A Lenda do Destruidor Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 2: O Início da Jornada

A cidade de Oldale era próxima à Vila Cucko. Tinha construções antigas.

A primavera de Cucko tinha certa influência na cidade. Mesmo assim, Ethan não dava a mínima para nada disso enquanto olhava para a janela.

Lembrava-se de quando seu irmão mais novo ficou muito doente e toda família foi para a cidade, em busca de tratamento. A memória despertou tristeza em si, visto os eventos de três dias atrás.

Olhou para os lados, as paredes de madeira eram bem cuidadas e o espelho refletia seus olhos mortos e cansados, algo que se tornou habitual para si. A superfície estava úmida com vapor, e sua imagem saia turva.

Combinava bem com ele.

Os doutores ali deixaram um cesto de maçãs abacus, uma espécie especial que não ressecava nunca e tinha um gosto doce. Isso era algo esperado, visto que eram o trabalho de transfiguração, uma arte que dependia tanto da imaginação do usuário quanto o conhecimento de equações, e por isso levavam o nome abacus.

De fato, todos em Oldale eram gentis, mas Ethan suspeitava que isso era por herdar uma pequena fortuna de seus pais e compatriotas, cujos corpos agora enfeitavam a antiga Vila Cucko.

Cada reino possuía políticas específicas no que tangia a herança de grandes fortunas, e mesmo não sendo mais uma família, ainda tinha alguns direitos de herança. O jovem teve a sorte de uma lei controversa do novo rei passar no senado, uma que, desde que haja o mínimo de parentesco, permitia a algum sobrevivente de uma enorme catástrofe ganhar 70% das riquezas de todos ali.

Assim que recebeu a notícia do dinheiro, mandou seu advogado, que veio até si alguns dias antes, criar uma conta no banco central de Gália e converter tudo em créditos. Mesmo que estivesse feliz com a chance de nunca mais precisar trabalhar, uma parte grande de si não pôde evitar de pensar que não merecia aquilo.

Ele não merecia sequer estar vivo.

Seu vilarejo, sua família, todos que ele conhecia e amava, foram exterminados. Era o único sobrevivente, e esse fato o assombrou por várias noites. O trauma que adquiriu com a risada de Agar causava habituais ataques de pânico, que tornavam-se raiva após algum tempo.

Todo o dinheiro do mundo não podia compensar a culpa que sentia, junto ao ódio que a tragédia trouxe. Mesmo assim, ainda queria se tornar um mármore, pois precisava disso.

Era a única coisa que sabia fazer. Estudou a vida inteira para tornar-se um e, por mais que isso o magoasse, ainda tinha certa admiração pelas histórias de seu avô, mesmo que a maioria delas fossem falsas.

Pegou uma das maçãs e voltou a olhar para a cidade. O frescor e doçura da maçã abacus era algo que não podia ser natural na planta, e a fome, oriunda de um dia e meio sem comer nada e ficar apenas olhando para o lado de fora, era um ótimo tempero.

“Me pergunto se os investigadores estão procurando angu em caroço, ou se ainda estão desembestiados.” Sua respiração ficou presa em sua garganta, e a ansiedade voltou com tudo ao lembrar que era o suspeito principal por trás do massacre.

Tudo graças aquele sentimento que o compeliu a tal.

Mesmo tudo apontando para encrenca, que o senso comum dizia que aquilo era um erro, ainda assim tomou aquela decisão e só podia se odiar por isso. Afinal, a culpa o comia por dentro, e a raiva só diminuía a culpa e tirava o foco dela.

O fato dele ser um covarde que não conseguia aguentar a culpa só aumentava intensidade das chamas dentro de si.

Terminou a maçã e sua mão foi até seus olhos. Sentia vontade de chorar, mas não tinha forças para tal. Só coçou os olhos, que ardiam com a luz brilhante do sol. Desviou o olhar de volta para o quarto.

Seu olhar vazio então encontrou a cesta de frutas na mesinha de cabeceira e foi até a faca que estava lá para cortar a maçã. Seu braço direito foi em direção a ela e a pegou, a hesitação estava clara em seu rosto.

Trouxe-a para perto de seu pescoço, próximo a jugular. Só um pouco de força e esse tormento acabaria, só precisava disso… mas algo o parou. Agar gargalhou em sua mente, coisa que substituiu o vazio por ódio.

