Volume 1

Capítulo 4: A Conquistadora das Chamas

Então, lá estávamos. De volta à aldeia dos goblins. Fazia apenas duas semanas, mas já estava começando a sentir saudades. Assumindo que você quisesse chamar isso de aldeia. É mais um espaço vazio com uma cerca ao redor.

Enquanto estávamos fora, algumas tendas simples foram montadas ao redor da área. Havia sinais de progresso, pelo menos. Vi uma panela enorme de ferro sobre os restos da fogueira central. A culinária goblin costumava ser inteira sobre assar algo num espeto, mas agora começaram a ferver coisas também.

Esse é um desenvolvimento verdadeiramente notável. Onde eles conseguiram aquilo? Olhando mais de perto, percebi que era feito da casca de uma tartaruga grande.

“Cara, o quanto eles expandiram seus campos de caça enquanto eu estava fora?” 

Estava feliz por terem, pelo menos, mantido a base segura.

Os hobgoblins residentes avistaram o retorno de nosso grupo com rapidez, cumprimentando-nos com aplausos e animação. Eu havia rudemente esquecido de trazer lembrancinhas, mas dado as peles de monstros e coisas do tipo que vi secando aqui e ali — produtos de sua caça, sem dúvidas — estou certo de que todos os anões estarão equipados e vestidos em pouco tempo.

“Gostaria de ensinar os goblins a fazerem isso por si próprios, mas vamos dar um passo de cada vez.”

Tentei procurar por Rigurd para poder introduzi-lo aos anões. Não precisei. Ele correu direto até mim. Pensei que ele simplesmente estava animado em nos ver, mas tinha algo o incomodando em vez disso.

— Bem-vindo de volta! — disse antes que eu pudesse perguntar — Odeio incomodá-lo logo após seu retorno, senhor Rimuru, mas temos visitantes…

“Visitantes? …Não me lembro de ter amigos.”

Decidi deixar os anões passearem. Eles estarão vivendo aqui por um tempo e tenho certeza de que estão curiosos para ver como é. Também guardei as ferramentas que trouxe em uma tenda vazia, imaginando que a cobertura iria, no mínimo, oferecer alguma proteção contra o clima.

Deixando nossos novos residentes com Rigur, fiz o ancião me guiar até nossos hóspedes. Ele me levou para uma das maiores tendas, que havia sido convertida em um tipo de sala de reunião.

“Quem será? Irei descobrir em breve”, pensei enquanto entrava.

Depois de passar por baixo do batente, parei. Dentro havia um monte de goblins, do tipo normal. Vários deles estavam bem vestidos, cada um acompanhado por um punhado de criados. Alguns anciões e seus guardas, talvez? Ninguém estava armado. Não que me importasse com isso.

Antes que pudesse perguntar o que estava acontecendo, os goblins se prostraram no chão.

— É uma honra conhecê-lo, Ó grande mestre! — gritaram em uníssono. — Por favor, escute nossas maiores esperanças!

“Grande mestre? Acho que se referem a mim, mas isso é um grande exagero sobre minha pessoa.”

Contudo, acreditam nisso. Seus olhos não poderiam estar mais ansiosos ou resolutos. Não tinha como dizer o que queriam, mas imaginei que poderia escutá-los.

— Tudo bem. Vão em frente.

Oh, obrigado por sua generosidade! — Um dos anciões gritou — Todos nós aqui desejamos nos juntar à sua multidão de seguidores, senhor!

— Por favor, conceda-nos sua bondade magnânima! — Os outros disseram enquanto permaneciam no chão, seus olhos voltados para mim, antes de se curvarem.

Sendo honesto, não quero lidar com isso.

“Estamos apenas começando com o processo de reconstrução aqui, pessoal. Não tenho tempo a perder com vocês!”

Adoraria simplesmente expulsá-los. Mas estávamos com falta de mão de obra por aqui. E já podia imaginar as guerras territoriais contra esses caras mais cedo ou mais tarde. Talvez fosse melhor aceitá-los enquanto ainda podíamos.

“Se eles nos traírem, podemos matar todos eles.”

Não aceitarei traidores gentilmente. Ficar desatento apenas atrapalha quando se está liderando um bando de monstros. É necessário manter uma cabeça fria ao redor deles. Essa é parte da razão pela qual estava disposto a aceitar esses goblins — porque quero provar a mim mesmo que falava sério.

Mais uma vez, lembrei a mim mesmo: “Se esses caras se tornarem traidores, vou pessoalmente matar cada um deles.” 

É incrível como consigo pensar em matar pessoas como se estivesse me perguntando onde iria almoçar. Foi uma surpresa, mas — diabos — melhor do que hesitar em todas decisões que tomo. Ajuda bastante.

A propósito, se esses eram apenas os emissários, de quantos goblins estávamos falando no geral? Suspirei. Poderia ter um monte de nomes para pensar em breve.

Os guardas acompanhando os goblins anciões voltaram para suas respectivas aldeias para reportar as novidades. Então, o que eles tinham a dizer?

Para resumir, a história deles foi um pouco assim…

Tudo começou com as recentes rupturas na ordem ao redor da floresta. As outras vilas tinham, de fato, abandonado Rigurd durante o ataque dos lobos gigantes, em parte porque simplesmente não tinham recursos de combate restantes para ajudá-lo.

Todas as raças inteligentes dessa floresta — os orcs, homens-lagarto e os ogros — estavam começando a se impor e tentar reivindicar essa floresta. Houveram argumentos menores nesse sentido antes, mas havia também um tipo de acordo silencioso de que não haveria nenhum conflito armado. Com o único e verdadeiro supervisor da floresta fora de cena, contudo, havia mais do que algumas raças prontas para desabafar.

Os monstros, em geral, têm a tendência de encher-se de orgulho e se engajar em demonstrações regulares de poder. Agora, todas as aldeias da floresta estavam se preparando para chutar alguns traseiros. Era apenas uma questão de tempo antes que algo fizesse a batalha começar. E goblins, as crianças mais covardes do quarteirão, estavam condenadas a deixar que essas outras raças os destruíssem.

Isso, naturalmente, alarmou a maioria dos outros goblins anciões. No momento em que eles se envolvessem nessa guerra de território, tudo acabaria para eles. Então, eles realizaram uma conferência, conversaram sobre isso por vários dias, e foram todos muito estúpidos para apresentarem ideias decentes.

Não que eu esperasse mais deles…

Notícias sobre o iminente ataque dos lobos gigantes vieram no meio disso, mas a atenção deles estava concentrada em outro lugar. A aldeia de Rigurd foi deixada para morrer e esquecida. Suas conversas continuaram, sem milagres à vista.

Logo quando as reservas de alimentos das aldeias estavam começando a ficar baixas, eles ouviram sobre mais uma nova ameaça à floresta — rumores sobre bestas sombrias enormes, pilotadas por pessoas montadas em suas costas. Eles corriam pelas árvores, como se atravessassem planícies e venceram os mais poderosos monstros da floresta. Quem eram eles? O conceito fez os goblins tremerem com medo e surpresa.

