamurio dos humanos. A combinação criava uma melodia doentia.

Após isso, silêncio sepulcral, e, com isso, o rapaz acordou empapado de suor, um grito continuo escapou de sua garganta. Após perder a voz, o rapaz sentiu uma forte dor nas cordas vocais e começou a tossir.

Estava sem ar.

Só então se acalmou e percebeu o que havia acontecido. — Huff huff… merda… MERDA! — Começou a socar o chão, enquanto amaldiçoava a si mesmo e sua maldita fraqueza. Após o primeiro soco, veio o segundo, e então o terceiro, e assim continuou, até que seus punhos sangrassem.

O frio e vazio voltaram com mais força do que nunca.

 

Numa cidade próxima aonde Ethan esteve a algumas horas, numa taverna, diversos homens vestidos com capuz e capa, uniforme típico de um Ladino, encontravam-se num descanso quieto e relaxante.

Na famosa Vila dos Ladrões, haviam regras estipuladas pelo senhor daquelas terras que todos respeitavam, e uma delas era: Não roubar ou começar brigas na Taverna.

Como resultado, o local era o único que tinha algum semblante de normalidade naquele poço do inferno. A atmosfera era calma e amigável, e isso era visível nos membros dali. Todos eram Ladinos, com a maioria sendo Halflings com alguns Elfos-negros e meio-elfos.

Um ambiente que apenas os mais ágeis sobreviviam, um que um humano normal não teria chances. Mesmo que todos mantivessem uma postura relaxada, sem precisarem manter as armas por perto, ainda havia alguns ali que mantinham-se vigilantes, assim como aqueles que eram mais talentosos e que vigiavam uns aos outros enquanto mantinham a postura calma.

Estes eram os melhores mentirosos que a cidade tinha a oferecer.

Dentro daquele lugar, no entanto, havia um Ladino em específico, um que era de uma espécie rara para a classe. Um Humano Raro.

Esse homem mantinha a postura atenta. Esperava algo ou alguém, e, após alguns segundos, uma atendente passou por ele. Com extrema quietude e sigilo, pôs um papel enrolado na mão do homem, que sentiu seu coração palpitar em ansiedade.

Abriu-o escondido e, com um sorriso interno, viu o resultado de meses de investigação e trabalho duro começarem a dar frutos. Ali, naquele papel, só tinha uma coisa escrita: “A morte vos libertará”, junto a uma insígnia de duas adagas cortando uma corrente.

O homem sorriu vitorioso. Faltava apenas mais um pouco, mas logo mais, enfim conseguiria recuperar aquela que perdeu. Enfim encontraria sua irmã.

Levantou-se e partiu para a saída, mas não sem antes guardar o papel num bolso e manter as mãos nas duas Adagas, uma cena normal para quem está indo embora da taverna. Uma que foi recompensada pois, assim que cruzou o portão, não deu dois passos sem ter que desviar de diversas flechas.

Nisso, o homem deixou um sorriso feral escapar, seus passos ágeis e discretos o levaram na direção de onde as flechas vieram.

 

Já era dia, e Ethan parecia mais letárgico do que nunca. Dormiu apenas duas horas, pois usou o resto do tempo para recolher alguns materiais necessários e preparar ferramentas para conseguir algo que pudesse comer.

Segurando em sua mão um pedaço de madeira afiado, sorriu ao ver o resultado de seu trabalho duro ali. — Certo. É hora de caçar! — Caminhou para a direita, onde havia uma imensa floresta, com certa ansiedade e temerosidade.

Adentrando na mata o rapaz preparou sua lança enquanto mantinha os sentidos atentos a tudo. Após alguns minutos de caminhada, avistou uma possível presa. Era um Cervo, pastando tranquilamente na selva.

Mirou a lança e imitou o movimento que viu seus irmãos fazerem quando eram crianças. Seus pais não aprovavam deles adentrando na mata, e isso ficava claro com a forma que seus irmãos o ameaçavam para que nunca contasse o que eles faziam, algo que não faria mesmo sem as ameaças.

O mais velho do trio, Kurt, era um caçador novato, mas que tinha grande talento. Seu pai havia o levado para caçar diversas vezes e o rapaz nunca deixou de gostar disso. Ethan ainda se lembrava da primeira vez que acompanhou seus dois irmãos mais velhos na caçada.

Kurt e Nate carregaram todo o peso e tiveram o trabalho de ensinar ao seu eu mais jovem como limpar a carne e aonde mirar no animal.

Se bem que essa era a primeira vez que tentaria algo assim e, por isso, sentia-se temeroso. Ele puxou uma forte lufada de ar e copiou a posição que viu seu irmãos mais velho usar, não fez nenhum som, como se aquilo fosse natural para ele.

O rapaz atirou a lança, estava esperando uma falha, mas se surpreendeu muito ao ver a lança perfurar o pescoço do Cervo, assim o matando na hora. — Mas… como? — Após alguns segundos em confusão, sorriu e foi até o Cervo. Pegou-o nos ombros como seus irmãos faziam, com o mesmo equilíbrio que eles tinham.

O jovem levou o prêmio para fora da mata e, ao voltar para a estrada, ele começou a segunda parte do processo. Havia deixado algumas pedrinhas afiadas arranjadas num círculo.

Pegou uma pedra que havia afiado, e pôs-se a abrir o estômago do Cervo. Precisou esforçar-se mas, depois de 30 minutos, conseguiu. Deixou os órgãos caírem, e começou a tirá-los dali, jogando-os longe de onde estava. Após uma hora de trabalho, enfim concluiu o serviço e começou a segunda parte.

Estava usando a faca improvisada para cortar a carne do animal em tiras e as colocou numa das lanças. Depois, com água na boca, começou a assar a coxa.

Seus pensamentos voltaram para o que acabara de fazer.

Mesmo feliz, ainda estava abismado com o que fizera. Não devia ter essas habilidades, ainda mais sendo que ele só as viu serem aplicadas, mas seu corpo parecia ter memorizado cada ação, como se fosse necessário apenas evocar uma memória e poderia repetir uma técnica executada por outra pessoa perfeitamente, mesmo a nível muscular.

O rapaz deixou escapar um sorriso com isso. Talvez esse seja um daqueles chamados Talentos Naturais do qual tanto ouviu falar.

O pensamento fez com que uma emoção estranha subisse do seu estômago para o peito. Uma que identificou como Orgulho.

O fogo demoraria para terminar a carne, e, portanto, pôs-se a meditar. Estava com um sorriso idiota no rosto sempre que lembrava do que fizera e, como não queria forçar, foi até o ponto que era seguro no seu subconsciente, sem o risco de ser expulsado.

Com a capacidade de sentir a Energia Interior, entrar num transe demorou apenas alguns segundos. O rapaz enviou sua consciência em direção ao vazio, notando que a resistência do Segundo Portão da Segunda Camada estava um tanto mais fraca do que antes. Ainda assim, ele não testaria sua sorte no Terceiro Portão.

Não com a carne de Cervo que teve tanto trabalho em caçar e preparar bem em sua frente.


Notas:

1 — Energia interior é a energia vital, que circula o corpo e permite aos seres vivos acessar os Ciels e os benefícios que isso traz.

 

Oi, eu criei um Pix (banco caixa). Se puderem me dar uma contribuição, vou agradecer: 0850fa07-b951-4cd4-b816-8d3beb6ebf51

 

Vale lembrar que esse capítulo saiu mais cedo por conta de uma viagem que farei amanhã, por isso veio um dia antecipado.



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