Vozes de seus compatriotas e família então entram em sua mente, gritavam com ele. Acusavam-no de covarde, de alguém sem coragem nem ao menos para terminar sua maldita existência.

Largou a faca, fechou os olhos e tampou os ouvidos, seu peito doía muito em clara tristeza e culpa e, com a respiração descompassada, não conseguia ouvir aquilo, mas as vozes continuaram a sussurrar e as visões dos seus compatriotas morrendo um a um continuavam surgindo.

— Não… por favor…

A voz do demônio começou a falar em sua mente, num tom zombeteiro e maldoso, perguntou se estava feliz com o presente… e Ethan só pôde gritar:

— Não!

Após alguns segundos de ataque de pânico, vários médicos e enfermeiras entraram e, todos preocupados com os gritos, deram o que parecia um sedativo para o rapaz de cabelos negros. Isso fez com que o rapaz parasse de se debruçar, caísse na cama e dormisse.

Tudo enquanto se lembrava da parede de carne que causou tudo isso.

 

Após os médicos saírem, um jovem, vestido de padre, olhou com certa frieza para a porta. Sua postura quieta e seu rosto inexpressivo não traiam nenhuma das emoções conflitantes que sentia.

Parou um dos médicos ali, um velho com bigode branco, que parecia ser o chefe deles e que estava tão preocupado com o rapaz quanto qualquer um ali.

— Como ele está?

— Não há nada de errado com seu corpo, mas sua mente está quebrada. Duvido que ele se recupere totalmente do trauma.

Já esperava por isso. Perder tudo não era algo que sarasse com facilidade, e o médico sabia disso tanto quanto ele, mas não falou nada. Deixou o doutor sair dali e voltou sua atenção à porta de madeira, bem cuidada e sem nenhuma imperfeição, com uma placa com o número “1124” escrito em letras douradas.

Hesitou por um segundo, mas levou sua mão trêmula até a maçaneta. Não pôde deixar de lembrar-se de seu próprio passado e das coisas que passou para chegar até lá. Um sorriso amargo, mas nostálgico, apareceu em seu rosto.

Por ser um padre da igreja de Seth, tão quanto um Mármore a serviço do reino de Gália, suas ordens ali eram simples. Caçar um ser que estava causando diversas distorções na região. Esperava uma Sentinela, ou até mesmo um Dragão, mas nunca pensou que um demônio estivesse por trás de tudo.

Haviam coisas que apenas demônios eram capazes.

Apertou a maçaneta com força, o sorriso desapareceu, e a amargura e nostalgia deram lugar a uma raiva profunda, uma que apenas aqueles que desejavam vingança podiam conseguir. Abriu a porta e olhou tristemente para as feições tranquilas do rapaz.

Era como uma zombaria para a situação que ele passou.

Deixou o rapaz só, saiu do quarto, fechou a porta lentamente e amaldiçoou o rangido das dobradiças, aquilo era um som realmente irritante para seus ouvidos. Com certa paciência, seguiu em direção a saída do hospital.

— Então, aonde vai agora, Inasa?

O reverendo olhou para a esquerda e se deparou com uma garota de feições angelicais, mas que ainda eram humanas. Tratava-se de uma meio-elfa e compatriota de missões do reverendo… não que pudesse dizer algo contra. Aquela mulher estava o seguindo sempre.

O jovem virou seu rosto, que mostrava uma expressão resoluta de conseguir vingança por aquele espírito quebrado. “Talvez deva rezar uma missa por ele…” Tão rápido quanto esse pensamento veio, foi-se ao lembrar da peculiaridade do rapaz, e do quão estranha ela era. Escolheu deixar aquele que salvou ali, sem desejo algum de o ajudar novamente. — Para o leste. Tenho que caçar o demônio. Sugiro que faça as suas malas, Helena. Partiremos a noite.

— Entendo… você realmente não gosta de manchas no seu recorde perfeito, não é? Ainda assim, aquele rapaz… me lembra muito você quando era mais jovem. Tem até os mesmos olhos sem vida!

