Volume 1

Extra 3: A Garota e o Herói

Tap, tap, tap...

Passos quietos ecoaram pelo castelo.

O lorde demônio já tinha fugido, deixando sua cidadela para trás. Eu era a retaguarda. Um cordeiro sacrificial. Ele me usou como uma ferramenta até o fim, sem mostrar nem um pingo de emoção ao longo do caminho. A única gentileza que me mostrou, foi quando ele me chamou pelo nome, eu acho.

Eu o odiava por isso? Honestamente, não tinha certeza. Era a vontade de Ifrit, o elemental de fogo de alto nível, que me fazia servi-lo, ou era a minha?

Eu ainda não sabia. E não me importava muito em ser o sacrifício. Nada parecia importar mais.

Esse castelo parecia ser um tipo de instalação experimental. Abandona-la, porém, não parecia ser uma perda grande aos olhos do lorde demônio. O que me confundia era o objetivo dele em me deixar aqui. Eu poderia só ter recuado ao invés de engajar na batalha contra quem viesse, mas ele ordenou que ficasse.

Talvez ele tivesse algum plano em mente, mas seus pensamentos continuavam um mistério para mim.

Aquele que chegou era o tão chamado herói.

Ela tinha seu cabelo prateado escuro amarrado atrás da cabeça, e seu equipamento leve tinha a coloração de um tom de preto uniforme. Sua beleza rivalizava a do lorde demônio. A única diferença era o fato de ser uma mulher. Uma jovem mulher.

No momento em que meus olhos pousaram nela, eu soube. Não tinha chances de vitória. Mas queria lutar contra ela até o fim — não como uma pessoa, mas como uma nascida da magia com poderes de fogo. “É o mínimo que posso fazer para recompensar o pecado de ter vivido todo esse tempo.”

Minha espada de chamas concentradas foi facilmente pega pela a do herói. Minha arma queimou com um calor intenso, capaz de rasgar qualquer coisa, e sua lâmina curva simples a parou. Isso me fez duvidar do que via. Sem dúvidas isso era devido ao poder do portador mais do que o poder da espada em si.

Graças ao treino que recebi do confiável cavaleiro negro do lorde demônio, ganhei um certo domínio sobre a esgrima. Não era nada que Ifrit tivesse aprendido antes. Me lembrei de como o cavaleiro me elogiou, disse que era por conta do meu próprio talento.

Como uma nascida da magia, eu era fisicamente forte o suficiente para estar nos escalões superiores da guarda de Leon. Acrescentando o fato de ter dominado minhas habilidades com a espada sob a orientação do cavaleiro negro. O que me tornou um confidente próximo do lorde demônio foi além dos poderes de Ifrit.

E ainda assim — nada do que fazia afetava o herói. Os golpes e cortes nos quais trabalhei infinitamente para aperfeiçoar eram defendidos sem esforço algum. Suavemente desviados antes que nossas lâminas pudessem sequer se chocar de verdade.

Mesmo quando as chamas ardentes de Ifrit envolveram o meu corpo inteiro, o herói continuava calmo, sem derramar uma única gota de suor. Assim como pensei de primeira, ela estava em um plano de existência completamente diferente.

Então senti Ifrit adormecendo em meu corpo, um efeito colateral de consumir mágiculas demais. Era impossível continuar lutando. Eu perdi, incapaz de acertar sequer um golpe. Colapsei no chão, confiante que tinha retornado o favor para o lorde demônio. Meio que desejava poder viver mais, mas duvidava que o herói mostraria misericórdia para uma nascida da magia como eu.

— Já acabou? — A ouvi dizer. — Por que você está aqui? — Era um pouco surpreendente. Estava esperando que a morte viesse no próximo segundo. Minha cabeça virou para ela. O herói era o caçador de todas as maldades, e eu era sua inimiga, uma nascida da magia. Se ela me matasse agora, não teria nada para reclamar.

Que capricho dela incitou essas perguntas? Timidamente, abri minha boca. Então, contei para ela como fui invocada para esse mundo, como havia vivido até agora... O que tinha feito.

Era egoísta da minha parte. Eu era uma nascida da magia agora. Não tinha o direito, nem esperança, dela acreditar em mim. Mas é verdade... ter alguém se interessando em mim e ouvindo a minha história me deixou feliz. Isso deixava evidência irrefutável que estive viva todo esse tempo. Podia soltar meu fôlego e proclamar para o mundo que vivi, mesmo se só na memória de alguém. Era isso o que queria fazer.