Eles eram, aparentemente… ex-goblins.

As opiniões foram divididas sobre como lidar com isso. Alguns sugeriram viajar até eles imediatamente e implorar por proteção. Outros acharam o conto extraordinário demais para engolir, preocupados com a possibilidade de que fosse uma armadilha e recusando-se a acreditar que os ex-goblins não teriam motivos para enganá-los.

Armadilha ou não, no entanto, não havia garantia de que essa nova raça os aceitaria. Especialmente já que eles abandonaram a aldeia de Rigurd. Perdão parecia uma esperança fútil para muitos dos anciões. Até mesmo goblins eram capazes de sentir vergonha.

No fim, percebendo que eles tinham atingido o extremo de seu intelecto, a conferência terminou com uma total falta de conclusão concreta. Então, o lado que buscava nossa proteção decidiu viajar até aqui.

Agora tudo isso faz sentido. Ainda assim, muito egoísta da parte deles, não? Porém, estamos falando de goblins fracos, estúpidos e indefesos. Já era esperado. De qualquer forma, já concordei em aceitá-los.

— Qualquer um que queira vir, pode vir — Disse aos representantes goblins.

Isso foi suficiente para mandá-los de volta para casa por enquanto.

Foi aí que meus problemas começaram.

Enquanto observava a multidão cheia de goblins, pensei comigo mesmo: “Isso é… um pouco demais, não é?” 

Eram muitos para abrigar no espaço da aldeia. Por que isso tinha que ser meu problema, de qualquer forma?

Nos últimos dias, estávamos presos construindo machados, usando-os para derrubar árvores para madeira, e assim por diante. Nós nem tínhamos começado as casas ainda. Havia muito trabalho.

Kaijin estava cuidando das tarefas com madeira, enquanto os três irmãos trabalhavam em processar as peles de animais em roupas para os hobgoblins.Os olhares que eles estavam dando às fêmeas não eram nem um pouco agradáveis. Imaginei que era melhor colocá-los pra trabalhar antes de qualquer outra coisa.

Nós estávamos no meio disso quando os goblins apareceram. Quatro tribos, cerca de quinhentos deles no total. O resto ainda estavam nas aldeias com os anciões que optaram por ficar por lá.

Bem, hora de uma mudança. Não faria muita diferença, em termos de trabalho, assumindo que fizéssemos isso agora. Verifiquei meu mapa mental da área. De preferência, gostaria de algo com água nas proximidades e um pouco de terra limpa adequada para a agricultura. Enquanto andava por aí, percebi que o local mais ideal era… a área perto de onde eu surgi. Hmm.

Decidi perguntar a Rigurd sobre o estado das coisas lá.

— Era considerada uma zona proibida — relatou ele — Diferente da floresta, era um verdadeiro covil de monstros poderosos…

— Sem problemas, então. Quer dizer, eu morava lá.

— V-Você o quê?

— Tipo, acho que nasci lá, então… vai ficar tudo bem.

— ...Você constantemente me impressiona, senhor Rimuru. Estou espantado.

Coisa engraçada para ele dizer. O que era tão espantoso sobre nascer em uma caverna? Se ele estiver bem com isso, então tudo bem.

Eu, então, chamei Mildo, o mais jovem dos três irmãos, e lhe disse o máximo que pude sobre como a arquitetura funcionava no mundo de onde vinha. Inspeção e medição nesse mundo são bastante precisos, graças à magia. Isso, mais o conhecimento amador que eu trouxe à mesa, nos ajudou a decidir criar um projeto topográfico para a área local.

Os lobos não precisavam muito disso, mas para os goblins e anões, uma instalação de gerenciamento de resíduos seria uma necessidade. Pensei que seria legal se pudéssemos criar um sistema pseudo-séptico que pudesse armazenar resíduos e transformá-los em fertilizante. Nós precisaríamos manter as doenças infecciosas à distância também. Essa foi outra coisa que adicionei à lista de Mildo.

“Goblins ficam doentes?”, me perguntei. 

A resposta é sim — eles são suscetíveis a doenças como qualquer outra pessoa. Monstros bem fracos, se você me perguntasse. Apesar de que, dado o tipo de imundice em que eles viviam antes de eu aparecer, não é de se admirar…

Muitos deles morrem, mas compensam isso com uma abundância de bebês. Matemática simples. Apesar de não ser muito o caso com hobgoblins — eles davam à luz a menos crias por vez, o que era outra razão pela qual assumi que sua expectativa de vida fosse maior.

De qualquer forma, se perdêssemos muitos para doenças, não seríamos capazes de manter nossos números em dia. Não tenho conhecimento de medicina; qualquer coisa que uma poção não possa lidar está além de mim, e nós não temos nenhum curandeiro mágico.

Então, enquanto estávamos em um frenesi de construção, decidi que poderíamos ir até o fim com higiene. Mildo, por sua vez, tinha um conhecimento considerável sobre sistemas de resíduo como esse. Não devo ter sido o único forasteiro a falar sobre isso.

Esse mundo, por sua vez, tem algo chamado “engenharia espiritual”, um campo único de estudo que cobre todos os tipos de descobertas estranhas. O que não oferece, contudo, é um modo de fazer fertilizantes dos excrementos das pessoas. Mildo ficou surpreso ao ouvir a ideia de mim.

Independentemente disso, após pensar um pouco, eu o nomeei o chefe de operações de construção de nossa aldeia e deixei tudo para ele.

Outra livrada clássica de responsabilidade, se posso dizer.

Depois de fazer Rigurd designar algumas pessoas para seguir Mildo, os enviei para inspecionar nossa possível casa nova. Ranga se juntou a eles, apenas no caso. Não acho que os monstros sairiam da caverna em hordas, mas nunca se sabe. Ranga deveria ser capaz de lidar com o que aparecesse, então é melhor prevenir do que remediar.

Isso resolvia um problema, mas tinha algo maior em meu prato — nomeação. Só de pensar nisso fiquei deprimido. Tinha a sensação de que quando chegasse na metade dos cerca de quinhentos goblins, estaria apenas correndo pelo alfabeto. “Abcdef” seria um pouco difícil de pronunciar.

Ainda assim, tinha que começar. Levou cerca de quatro dias para passar por todos eles, com um rápido modo repouso no meio, e eu realmente precisava me dar reconhecimento — aguentei até o fim. Não foi tão exaustante quanto da última vez, mas não era um processo que queria repetir tão cedo.

Chamei os anciãos. Eles se ajoelharam em sua imponente forma hobgob. Rigurd estava lá, e seguindo seus passos estavam os outros três que acabara de nomear: Rugurd, Regurd e Rogurd.

Coloque todos os líderes juntos e sim! Você tem todas as cinco vogais!

Ranga sendo o a foi uma coincidência.

Então, talvez não tenha sido meu melhor, mas estava tudo bem! Eles nunca saberiam. Não esqueça o quanto de trabalho dediquei a isso.

Sempre fui bom em usar essa desculpa.