O reverendo voltou seu olhar para a porta, um brilho aparecendo em seus olhos, um que foi esmagado logo em seguida, não podia ter distrações. Distrações só atraiam desastre para si e para os outros. — Sim… e é por isso que não posso ficar aqui.

— Não acha muito cedo para irmos, Reverendo Inasa? — O padre suspirou com imenso cansaço e estresse ao ouvir a voz doce detrás de si. Só havia um homem naquela cidade que conseguia causar esse sentimento de ser observado por um predador imenso, que esperava por algum erro. — Quer dizer… aquele garoto tem sorte. Acho que ele se saíra bem na associação.

O jovem olhou de volta com uma sobrancelha arqueada, o único gesto que transparecia a surpresa pelo interesse repentino do homem. — Sorte não te leva longe. Os doutores fizeram testes atrás de testes, mas aquele rapaz é estranho. Não possui um único Ciel dentro de si, e, sem alcançar o primeiro Céu, não se poderá avançar como Mármore.

— Bem, isso só o torna mais sortudo, não acha? Estar vivo sem os Ciels é algo bem interessante, então eu não culpo o Beell.

O homem vestia um chapéu Fedora e uma camisa e calças negras, com um quimono branco e aberto, junto a sandálias em seus pés. Sua pele era bronzeada e seus olhos eram negros como a mais profunda noite, com cabelos esbranquiçados.

A aparência exótica só complementava o ar de perigo que o cercava.

— Bem, faça como quiser… eu vou ficar. Esse jovem é interessante demais para sair assim.

Aquelas palavras ressoaram em Inasa, a carranca se acentuou. Estava curioso demais para saber o destino da criança… e também, por mais que odiasse admitir, ele tinha ciência que o rapaz precisaria de um ombro amigo para se apoiar. Reerguer-se nunca foi fácil.

Essa era uma coisa que ele aprendeu da forma mais difícil.

 

Ethan abriu os olhos, ainda vazios e sem vida que tinha antes, e, após virar-se para a janela de novo, voltou para a realidade. A noite era escura e sem estrelas, e as runas ao redor do quarto davam uma sensação térmica agradável para ele.

Foram configuradas para a temperatura da primavera.

Suspirou cansado, tinha que parar de relembrar o passado e seguir em frente… mas a questão era aonde ir a partir de agora? Continuaria com seu sonho e se tornaria um Mármore? Ou desistia e usava seu dinheiro para viver o resto de sua vida tranquilamente?

— Finalmente acordou! — Virou-se surpreendido para trás e deparou-se com Beell, que mantinha um sorriso amistoso e inocente, como se não fosse um estranho que invadiu seu quarto. O homem levantou-se da cadeira, com uma passada tranquila e foi até onde ele estava. Sentou-se no pé da cama e relaxou os ombros. — Me diz, quando partirá?

— Partir? Para onde? E quem diabos é você?

O homem pareceu chocado com isso, algo que, na opinião de Ethan, era estranhamente irritante, mas logo se recuperou. — Como assim para onde? Nós precisamos chegar numa cidade grande e fazer seu registro na Companhia de Mármores!

Ignorou o fato do homem não responder sua segunda pergunta para sentir um pouco de náusea com a imagem que lhe veio a mente. Se não fosse seu desejo de se provar, talvez todos ainda estivessem vivos. Não era culpa do seu sonho, mas sim de si mesmo… porém, para ele era mais fácil culpar os Mármores e seu avô.

O rapaz roeu os dentes quando se lembrou do velho e da figura patética que o mesmo mostrou ser no limiar da vida e da morte, assim como a coragem que não possuía, de como lhe abandonou no momento mais importante. — Um Mármore? Deixa de paroqueada, sô. O que há de tão especial neles assim?!

Se Beell notou o veneno na voz do rapaz, não mostrou. Invés disso, apenas sorriu com bondade e paciência, como se falasse com uma criança, invés de um possível cão raivoso.

— Bem, acredito que devo começar aliviando sua culpa… o demônio que arruinou sua vida estava naquele lugar a um tempo. Já havíamos recebido relatórios de desaparecimento de animais, e até pessoas… então, é possível que sua cidade fosse apenas mais uma nos planos dele. — Notou a forma como o moreno não falou nada e apenas desviara o olhar. Decidiu guardar isso para mais tarde.