Achava que o herói jamais iria acreditar no conto de uma nascida da magia. Mas estava tudo bem. Se eu criasse um canto na memória dela para ocupar, era o bastante. E ainda assim:

— Está tudo bem agora. Você passou por muita coisa.

Ela acreditou em mim.

As palavras dela trouxeram lágrimas aos meus olhos. Quando fui ver, estava grudada nela, chorando. Pela primeira vez desde que vim para esse mundo, alívio me abraçou enquanto expressava meus sentimentos para alguém.

Acabei ficando sob o cuidado do herói.

A cara dela se escureceu ao ver as minhas cicatrizes de queimadura. Estava acostumada com elas; o jeito que elas se espalharam por metade do meu corpo era prova de que estava viva.

O herói tentou usar alguma magia de cura para fazer algo sobre elas. Não pareceu funcionar. Me fundir com Ifrit tinha estabilizado meu corpo no estado atual, cicatrizes e tudo. Ela parou por um momento e então pegou uma máscara bonita de uma bolsa.

— Sabe — disse —, essa máscara ajuda a aumentar a sua resistência à magia. Talvez você precise disso para manter Ifrit afastado dentro de você. — Ela acariciou a máscara com amor, e então me entregou.

Assim que coloquei a Máscara de Resistência Mágica, Ifrit foi imobilizado dentro de mim e as cicatrizes no meu corpo foram escondidas. E não foi tudo. Com a vontade de Ifrit não mais me dominando, todas as emoções reprimidas que senti ao longo dos anos imediatamente voltaram. As pontadas de solidão, o medo de se tornar uma nascida da magia. A profunda vergonha de matar a primeira amiga que fiz. O ódio intenso que sentia por esse mundo injusto. Colocar aquela máscara me ajudou a resgatar as emoções que pensei ter abandonado junto da minha infância.

O herói me abraçou apertado até eu me acalmar. Me lembro do quão assustada fiquei depois disso por um tempo... tão assustada que não conseguia conversar com ninguém além do herói. Mas ela nunca reclamou. Ela me tratou com carinho. E pouco a pouco, ela afrouxou as amarras ao redor do meu coração, me ensinando como me comunicar com outros mais uma vez.

Acompanhei o herói para onde quer que ela fosse, me escondendo em um robe de corpo inteiro. Sempre estava seguindo ela, com medo dela me deixar para trás. Foi por aí que fui introduzida à Sociedade de Aventureiros. Eu era, como as pessoas daquele tempo diziam, uma garota silenciosa, alguém que sempre cobria a face com uma máscara. Alguém que nunca se aventurava para longe da sombra do herói. Uma bagagem inútil.

Um dia, algo aconteceu comigo na sociedade, que eu tinha visitado junto do herói diversas vezes. Um homem, preocupado após ver como eu me juntava a ela em todos os trabalhos de caçar monstros que recebia, falou: 

— Aquela criança com a máscara é uma garota? — perguntou. — Não acha melhor deixá-la ficar aqui essa vez? Essa vai ser uma missão perigosa.

Tudo o que pude fazer foi me arrepiar com a ideia. Naquela época, o herói era a única pessoa no planeta que conseguia juntar coragem para confiar. O herói significa tudo para mim, e não conseguia nem pensar em ser separada dela. Tinha certeza que os adultos iriam me matar se descobrissem que eu era uma nascida da magia. Eu tinha um pouco de senso comum.

O herói me deu um sorriso. 

— Vai ficar tudo bem — Ela disse em um tom tranquilizador. — Todo mundo aqui é bem legal, tudo bem? Você é uma garota forte, também. Vai tudo dar certo.

Eu acho que foi isso que me fez concordar. Queria corresponder às expectativas do herói, e eu sabia que não podia continuar daquele jeito para sempre. Também havia algo sobre a maneira que ela falava, brilhando cheio de confiança. Me fazia acreditar que tudo o que ela falava era verdade.

Foi com uma sensação estranha de calma que, ali, me separei dela naquele dia.

Na sala de espera próxima a recepção da sociedade, comecei a estudar.

Isso aconteceu perto de quando aprendi que estava no reino de Blumund. Descobri que havia diversas outras nações ao redor da Floresta de Jura. E isso não era tudo. Quando eles não estavam lidando com os problemas da sociedade, os trabalhadores me ensinaram aritmética, assim como vários outros sistemas de escrita.

Escutava atentamente aos aventureiros de passagem enquanto eles falavam sobre as nações vizinhas. Meu conhecimento sobre esses outros estados e a balança de poder entre eles era fraco no início, mas ainda assim ganhei uma certa compreensão. Para alguém como eu, que dificilmente havia visto a parte de dentro de uma escola, a sociedade virou o meu local de aprendizagem.