Isso deixou um ancião sem nome, e ela era uma mulher. Algo soando feminino era melhor, pensei, então escolhi Lilina. Uma vantagem de todos serem hobgobs era que podia separá-los por gênero. Percepção de Magia podia me ajudar a fazer isso com os gobs comuns, mas, a olho nu, era um desafio.

Poderia transformar “Lilina” em outra série de nomes, talvez? Pensei sobre isso, mas decidi não me preocupar muito com o futuro. Sem tempo para isso.

Então aqui estávamos. Algumas centenas de hobgobs. Talvez tenha chegado a hora de construirmos um sistema de classes para eles? Com esses números, não podia dizer a eles “vamos todos ser amigos e nos dar bem” e esperar que eles seguissem isso. Precisava haver uma cadeia clara de comando, especialmente considerando o quanto monstros valorizavam a força.

— Tudo bem — Declarei — Estarei dando classificações a todos vocês!

Rigurd recebeu uma boa promoção para rei goblin; os outros quatro anciões se tornaram lordes goblin. O resto dos goblins na aldeia imediatamente se curvaram para eles, o que era uma visão arrepiante de se ver.

— S-sim, nosso lorde! — Os anciões papaguearam. Os aplausos seguintes foram ensurdecedores. Acabei de escrever, do nada, um novo capítulo na história dos goblins.

Kaijin teve a gentileza de trazer todas as ferramentas de carpintaria que precisava. Garm e Dold estavam se mostrando capazes de comandar a frente de produção das roupas. Estávamos construindo uma torre em miniatura de madeira em um espaço vazio da aldeia. As preparações estavam indo bem.

No momento em que evolui todos os goblins e tive certeza de que não faltava ninguém, Mildo voltou à aldeia. O trabalho de inspeção foi feito sem problemas. Todos os sistemas funcionavam. Olhei para os diferentes quarteirões na aldeia que ele planejou. Era realmente mais uma cidade do que uma simples aldeia. Um novo lar para todos nós.

Depois de ter certeza de que tudo estava no lugar, nós partimos. Era nosso primeiro passo em direção a uma nova terra. Em direção a uma nova nação para nós!

O nome do homem é Fuze, e ele é o mestre de guilda da Guilda Livre na filial localizada no reino de Blumund.

Sua competência em seu posto é inquestionável e, mesmo antes disso, sua destreza como um aventureiro o levou à classificação A-.

E, como prometeu ao Barão de Veryard, ele rapidamente partiu para conduzir uma investigação por conta própria. O que seus diversos contatos de inteligência lhe disseram, no entanto, era que o Império atualmente não estava fazendo nenhum movimento. Poderia ficar assim, claro — esse era o palpite de Fuze —, mas não havia espaço para erros.

Ele manteve seu pessoal observando o Império. Não era seu ramo usual de trabalho, mas, pelo menos por enquanto, ele estava disposto a abrir uma exceção.

Um dia, recebeu a notícia de que outra equipe de investigação havia retornado à cidade. Ele foi para seus aposentos e sentou-se bem devagar e deliberadamente no sofá da sala de recepção que sempre usava para reuniões confidenciais. Diante dele sentavam-se três pessoas — dois homens e uma mulher, todos aventureiros de classificação B.

Esse grupo, ele já conhecia bem. Tinha Gido, um ladino que se sobressaia em reconhecimento. Kabal, entretanto, era um mestre da defesa. Sendo de uma classe combatente, ele voluntariamente servia como uma parede para o resto de seu grupo, e fazia bem o seu trabalho. Ele costumava fazer muitas piadas, mas não era desleixado. Finalmente, havia Elen, uma feiticeira cujo conjunto de habilidades era voltado aos tipos mais exclusivos de magia. Ela tinha uma ampla variedade de feitiços à sua disposição, mas sua verdadeira habilidade estava no aprimoramento sobrenatural de movimento. Também era importante notar que seu planejamento cuidadoso sempre fez maravilhas para melhorar a chance de sobrevivência de seu grupo.

Esse era o grupo que Fuze mandou para examinar a caverna em que Veldora fora selado. Sua primeira reação ao vê-los foi uma ligeira surpresa por estarem a salvo. Aquela caverna era mais adequada para pessoas com classificação B+ ou maior, e se você levasse seu mestre em consideração, rastrear um ou dois viajantes de classificação A- era geralmente sua aposta mais segura. Mesmo se o próprio Fuze se aventurasse lá, não que suas responsabilidades com a guilda sequer o deixassem, é provável que ainda seria muito trabalhoso se ele o fizesse sozinho.

Independentemente de seus ranks, essas eram as pessoas que Fuze enviou para descobrir o que estava acontecendo com Veldora no momento. Ele tomou a decisão por causa da habilidade inusitada deles de permanecerem vivos. A habilidade de evitar uma batalha ao coletar informação, neste caso, valia muito mais para ele do que contratar um classificação B+.

Se algo acontecesse a eles, Fuze teria que aguentar críticas severas como o mestre da guilda.

Mandar pessoas em áreas nas quais elas não são qualificadas por classificação é uma clara violação dos regulamentos da guilda. Um chefe de filial ousando tentar isso criaria controvérsia se o incidente se tornasse de conhecimento público.

Mas esse era o grupo que Fuze queria, e ninguém estava mais feliz de vê-los voltar do que ele.

— Vamos ouvir o relatório — disse, sempre tomando cuidado para não demonstrar suas emoções. Não importa o quão feliz estava por dentro, fez questão de não lhes oferecer nenhuma palavra tranquilizadora. O trio estava acostumado a isso.

— Foi horrível, cara! — Kabal desabafou.

— Eu preciso tanto tomar um banho… — concordou Elen.

— Sim, a parte mais difícil foi tentar impedir que esse par degolasse um ao outro, eu diria… — Gido comentou.

Seus interrogatórios quase sempre começavam assim. Seus olhos, contudo, estavam sérios. “É provável que tenha sido realmente horrível”, pensou Fuze.

O relatório começou com uma descrição dos monstros que eles encontraram na caverna. Depois de passar pela serpente da tempestade que servia de guardiã da área, passaram pela porta selada. Tinha ficado claro desde cedo que Veldora havia desaparecido, mas eles passaram mais uma semana explorando a caverna, caso necessário. O resultado final: definitivamente nenhum guardião, ou líder, lá dentro.

Mas uma coisa chamou mais a atenção deles.

— Aqui está o X da questão — disse Kabal — Uma vez que terminamos nossa examinação e saímos pela porta… a serpente da tempestade se foi.

— Pois é! — exclamou Elen — Eu não consegui ativar Escapar do lado de dentro, então passei aquele tempo todo tentando descobrir como escaparíamos dela… Me senti uma idiota!

— Sim — disse Gido — Trouxe uma armadilha de ilusão e geração de calor, e nem as usei. Ao menos nos poupou um pouco de tempo. Passar por ela na entrada foi uma coisa, mas ao sair teria sido outra.