Levantou suas mãos e tocou nos ombros de Ethan com um enorme sorriso. — Permita-me então falar que a culpa dessa tragédia não é tua. Agora, me responda algo… o que vai fazer com esse conhecimento?

— O quê?

— Enquanto acredito que tem formas melhores de se viver, sei que está num lugar bem sombrio, e que a raiva que sente de si mesmo é algo bem intenso… mas que tal direcionar essa raiva para o verdadeiro culpado? Que me diz de se vingar?

Ethan ficou calado. Travou ao ouvir aquelas palavras. Sim, Agar foi quem matou seus compatriotas, não ele… mesmo que isso não diminuísse sua culpa, sentia que, ao menos agora, tinha um outro objetivo.

— Em segundo lugar, tenho certeza que teu avô lhe disse das riquezas que é possível acumular como um Mármore. Sei que não precisa se preocupar com dinheiro, mas as riquezas não são apenas monetárias. Conhecimento, influência… e até mesmo liberdade. Tudo é possível ao ser um Mármore.

Nisso, o rapaz parou e olhou de volta, seus olhos arregalados. — É incrível o que é possível fazer tendo uma licença. Pode viajar sem fronteiras, pegar fundos do governo, desde que tenha uma justificativa é claro, e acima de tudo… tem-se a liberdade e recursos para buscar vingança.

“Vingança?” Sua memória voltou para o dia do eclipse, das expressões aterrorizadas dos seus compatriotas, do desespero de não salvar ninguém, não importa o quanto tentasse… e da risada daquele que causou tudo. — Se eu me tornar um Mármore… terei permissão e recursos para matar quem destruiu com minha vila?

— Mas é claro! Primeiro, no entanto, temos que dar a você a capacidade de lutar.

O rapaz apertou as mãos até sentir suas unhas cravarem em sua carne, sua frustração aumentou ao lembrar-se do diagnóstico que lhe deram sobre seus Ciels. — Diacho, eu não tenho como… nunca consegui despertar a desgraça do primeiro Céu, ainda mais adquirir poder o bastante para matar um demônio!

— Não se desespere! — O homem sorriu, enquanto estendia suas mãos para o alto num claro gesto de grandeza. — Os Ciels não são uma necessidade, apenas um facilitador. Eles permitem aumentar nossos Status, mas só temporariamente e contanto que tenhamos energia vital para gastar! Mas bem, ainda é possível subir de nível sem os Ciels.

Lembrou-se de algo que leu uma vez sobre níveis e sentiu as suas esperanças serem renovadas. Pelo fato dos seres vivos estarem em constante mudança, os níveis representavam o grau de força que alguém tinha.

— Tenho certeza que, se trabalhar mais que todos, vai conseguir subir seus Status o bastante. Afinal, os Ciels são um facilitador, mas não um recurso. Claro que, para não regredir, deverá trabalhar mais que todos.

Sim, isso era fato. Haviam cinco Status, Inteligência, que era aumentada com leitura, Sabedoria, a vivência e aplicação do conhecimento em sua vida. Força era a capacidade que um tem de levantar peso com poder bruto, enquanto Destreza era a técnica que um possui para se mover e usar um objeto com o mínimo de esforço. Também existia Constituição, que é a capacidade de não cair, ou seja, vitalidade.

Lembrou-se de quando viu, na carteira de identidade de seu pai, os Status dele. Pouca inteligência, mas alta sabedoria e constituição. O sorriso voltou ao seu rosto, um que traduzia a nostalgia que sentia.

Pareceu pensar nisso tudo. Pela primeira vez, tinha um objetivo por trás de seu sonho. A vingança era um forte motivador mas… havia algo mais. Queria fazer memórias que, como as de seu avô, botassem um sorriso em seu rosto. Queria ser um Mármore e aprender mais sobre o mundo lá fora, queria uma aventura.

Era infantil, mas era seu objetivo.

E assim, a vida voltou aos seus olhos, e quando Beell encontrou com o olhar de Ethan, não pôde deixar de sentir surpresa com a intensidade que havia ali.

— Bem, é melhor eu ir me aprontando então.

 

O jovem de cabelos negros olhou para o asiático a sua frente, a luz da manhã iluminava as feições do reverendo, que continham serenidade e bondade. — São bons olhos… os que tem aí. Se tiver sorte, nos encontraremos no futuro.