Também estudei magia. A sociedade era uma casa para feiticeiros, xamãs, mágicos e encantadores, assim como muitos outros que eram versados nos ramos da magia. Fui sortuda o suficiente para construir amizade com eles, e eles, por sua vez, me ensinavam os mistérios do mundo.

Havia muito sobre o que eles diziam que parecia impossível para mim. Mas o que eu precisava acima de tudo era aprender como lidar com espíritos elementais. Ifrit, um elemental de nível alto, foi fundido em mim. Aparentemente, isso me permitiu receber as habilidades dele sem a formalidade de forjar um pacto com ele. Mas lembrem-se — eu ainda estava vestindo minha Máscara de Resistência Mágica.

Cuidadosamente, tentei achar um meio de contato com Ifrit. Logo descobri jeitos de manipular as habilidades dele sem exercer um fardo sobre meu corpo.

Em algum lugar ao longo do caminho, fiquei conhecida como “A Conquistadora das Chamas.” Eu era uma elementalista, abençoada nas artes da magia de fogo e magia explosiva, e tinha crescido ao ponto de ninguém se preocupar sobre me juntar ao herói em aventuras. Na verdade, ela tinha me aceitado completamente agora — não como uma companheira de viagem, mas como uma parceira de pleno direito.

Me deixava tão feliz. Tinha trabalhado tanto por tanto tempo para ajudá-la, para fazer com que a mulher que tinha salvado minha vida me reconhecesse por quem eu sou. Todos os esforços valeram a pena. A vida era boa. 

Diversos anos mais tarde, no entanto, o herói partiu em uma jornada.

Sem mim.

Não sabia o porquê. O herói deve ter tido suas motivações, assim como eu tinha as minhas. Eu pretendia me aventurar sozinha algum dia, então não tinha o direito de reclamar sobre isso.

Será que ela queria assassinar o lorde demônio que eu servi? Não, a verdade era…

Ela tinha me salvo, e então me deixado. Precisava saber o por quê, e talvez, queria que ela me aceitasse mais uma vez. Queria mostrar que estava viva, que era humana. Era exatamente esse tipo de esperança egoísta que provava que eu não tinha o direito de pará-la.

Eu já tinha crescido, não era uma criança ingênua sozinha no mundo. As gotas caindo na máscara devem ter sido minha imaginação. Fiz eu mesma acreditar que isso era verdade enquanto assisti ela indo embora.

“Porque eu sei que vou te ver de novo...”

O pensamento me fez querer ficar mais forte do que nunca antes.

Continuei viajando depois dela me deixar, através de vários países. Queria ajudar pessoas em seus momentos de necessidade, como ela fazia.

Fosse a influência de Ifrit em mim ou não, meu corpo parou de crescer na idade de dezesseis ou dezessete. Uma das maldições do lorde demônio, pensei, mas me serviu bem.

Um grande número de aventureiros estavam no negócio de cuidar do trabalho sujo de outra pessoa — procurar por plantas raras na floresta, caçar monstros e coletá-los por materiais úteis, e por aí vai. Era uma linha de trabalho que estereotipicamente envolvia tamanho e músculos igualmente grandes. Força pura criava respeito e confiança dos outros, já que significava que você podia cuidar de si mesmo em um trabalho que flertava com a linha entre a vida e a morte.

A Sociedade de Aventureiros atraía o tipo de pessoa que seguia uma vida livre e nunca era amarrada a uma só nação. Se fossem machucados lutando um monstro, não podiam esperar por assistência do governo de nenhum reino. Nações já tinham seus exércitos de cavaleiros para protegê-los. Não precisavam da ajuda de um aventureiro sujo.

Algumas vezes um lorde local pedia ajuda para afastar um monstro de suas terras ou vilas, mas não existia um sistema formal funcionando para encorajar a cooperação entre nações e aventureiros. Isso significava que as nações poderiam se expandir somente no alcance que seus exércitos podiam fisicamente defender — pequenos grupos de civilização em uma terra selvagem.

Havia tempos nos quais cidades caíam sob ataque de poderosos monstros. Cobras de três cabeças, leões alados e tal. Toda vez que essas “calamidades” apareciam perto de uma colônia, causavam tanta dor quanto uma guerra de grande escala.

É claro, podem esperar que governos cooperem e criem sistemas de suporte que se estendam além de bordas nacionais. E tais acordos existem, mas o suporte sempre vinha depois que as coisas estavam estáveis. No meio tempo, era visto como responsabilidade do próprio país derrotar o monstro em questão.