Qual era o significado disso? Essa serpente da tempestade tinha uma classificação provisória de A–. Era absolutamente a presença mais forte na caverna. Nem mesmo Fuze gostava muito de suas chances contra ela. Era o motivo pelo qual ele tinha se preocupado com as chances do trio de uma viagem bem-sucedida.

Algo definitivamente aconteceu lá. Isso Fuze podia dizer. E precisava saber o quê.

— Muito bem, pessoal. Vou deixar vocês descansarem por cerca de três dias, mas depois disso, preciso que voltem à floresta. Não dentro da caverna. Dessa vez, examinarão a área ao redor. Quero que examinem cada pedaço daquela floresta, pedra por pedra, entenderam? Sejam meticulosos. Isso é tudo.

— “Isso é tudo”, ele diz!

— Três dias? É isso?! Nos dê uma semana, pelo menos!

— Sim, sim… Vocês sabem que ele não vai nos ouvir, pessoal.

Fuze não deixou os protestos o incomodarem. Ele tinha novas informações para ponderar. 

“O que poderia estar acontecendo naquela floresta…?”

Ele se perdeu em pensamentos por um momento… então abriu os olhos, apenas para encontrar três pares de olhos rancorosos mirados nele. Esses caras… Ele suspirou, então gritou com eles como sempre fazia:

— Por que vocês ainda estão aqui? Saiam! Agora! — O trio se retirou correndo.

Três dias depois, Kabal, Elen e Gido estavam se preparando para sua viagem à floresta.

— O descanso não durou quase nada… — Elen gemeu.

— Tô contigo, guria — respondeu Gido.

— Vocês poderiam parar de reclamar por um instante, pessoal? — Kabal, o mais ou menos líder, advertiu com uma falta de convicção que indicava sua concordância — Vocês estão apenas me deprimindo agora.

Eles tinham algumas rotas na floresta para escolher. Os monstros estavam ficando mais ativos recentemente, ao ponto em que nem comerciantes estavam dispostos a enviar vagões para a floresta. Contratar guarda-costas estava fora de questão — eles perderiam dinheiro se o fizessem. Se eles quisessem visitar a floresta, teriam de ir a pé, por enquanto. Eles teriam que andar, pelo menos um pouco, já que o caminho para a “Caverna Selada” era muito traiçoeiro para navegar em uma carroça.

Como resultado, a preparação seria a chave. Comprar várias semanas de comida preservada era um desafio em si, mas sem isso, tinham todas as chances de morrer de fome antes mesmo de chegarem ao seu destino. A magia de Elen, pelo menos, lhes garante água potável sempre que necessário.

Quando eles estavam, em grande parte, prontos para partir, uma pessoa se aproximou deles, falando em uma voz que estava em algum lugar entre jovem e velha, masculina e feminina.

— Com licença. Se vocês estão indo para a floresta, poderia eu me juntar a vocês ao longo do caminho?

A máscara que a figura usava prevenia qualquer palpite no rosto por trás. Era uma máscara bonita e ornamentada, mas não tinha expressão alguma. Havia algo vagamente inquietante em todo o pacote, mas…

— Por mim tudo bem.

Wh-whoa! Eu sou o líder aqui, Elen! Qual é o seu problema?!

Ahh, você conhece ela. Uma vez que decide algo, não há como mudar sua mente.

— Obrigado.

Aquelas palavras de gratidão foram tudo que a figura mascarada disse antes de silenciosamente seguir atrás deles. Portanto, Kabal e seu grupo se encontraram com outro companheiro conforme se aventuravam na floresta.

O som de árvores sendo cortadas e merteladas ecoava por toda a floresta. Lentamente, a nova cidade e suas casas estavam começando a tomar forma. Em nossas mentes, pelo menos. Ainda estávamos ocupados arrumando o sistema de água e séptico, então, por enquanto, ainda era apenas uma clareira.

Esse sistema tomou a direção de seu fluxo do rio ao qual éramos adjacentes. Nós planejamos ter um prédio de processamento de água, embora ainda estivesse em construção. Esse seria o lugar onde a água do rio era purificada e distribuída para as casas das pessoas.

No lado séptico das coisas, construímos uma grande câmara de madeira que planejamos enterrar no chão. As superfícies internas da madeira seriam tratadas para melhorar sua resistência ao apodrecimento, e então, reforçadas com cimento. Era nisso que estávamos trabalhando agora. Tivemos sorte e encontramos um material do tipo cal em uma colina próxima.

Enquanto isso, outro prédio fora da cidade seria nossa instalação de processamento de resíduos, onde planejamos fazer o fertilizante que queríamos.

Além disso, eu estava fazendo a equipe construir uma grande construção temporária, uma espécie de ginásio onde eles poderiam dormir durante a construção. Era um pouco desleixado já que nós não tínhamos a intenção de torná-la permanente, mas faria o trabalho.

Delinear as diversas divisões da vizinhança estava indo bem. As casas da classe alta, incluindo a que eu ficaria, seriam construídas próximas à boca da caverna. Nós teríamos uma linha de casas destinadas aos anciãos, com as outras residências espalhadas ao redor delas.

Nós estávamos fazendo isso antes de qualquer coisa, para que fosse fácil traçar o plano da cidade sem deixar as coisas confusas e misturadas. Basicamente, seria construída no formato de uma cruz, com uma ampla rua principal, facilitando para os residentes trabalharem como um grupo, caso necessário. Teríamos que ter cuidado para não criarmos longas filas de estradas idênticas, o que facilitaria se perder, mas não era uma preocupação muito grande.

A única desvantagem real desta configuração é que poderia ser mais fácil para inimigos se movimentarem em caso de invasão — mas se eles realmente chegassem ao centro da cidade, isso significaria que uma dúzia de outras coisas teriam falhado até então.

Não adianta insistir nesse cenário. Se fôssemos destruídos, poderíamos sempre reconstruir.

Foi uma ideia absolutamente boa nomear todos os goblins e transformá-los em hobgoblins, no entanto. Fez maravilhas aos seus níveis de inteligência, e eram todos estudantes incrivelmente rápidos. Sua força também melhorou. Os anões descreviam goblins comuns como monstros de rank F, enquanto hobgobs pairavam entre C e D, em sua maioria. Pareciam mais com pessoas do que antes, para ter certeza. Dependendo de suas armas e armadura, sem mencionar suas classes e artes mágicas, havia bastante espaço para crescimento.

Nessa nota, eu estava vendo uma variação substancial nos tamanhos e forças dos hobgobs. Os quatro lordes goblins que eu acabara de nomear, por exemplo, pareciam mais talentosos na vida do que os comuns. Rigurd, o Rei Goblin, enquanto isso…

— Oh, é aqui que o senhor estava, Senhor Rimuru? Eu estava procurando pelo senhor!

Quem era esse cara? Ele era praticamente uma aberração muscular da natureza neste momento, enorme em ossatura e quase do tamanho de um ogro — Diabos, maior, até! — como dizia Kaijin. Isso deve ter sido o resultado de lhe dar uma classe além de um nome, eu supus.