Mesmo cortês, o Padre da igreja de Seth desviou o olhar do rapaz, algo que causou dúvidas em si, mas decidiu não dizer nada sobre elas. Tinha coisas mais importantes para falar, mas não sabia como.

O reverendo virou-se para sair e deixou o rapaz só, e então, com pressa, decidiu botar para fora o que tinha que dizer. — Espere! Foi você, não é? O cara que me salvou. — Seus olhos nervosos registraram a surpresa do reverendo, que arregalou os olhos, mas continuou com a feição inexpressiva.

Inasa aproveitou para dar uma olhada mais de perto no rapaz, desde o estado de saúde até a vestimenta. Ethan usava uma calça negra e uma camisa da mesma cor, com abotoadoras douradas, uma roupa usada e não condizente para alguém que herdou uma fortuna, mas Inasa não pôde deixar de elogiar mentalmente a modéstia do rapaz.

— O que te faz pensar isso?

Ethan abaixou sua cabeça enquanto tentava organizar seus pensamentos em palavras, o que era algo complicado, visto que sua língua travara em sua boca. — Pior que não sei, sô. Naquela disgracêra, juro que só vi uma luz brilhante mas… eu lembro da sensação que ela trouxe. Como se fosse um fogo me aquecendo, me dando vida e força… eu queria agradecer.

O reverendo ficou chocado com as palavras do rapaz. — Não há de que, eu acho. — Após isso, ambos se despediram e saíram dali, o rapaz fora acompanhado por Beell até a saída da cidade, onde os dois estavam para seguir caminhos separados.

Beell disse que Ethan devia manter-se pela estrada, não sair dela nem por um segundo e seguir sempre para Norte, onde chegaria na Grande Cidade de Lockust. — Bem, é isso. Desejo-lhe sorte.

Olhou para a estrada a sua frente com emoções conflitantes. Por um lado, temia o que encontraria na estrada, por outro, estava empolgado para tornar-se um Mármore. No entanto, algo chamou a sua atenção e, com certo receio, virou-se para o homem.

— Cê não vá í?

— É, sinto muito garoto… mas não posso aparecer lá com você. Para seu próprio bem, é melhor que não seja visto comigo ainda. Sugiro que treine bem enquanto viaja. A cidade para onde vai é um lugar complicado.

Nisso, sua curiosidade foi despertada e não pôde deixar de estranhar a falta de emoções na voz do homem, que ainda mantinha o mesmo olhar preocupado, algo que o alarmou. — Por quê? O que diacho tem lá?

— Bem, a cidade de Lockust é conhecida por outro nome. Vila dos Ladrões.

Deixou o rapaz de lado e voltou para o hospital, sem se importar com o estado de pânico que o rapaz estava. Ethan não sabia nem lutar direito, tanto mais sobreviver numa vila de ladrões. “Não posso ser bocó! Isso é só mais um teste. Se não dormir no ponto, é só o primeiro. Vou passar nele e me tornar um Mármore!”

 

— Então, o que acha do rapaz? — O reverendo ficou num silêncio pensativo, sem saber como responder aquela pergunta. Ele e Helena caminhavam na rua deserta, uma que levava a saída da cidade de Oldale e tinha uma atmosfera tranquila, que zombava do conflito interno que sentia. — Oooi, chamando todos os malucos! Algum maluco aí?

Inasa empurrou a meio-elfa para longe, que sorriu ao finalmente ter a atenção dele. — Ele tem bons olhos…

— Só isso? Eu achei ele interessante. É raro ver alguém como ele.

— Não há nenhum registro de alguém incapaz de alcançar o Primeiro Céu. É inconcebível que alguém assim exista… então é isso que penso dele: Ele é uma aberração desalmada! É isso que eu acho.

Aquilo era verdade, ao menos parcialmente. Por mais errado que a existência de Ethan fosse, como um membro da igreja, Inasa devia amar todos os seres inteligentes, independente de quem sejam.

Mas a verdade é que o rapaz era tudo o que a igreja condenava. Sua mera existência ia contra todos os ensinamentos dela… e isso o irritava profundamente. Afinal, os Ciels estão relacionados diretamente a alma e para alguém não despertá-los… era simplesmente impossível.