É por isso que aqueles com direito de habitante da cidade eram concedidos tratamento especial, enquanto outros tinham que se virar com a vida nas vizinhanças construídas nas áreas perigosas ao redor dos muros. Essas pessoas eventualmente se acostumaram com a vida de ser saqueadas e exploradas. Os mais fortes entre eles viam a carreira de aventureiro como um jeito de se proteger.

A diferença de riqueza entre o rico e o pobre cresceu rapidamente. Era um mundo competitivo, onde os fracos não tinham recursos. Eu queria protegê-los. Assim como o herói, que me ofereceu a salvação que tão profundamente esperei. Se abandonasse eles, não seria muito diferente do meu lorde demônio.

Então trabalhei o dobro para me tornar uma aliada dos fracos. E em algum momento durante o caminho, as pessoas começaram a depender de mim. A me chamar de herói.

Um dragão atacou a cidade, com a força de um exército inteiro. Um inimigo de nível calamidade. Blumund imediatamente declarou estado de emergência e colocou a nação em alerta máximo. Eu era uma das várias pessoas alistadas.

Um monstro da classe calamidade era normalmente descoberto uma vez a cada diversos anos, mas esse era diferente. Um golpe mediano não chegaria nem a perturbar um dragão, e o corpo de cavaleiros da nação era muito fraco na ofensiva para prover qualquer suporte. Eu mesma dei toda a ofensiva que tinha, mas minha espada pouco podia fazer contra um inimigo daqueles e dificilmente seria considerada uma ameaça a ele.

Se algo não fosse feito, milhares de mortes aconteceriam. Então, decidi chamar Ifrit, dormindo dentro de mim esse tempo todo.

O fogo capaz de derreter pedras do dragão envolveu meu corpo — mas por ter me juntado a Ifrit, não me pareceu mais do que uma brisa. Quando percebeu que eu era impermeável ao seu fogo — que eu era uma força a temer — já era tarde demais. Ondas de fogo rubro branco saltaram das minhas mãos, o prendendo antes que pudesse fugir. Depois de alguns minutos, ele foi queimado vivo.

Eu, por outro lado, entrei em coma por uma semana inteira. O esforço tinha drenado minha força mágica. Estava envelhecendo agora, e não conseguia focar meu espírito tão bem quanto nos anos anteriores. Enquanto meu espírito enfraquecia, minha magia também. Ifrit, e meu relacionamento com ele, me dava magia mais do que o suficiente para usar, mas a vitalidade necessária para aproveitar isso estava acabando. Falhei em perceber a drenagem graças a falta de envelhecimento do meu corpo. Mantive Ifrit pressionado o tempo todo — não é à toa que estava usando tamanha quantidade.

Tudo fica bem quando termina bem — o dragão foi derrotado, afinal — mas se tivesse dado um passo em falso, talvez um Ifrit enfurecido fosse libertado, um conceito muito mais aterrorizante do que qualquer dragão. Me lembrei do passado, minha face tensa e pálida. Se não fosse cuidadosa, poderia muito bem incinerar as pessoas que jurei proteger.

“Pode ser hora de dar um fim a isso.” Se me permitisse ficar ainda mais fraca, Ifrit poderia enlouquecer e se libertar. Aposentadoria era algo que precisava considerar, mais cedo ou mais tarde.

Conversei sobre o assunto com Heinz, um dos gerentes que dirigia as coisas na Sociedade de Aventureiros. — Se é assim que as coisas são — Ele disse —, eu te aconselharia a viajar para o reino de Englesia. Eles estão procurando por professores capazes de ensinar técnicas de batalha básica lá. Há muitos ex-aventureiros por aí, mas se você puder passar as suas habilidades para as pessoas, não vai precisar machucar alguém como trabalho.

Ele me entregou uma carta de referência.

— Obrigada — respondi. — Você tem feito tanta coisa por mim.

Ah, esquece isso — protestou. — Somos nós quem deveria agradecer a você, Shizu! Você tem sido um refúgio para todos nós. — Ele corou. — Bem, tenha uma boa viagem, eu acho. Se tiver algum tempo livre, volta pra cá e nos visite.

Todos se despediram antes de eu sair de verdade. Me fez sentir como se pertencesse a esse lugar. Como se tivesse sido assim por anos. Não conseguia acreditar no quão feliz isso me deixou.

Foi assim que, no fim da minha carreira, fiz a troca de aventureira para professora.



Comentários