Eu juro, a biologia desses monstros eram um mistério total para mim. Eu teria que tentar atribuir mais alguns títulos para ver o que acontecia.

— O que foi?

— Eu vim informá-lo, senhor. Nós capturamos alguns indivíduos suspeitos.

— Suspeitos? Um bando de monstros, ou...?

— Não, senhor, humanos. Nós não os confrontamos, como você ordenou.

— Humanos? Por que aqui?

“Uau! Demais! Melhor entrar nas boas graças deles, rápido!” Se fossem aqueles três idiotas do portão dos anões, eu ficaria feliz em cortá-los e dá-los de alimento a nossas equipes de trabalho, mas…

— Eles estavam engajados em uma batalha com um grupo de formigas gigantes, parece. Rigur e sua equipe de segurança os salvaram e os trouxeram até aqui, mas… aparentemente, ele suspeita que eles estejam conduzindo uma investigação da área local. Eu pensei em vir até o senhor por conselho…

Hmm. Algum país está checando este lugar? Eu já sabia pelos anões que a Floresta de Jura era considerada um território neutro, não reclamada por nenhuma nação. Parecia plausível que essa fosse uma força expedicionária, tentando encontrar algum território novo para conquistar. Isso poderia ser um problema, mas não havia sentido em se preocupar com isso sem ouvi-los. Eu poderia pensar sobre o que fazer depois.

— Tudo bem. Leve-me até eles! — disse enquanto pulava no ombro de Rigurd.

Ranga, estando em patrulha, tornou o transporte ao redor de nossa cidade uma chatice. Eu podia andar com facilidade, mas quando estava sozinho, minha falta de altura era um problema. Eu sempre ressenti a sensação de estar sendo menosprezado sempre que conhecia alguém. Ter as pessoas ajoelhadas para me cumprimentar atrapalhava o trabalho. Eu tinha uma reputação a manter, além disso, e eu não queria estar debaixo das pessoas o tempo todo. Talvez eu me preocupasse demais, mas eu sempre pensei que era melhor evitar problemas antes deles começarem.

É por isso que eu costumava viajar bastante em ombros esses dias.

Então, sobre os ombros de Rigurd, eu fiz meu caminho até aqueles aventureiros. “Quem são eles?” Eu me perguntei antes de uma conversa entrar em meus (figurativos) ouvidos.

— Wh-Whoa! Ei! Eu queria aquilo!

— Isso é cruel, não é? Eu mesmo criei essa carne!

— Senhor, eu sinto muito em informar que não estou desistindo dessa comida!

— Munch, munch.

Certamente parecia empolgante.

— …

Rigurd respondeu à minha pergunta silenciosa: 

— M-minhas desculpas, Sr. Rimuru. Parece que as formigas fugiram com a maior parte da bagagem deles… e mesmo antes disso, eles não tiveram uma refeição decente, então eu trouxe um pouco para eles.

Hmm. Isso era gentil do rei goblins, com certeza. 

— Oh, isso não é problema —  Respondi — Na verdade, bom trabalho em notar. Ajudar alguém em necessidade é uma coisa boa, sabe?

Eu senti que era apropriado o suficiente elogiá-lo. Ele estava gradualmente se tornando mais e mais um líder, não mais me perguntando sobre cada pequena coisa que surgia. Uma coisa boa, pensei.

— Haha! Farei meu melhor para melhorar o meu governo e ser um fardo menor para o senhor, Sr. Rimuru!

“Mas eu gostaria que ele não fosse tão formal comigo o tempo todo”, pensei enquanto nos aproximamos de uma tenda simples. O hobgob que a guardava abriu a aba para nós.

No momento que entramos, senti todos os olhos em mim. Quatro aventureiros sentaram-se no chão, suas bocas cheias de carne e legumes. Seus olhos estavam arregalados enquanto eles olhavam para mim. Foi uma visão hilária, embora eles provavelmente não percebessem isso.

“Hmm? Eu já os vi em algum lugar antes? ...Oh, certo”. Eles eram os aventureiros por quem passei na caverna, apesar de um deles ser novo para mim. Eu me perguntava como qualquer tipo de comida passava pela máscara que essa figura tinha.

— Munch, munch…

Eles ficaram sentados por um momento, mastigando. Eles com certeza estavam levando o tempo que quisessem.

Carne fresca assada… mmm. Se apenas eu tivesse um senso de gosto. Argh… Alguém tem papilas gustativas extra…?

Opa, me distraí um pouco aqui. Voltei meu foco para o assunto em questão.

Rigurd andou até um assento alto de um lado e me colocou sobre ele. 

— Meus convidados — Ele gritou quando se sentou ao meu lado — Espero que estejam confortáveis aqui. Permitam-me apresentar-lhes para nosso mestre, Senhor Rimuru!

Eu podia ouvi-los engolindo sua comida. Então, em coro: — Huh? Um slime?!

— Munch, munch.

Todos eles reagiram em choque.

Bem, não estou certo sobre o último, na verdade. Que seja.

— É um prazer conhecê-los. Eu sou Rimuru, um slime. Não um slime ruim, sabe!

Eu ouvi um som estridente debaixo da máscara. Com toda a comida que o cara estava mastigando, os resultados provavelmente não foram bonitos.

Cretino rude.

Deve ter sido uma surpresa ouvir um slime falar. Os outros três pareciam igualmente surpresos, mas, pelo menos, não tinham suas bocas cheias na hora.

Então. Quem são esses visitantes? Caras bons, espero.

— Bem, nos perdoe, eu acho. Só não esperava que seríamos salvos por uma tribo de monstros.

— Oh! Nós somos aventureiros humanos, a propósito, e essa carne é muito boa! Temos estado correndo nos últimos três dias, então tem sido difícil comer qualquer coisa… Muito obrigado!

— Sim, obrigado. Eu não esperava que alguns hobgoblins estivessem construindo uma aldeia por aqui.

— Urrp… Koff! Glug glug.

— Bem — disse — Por favor, sintam-se livres para desfrutarem de sua refeição, todos vocês. Podemos conversar depois.

Eu meio que queria que os hobgobs tivessem me chamado depois que os humanos terminassem de se encher, mas eles ainda estavam deficientes em cortesia aqui e ali. Tenho certeza de que eles estavam surpresos, mas algo me dizia que eu precisaria realizar um workshop sobre boas maneiras em breve.

Então eu saí da tenda, não muito interessado em vê-los comer no chão, me perguntando sobre minha sorte ao obter esses convidados humanos (ou prisioneiros, dependendo). Na saída, eu disse ao guarda para levá-los ao meu portão pessoal perto da caverna, quando terminassem de comer.

— Não se preocupe com isso — assegurei Rigurd, de aparência desanimada, enquanto caminhávamos — Podemos trabalhar nas boas maneiras de vocês depois. — Afinal, eles estavam crescendo bastante. Eu não esperava que todo  esforço diplomático fosse perfeito para esses hobgobs.

Assentando-me na minha tenda, comecei a esperar pacientemente. Rigurd pediu que uma de suas assistentes preparasse um chá para nós. Parecia mais saborosa do que a última bebida que eu havia experimentado, mas só podia imaginar o sabor. Legal como a evolução afetou áreas como essa.