— Céus, você leva as coisas a sério demais Quer dizer, ele provavelmente nem vai conseguir chegar no prédio da Associação. Quanto mais passar dos testes.

Ambos ficaram em silêncio por alguns segundos. Eles sabiam bem que o rapaz não conseguiria, mas Inasa sabia também que algo assim era uma afronta a própria vida.

— Não é esse o problema… — Sua mão foi até a empunhadura de sua espada, presa em sua cintura. — Ele nem ao menos devia estar vivo para início de conversa.

— Sim, é verdade… — Ela parou de andar, algumas palavras em uma língua desconhecida saíram de sua boca.

— Ainda assim, não muda o fato de que ele vivê, então eu acho que, como reverendo, talvez devesse aceitar a existência dele como um milagre, invés de uma maldição. — Num rápido movimento, o reverendo interceptou a sombra que estava para arrancar a cabeça da meio-elfa.

A espada do reverendo estava coberta de luz, com pontas serrilhadas na lâmina. O assassino à frente dele vestia uma capa que cobria tudo, com uma máscara mostrada ante a iluminação. Forçou o adversário para longe, mas o ladino se moveu mais rápido do que o reverendo esperava.

A maga rapidamente terminou um encantamento, que mandou uma esfera de eletricidade contra o homem. O mesmo conseguiu desviar por pouco e avançou contra Inasa, que pôs a espada numa postura protetora e as adagas do assassino chocaram-se contra o fio de Luz, porém elas continuavam firmes e resistentes.

O assassino deu um chute no estômago do padre e desviou de outro raio com um salto, ambos maga e espadachim olharam surpresos com a destreza do assassino, que avançou contra Helena.

A mesma, no entanto, já estava preparada. Um dos talentos mais incríveis que alguns magos possuíam era a Conjuração Múltipla, que dava para Helena a capacidade de conjurar múltiplos feitiços a partir da combinação de partes da conjuração de uma magia com outras.

A meio-elfa transmutou o ar num escudo, que bloqueou as adagas, e então diversas espadas apareceram e empurraram o ladino para longe, enquanto causavam cortes em sua capa.

Após se afastar, o assassino desviou, por puro instinto, de um corte da espada de luz, o asiático brandiu a espada num ritmo frenético, porém com técnica refinada. A velocidade foi tal que o ladino perdeu o equilíbrio e caiu no chão, com a espada de luz apontada para seu pescoço, junto de um feitiço de raios, pronto na mão da maga.

— Comece a falar! — O Ladino, sem hesitação nenhuma do que faria a seguir, começou a ter espasmos e, em alguns segundos, o reverendo e a maga foram engolidos por uma luz forte, um barulho ensurdecedor soou.

O corpo do ladino desapareceu ante as chamas, não restou nem os ossos dele. A única coisa que foi salva da explosão foi a máscara, que tinha, em sua superfície, um símbolo de duas adagas cruzadas sobre uma corrente, como se a cortassem.

— Céus, essa foi quase! — Beell segurava os ombros de Helena e Inasa. O cabelo dos dois estava desarrumado, e ambos mantinham um semblante enjoado. — Não façam essa cara. Até parece que essa é a primeira vez que são movidos a essa velocidade.

— Ta aí uma coisa que eu nunca vou me acostumar…

Pondo sua mão para cima, a máscara do ladino apareceu sobre ela. — Olha só… parece que alguém aqui ganhou notoriedade o bastante para que alguém enviasse um assassino. Me pergunto quem foi.

— Não olhe para mim! Eu juro que não irritei ninguém!

— Não é como se irritar alguém fosse um pré-requisito. — O reverendo olhou para ela e soltou um suspiro. — Quer dizer, eu não sou exatamente irritante e tem muita gente querendo minha cabeça.

— Bem, como você saberia? Quer dizer, eu te considero um cara bem chato.

O mesmo apenas desviou o olhar enquanto tentava se acalmar. Beell olhou para a máscara, que zombava de si. Sua mente foi de volta para o rapaz que encontraram na cidade destruída, o mesmo que se dirigia agora para a Vila dos Ladrões, local onde a Guilda de Assassinos estava.


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