Lentamente, nós estávamos nos estabelecendo em uma sociedade verdadeiramente culta. Algo sobre aquele chá me convenceu.

Depois de mais alguns momentos, os quatro aventureiros apareceram, imediatamente dizendo um acalorado: — Desculpe-nos por isso! — quando eles entraram. A tenda estava um pouco apertada com todos dentro.

Uma vez que o goblin guia deles foi embora, outro trouxe um pouco de chá fresco para o grupo. Vê? Serviço real, do nada. Eles devem ter aprendido com os anões — eu sabia que eles estavam passando a noite bebendo com eles, aprendendo sobre sua sociedade e cultura.

— Ah, é bom ver vocês de novo. Meu nome é Rimuru e eu sou o líder desse pequeno grupo. O que traz vocês aqui?

Imaginei que era uma pergunta válida. Eles assentiram um para o outro — devem ter esperado isso — e começaram a falar.

— Estou feliz em conhecê-lo, Rimuru. Meu nome é Kabal, o líder deste bando… mais ou menos. Essa é Elen, e aquele ali é o Gido. Nós somos aventureiros, todos de rank B, você sabe o que isso significa, imagino?

— Olá! Elen aqui!

— Gido, senhor. Um prazer.

Então eles eram um grupo. Ter rank B os coloca nos altos escalões, com certeza, mas eles teriam enfrentado um tempo difícil na caverna, não? Talvez eles fossem mestres em se esconder de monstros ou algo assim.

E quanto ao outro? Tenho certeza de que havia apenas três deles na caverna.

— Essa é Shizu, uma adição temporária ao nosso time para essa missão.

— Shizu. Encantada.

Era difícil dizer seu sexo ou idade através de sua voz. Mas depois de aperfeiçoar meus talentos tentando diferenciar os goblins, pude dizer na mesma hora — ela era uma mulher. E, se meu palpite estivesse certo, talvez até japonesa? Essa foi a impressão que tive.

O jeito que ela carregava sua xícara de chá e o jeito que ela se ajoelhava, com a parte superior dos pés contra o chão.

Essa posição, eu pensei, tinha que ser rara neste reino, e seus três companheiros certamente não se incomodaram — os homens apenas se sentaram de pernas cruzadas no tapete de pele de lobo no chão, e Elen escolheu manter suas pernas de lado em vez disso.

Ah, bem. Não seria estranho ter uma cultura em algum lugar deste planeta que se assemelhasse à japonesa. Eu seguiria essa linha de raciocínio depois.

Contudo, me ocorreu — era eu, ou esses aventureiros estavam sendo cavaleiros demais com sua própria segurança neste momento? Até agora, eles parecem estar apreciando imensamente sua estada — comendo, bebendo e rindo um com o outro. Este era um covil de monstros em que entraram. Eles sabiam disso, certo?

Talvez eles tivessem um parafuso solto, não sei.

...Opa. Me distrai. Hora de continuar a conversa.

— Sinto o mesmo, obrigado. Então…

Eles foram excessivamente diretos com sua história, aparentemente nem um pouco desconfiados de meus motivos. O mestre da guilda havia mandado que examinassem a área ao redor da caverna e verificar se algo suspeito havia acontecido… mas essa missão estava se provando um obstáculo.

— Sim, é isso! — Kabal continuou. — Nós estamos procurando por coisas ‘suspeitas’, mas o que diabos ‘suspeito’ deveria significar? Não temos ideia!

— Totalmente! — Elen entrou na conversa — Eu gostaria que ele tivesse dito, tipo ‘Procurem por isso ou aquilo ou aquela coisa’ ao invés de deixar tão vago!

— Nós podemos ser bons patrulheiros e tudo mais, mas não podemos fazer tudo, sabe? — acrescentou Gido.

E assim eles falaram mal de seu mestre de guilda sem nenhuma preocupação no mundo. Eu quase senti pena do cara.

Ao longo do caminho, esse grupo esbarrou em um grande pedregulho de aparência suspeita com um buraco.

É isso! Eles devem ter pensado, porque sacaram suas espadas e perfuraram um pouco…só para acordar um ninho de formigas gigantes inteiro. Irmão. Eu não sei o que dizer.

Era um milagre eles estarem vivos — eles passaram os próximos três dias constantemente fugindo, perdendo todos os seus pertences no caminho, antes de chegarem aqui. Eu tinha que reconhecê-los por isso, sério.

— Bem, — refleti, — eu não diria que há muita coisa “suspeita” acontecendo por aqui, não. A caverna, principalmente, eu acho?

Elen balançou a cabeça. 

— Mas nós não encontramos nada lá, não. Você conhece a história por trás daquela caverna? Supostamente deveria ter este grande e maligno dragão selado lá dentro, mas nós passamos duas semanas correndo de cima a baixo pela caverna e nada! Duas semanas sem um banho e não ganhamos praticamente nada para isso…

— Whoa, qual é! — Um Kabal enervado latiu — Não podemos sair por aí revelando isso para eles!

— Por que você se importa? — Gido respondeu. — Ela que revelou! Não importa para mim! —  Os dois homens entraram completamente em pânico com a revelação inconsciente de Elen.

Eu já sabia, claro, graças ao meu último encontro com eles. E essas pessoas gostavam de um mergulho de vez em quando, huh? Talvez eu precisasse construir uma casa de banho por aqui.

Continuando.

— Então, pelo que estavam procurando naquela caverna, exatamente? —  Afinal de contas, não poderia ter sido um tesouro.

Kabal balançou a cabeça sombriamente em resposta. 

— Bem, se ela falou tanto, não adianta esconder. Como ela disse, há rumores de que o dragão lá dentro parou de responder…

Hmm. Não que eu pudesse saber, mas o desaparecimento de Veldora deve ter colocado os humanos em um estado de confusão. Esse ato de desaparecimento, apesar de ter sido seguramente selado, foi uma grande notícia — acho que esse era um dragão insanamente poderoso, afinal, embora para mim ele parecesse um cara legal que gostava de conversar às vezes.

Deve ter sido importante, no entanto, se estavam enviando grupos de busca. Estar construindo essa cidade perto da boca da caverna é um erro?

— Também trouxemos uma Pedra de Reação, pois eles disseram que a caverna estava praticamente explodindo com mágiculas… mas não era nada perto do que achávamos que seria. Quer dizer, a concentração era um pouco mais densa do que em uma caverna comum, mas nada fora do normal. E isso é bem incomum, então pelo menos temos isso para relatar quando voltar para casa, mas…

— Ainda está cheia de monstros fortes, então eu realmente não quero ter que voltar lá se tiver escolha — disse Elen — Nenhum tesouro também, nem minério mágico. Todo aquele extermínio de monstros que você precisa fazer e não há nenhum retorno por isso!

Opa. Nenhum minério, huh? Bem, e se eu te dissesse que costumava haver toneladas deles… e eu engoli tudo? E se eu te dissesse que a magia diminuiu lá porque eu engoli Veldora, o cara gerando tudo isso? Isso é basicamente minha culpa, não? Oh, bem. O que eles não sabiam não poderia machucá-los.

Nós continuamos falando por um tempo. Eles falaram demais de qualquer maneira, como Kabal colocou, então era melhor ir até o fim. Esses caras eram um bando mais amigável do que lhes daria crédito a princípio.

E se a caverna não fosse mais um local de interesse, talvez não fôssemos o centro das atenções. Eu estava considerando mover a cidade se o pior acontecesse, mas agora eu duvidava que fosse necessário. Nenhum país tinha direito legal a essa terra, então não era como se alguém pudesse nos forçar a sair.

Apenas para me certificar, eu decidi perguntar se a guilda teria problemas conosco construindo uma cidade aqui.

— Não… deve ter nenhum problema, certo? — disse Kabal.

— Sim — concordou Elen. — Não é problema da guilda em primeiro lugar. E o governo local, no entanto?

— Ooh, isso não cabe a mim dizer — Era a opinião de Gido.

Claro, a guilda não saberia o que suas nações anfitriãs estavam pensando. Além disso, se alguma delas agissem, elas teriam que provar sua reivindicação para as outras nações próximas. Não valeria a pena.

Então, enquanto pensava sobre isso, percebi que algo estava acontecendo com Shizu, que estava lá sentada, ouvindo o tempo todo. Repentinamente, ela caiu no chão, inconsciente. Nós imediatamente fomos até ela, tentando segurá-la, quando... 

— Nhh… Nraaaaahhhhhh!!

As coisas progrediram rapidamente depois disso.

Depois que o gemido estendido de Shizu terminou, a tenda foi visitada pelo silêncio absoluto.

Rachaduras agora apareciam sobre sua máscara, a força mística flutuando por baixo dela. Todos nós podíamos dizer que algo ruim estava acontecendo.

— Magia de invocação?! — Elen gritou, surpresa.

— Uou, pra valer? De onde diabos aquilo veio? Qual é o rank?

— ...Umm, a julgar pelo tamanho do círculo mágico, eu chutaria B+ ou maior.

— Bem, não podemos apenas sentar aqui, chefe. Temos que parar isso!

Então eles eram aventureiros experientes, afinal, quando precisavam ser. Algumas palavras foram trocadas e imediatamente entraram em ação.

— Grande Terra, coloque teus laços sobre ela! Mão Lamacenta!

— Urrrrrraaahhh! Nocaute!!

Primeiro, Elen a amarrou. Então Kabal deu um golpe de corpo inteiro. Gido era o reserva, pronto para agir no momento que aparecesse um problema. Hmm. Para ranks B, seu trabalho em equipe era de primeira linha. Nenhum movimento desperdiçado.

Mas tudo que Shizu teve que fazer foi erguer seu dedo indicador um pouco, e isso foi o suficiente para provocar uma pequena explosão ao seu redor. Tanto para minha tenda — com que eu não me importava muito, mas e os três? Eles estavam feridos? Teve uma onda de choque, mas eu estava ileso.

Kabal, que havia acertado um Nocaute em Shizu depois de Elen amarrá-la, infelizmente recebeu a maior parte da explosão com seu corpo. Isso o enviou voando. Gido estava bem, no entanto, e ele havia sentido o perigo cedo o bastante para empurrar Elen para a segurança também.

— Você está bem?

— Estamos bem, sim!

— Hm, estou toda dolorida! — protestou Elen — É melhor eles nos darem um subsídio de risco por isso!

Kabal, por sua vez, já estava de pé: 

— Aiii… Gente, vocês podem se preocupar com seu líder, pelo menos um pouco? — Ele deve ter sido criado de algum material resistente.

— Eu sabia que Shizu era uma usuária de magia, mas invocação também…?

— O que ela invocou, de qualquer forma?

— Não, não — cortou Gido — Isso não é nem a metade. Até onde eu sei, você não pode lançar magia sem um cântico durante uma invocação— 

Antes que pudesse terminar, ele parou, olhando para Shizu como se não pudesse acreditar em seus olhos. Ele acabara de ter uma ideia.

— Espera… Sem chance… A Conquistadora das Chamas?

Shizu ainda estava lançando um feitiço. Seu corpo inteiro brilhava em vermelho, pairando no ar um pouco. Sua máscara permaneceu proeminente em seu rosto enquanto seus longos cabelos negros saíam de seu manto. ”O que ela está tentando fazer? Ela me pareceu estranha por um instante antes de tudo isso acontecer…”

— Rigurd, tire todo mundo da cidade! Não deixe ninguém se aproximar daqui! — gritei.

— Mas…

— Isso é uma ordem! Assim que todos evacuarem, mande Ranga para cá!

— Sim, senhor Rimuru!

O rei dos goblins disparou.

Eu podia dizer que nem ele nem sua raça poderiam fazer muito contra isso. Seria um desperdício de inúmeras vidas. E eu não queria Ranga como um companheiro de luta. Eu o chamei simplesmente porque havia considerado a possibilidade de tudo isso ser um ato da parte dos aventureiros para desviar nossa atenção. Suas bocas estranhamente soltas faziam muito mais sentido para mim se eles nunca tivessem tido a intenção de nos deixar viver desde o começo. Isso ou eles realmente podiam ser estúpidos, mas…

Se isso fosse um ato, eles tentariam me apunhalar pelas costas enquanto eu lutava com Shizu. Era para isso que Ranga serviria. Talvez eu estivesse pensando demais, mas você nunca pode ser cuidadoso em excesso.

— Yo, Gido! O que é essa coisa de Conquistadora das Chamas?

— Essa não era uma heroína ou algo assim? — Elen respondeu primeiro. — Eu acho que ela estava ativa há cerca de cinquenta anos atrás?

Famosa, então? Eu pensei para mim mesmo. Então, a máscara de Shizu caiu de seu rosto.

Chamas dispararam para cima.

No céu, três salamandras de fogo apareceram. Era um jeito infernal de Shizu revelar seu rosto para nós. Seu cabelo preto atiçou para fora com a onda de choque, brilhando contra o inferno. Ela tinha uma beleza fugaz e transitória — mas seus olhos emitiam um brilho perverso, e as bordas de seus lábios estavam torcidas para cima no que parecia ser uma expressão de alegria total pela carnificina que ela virá.

Algo sobre isso me pareceu completamente antinatural, de uma forma que eu não conseguia descrever muito bem.

Então…

[Iniciando Habilidade Única “Divergente]

A fala do mundo ecoou ao nosso redor. Enquanto isso, a linda jovem se transformou em um gigante de puro fogo.

— Sem dúvidas — Gido gritou — Aquele é a Conquistadora das Chamas, mestre de Ifrit, o titã… O elementalista mais forte do mundo!

Ifrit, o titã de fogo. O senhor do fogo, capaz de queimar qualquer coisa em seu caminho. Um nível acima de qualquer realeza, mortal ou divino.

— Gahh! Ifrit? Esse espírito não é, tipo, rank A e coisa do tipo?! — Kabal gritou.

— Oof… Essa é a minha primeira vez o vendo, — Elen disse. — Mas… como sequer podemos derrotar aquilo?!

— É, não podemos, — respondeu Gido. — Vamos morrer aqui… Certamente foi uma vida curta, eu acho.

Com suas três salamandras de fogo ao seu lado, a Conquistadora das Chamas examinou seu domínio. Não é de se admirar que os três estivessem em pânico. Até mesmo uma única salamandra ostentava força B+. Mas… Qual era o problema com Shizu? Para mim, não parecia que ela estava controlando isso tudo — era mais como se Ifrit estivesse controlando Shizu.

Houve uma onda de choque quando Shizu — ou Ifrit — desencadeou uma torrente de força mágica.

...Isso foi estranho. Não era direcionado a ninguém, não era para matar — apenas um pequeno show de violência, apesar de não ter nada de pequeno nisso. Não parecia ser o trabalho de uma mente livre; o ataque parecia mais como se tivesse sido pré-programado por alguém. Agora, não tinha do que duvidar. Essa não era a vontade de Shizu trabalhando. Ifrit deveria ser para ela guiar, mas agora ele estava fora de controle.

Se aquela teoria estava certa ou não, não importava agora. O problema era a força por trás daqueles ataques. Era mais do que letal. Ondas de choque vermelhas se espalhavam pela paisagem, quentes o suficiente para queimar todos os prédios que tínhamos em construção.

Droga! Nós acabamos de começar também!

Os três aventureiros tentaram usar uma barreira mágica para bloquear o ataque, eu suponho, mas não durou uma única onda de choque. Eles não estavam mortos, mas também não estavam indo muito bem — conscientes, mas provavelmente imóveis agora.

— Pessoal, não se movam! — Eu gritei para eles — Vocês vão acabar virando alvos!

Eles reagiram agrupando-se, lançando tanto a Barreira Mágica quanto o Escudo de Aura. Acho que não é um ato. Eles estavam seriamente se defendendo. Tanto esforço para a teoria “vamos matar todos os monstros”.

Falando de força, contudo. O poder mágico que Ifrit estava liberando — sem tempo de lançamento — estava soprando um vento escaldante a mais de trinta metros em todas as direções ao nosso redor. Se eu não lutasse com esses caras — Ifrit e aquelas três salamandras de fogo — seríamos todos derrubados. Que saco.

Mas era estranho.

Mesmo nessa situação, eu não estava tremendo de medo nem nada. Talvez fosse porque eu era um monstro agora. Quer dizer, Veldora e aquela cobra preta meio que me assustaram no começo, mas ambos acabaram sendo boas experiências no final.

— Hey. O que você está tentando fazer?

— …

Pop!

Uma explosão aconteceu atrás de mim. Estou supondo que tentar falar com Ifrit não irá funcionar. Ele apenas respondeu minha pergunta com outro golpe escaldante em minha direção.

Dessa vez, ao contrário daquela onda de choque não direcionada de antes, ele claramente estava tentando me matar, e seus raios de calor puro vaporizavam tudo que tocasse seu caminho. A força por trás deles supera em muito aquela primeira liberação de poder mágico — mas, ei, se eles não me atingissem, sem problemas. Eu já havia me esquivado desses raios e, com meus sentidos rápidos, eu podia ver as coisas chegando na velocidade do som.

De certa forma, eu estava feliz por ainda não termos terminado a cidade. Eu provavelmente deveria estar mais preocupado com o titã de fogo diante de mim, mas esse foi o pensamento que surgiu de qualquer maneira. Nossas tendas e dependências temporárias desapareceram, mas isso não era um desastre.

Nós já tínhamos cortado as árvores ao redor para expandir a clareira; se estivéssemos na floresta, provavelmente já teria havido um enorme incêndio. Há uma vantagem. Eu estava um pouco preocupado sobre a madeira e os outros suprimentos que empilhamos, mas não havia muito que eu pudesse fazer no momento.

Este gigante tinha muita coragem, contudo! Com aquela atitude dele, eu tinha certeza de que ele me via como nada mais do que um pequeno inseto irritante em seu caminho. Ele estava me insultando, e isso era mais do que suficiente para se tornar desagradável. Ifrit era meu inimigo e eu decidi que agora era hora de um contra-ataque. Eu tinha minhas dúvidas sobre Shizu, a pessoa de quem Ifrit provavelmente estava se alimentando para tudo isso, mas se eu não atacasse, isso nunca terminaria.

Suprimir Ifrit era uma prioridade; eu podia checar Shizu depois. Pelo que eu saiba, talvez Shizu nem estivesse sendo controlada.

Eu atirei uma Lâmina D’Água no estômago de Ifrit. Ela evaporou antes de atingir o gigante de fogo; uma pluma espiral de fogo a cortou. Hmm. Acho que isso não vai funcionar. Mas eu não tive tempo para refletir sobre isso, pois as salamandras tinham acabado de reagir ao meu ataque.

— Lança de Gelo!!

A magia de gelo de Elen atravessou uma delas. Quando dei uma olhada nela, ela já estava fugindo de volta para o seu canto da Barreira Mágica.

 Foi uma tentativa inteligente. Parecia que a barreira estava aguentando bem mesmo sem muita concentração por parte do lançador. Mas seria preciso mais do que uma Lança de Gelo para abater aquelas salamandras.

Uma delas se lançou na direção do trio de aventureiros.

— Vocês estão bem?!

— Eu consigo fazer isso! — disse Elen. — Arriscar as nossas vidas não é novidade para nós!

— Ah, vamos lá — gemeu Kabal — Eu pensei que eu era o líder! Bem, que seja. Vou derrubar uma delas!

— É? — retrucou Gido. — Eu não ouvi falar de um bandido lutando contra um espírito elementar antes. Acho que estamos todos juntos nisso, huh?

Era difícil dizer se eles realmente contavam um com o outro ou não.

Se Kabal estava tão ansioso assim para “derrubar uma delas”, eu deveria deixar. Se ele morresse, contudo, isso pesaria na minha consciência.

— Tudo bem — disse — Você fica com ele. Mas não se force! Se você se machucar, use esses.

Pulando a explicação, eu cuspi algumas poções de recuperação e as joguei na direção deles. Gido conseguiu pegá-las.

— Hm… Rimuru? O que são isso?

— Poções de recuperação! Muito boas também, então se estiverem machucados, use-as!

Não tínhamos tempo para detalhes. Eu voltei a ação e os três estavam muito ocupados lidando com a salamandra de fogo para falar. Mesmo um seria um adversário difícil para eles. “Espero que eles continuem bem.”

As outras duas salamandras, enquanto isso, começaram a vir em minha direção. O próprio Ifrit também estava avançando calmamente.

“E agora?”

Assim que o pensamento me ocorreu, Ranga finalmente chegou. Eu esperava mantê-lo vigiando os aventureiros, mas não mais. Ele estaria servindo como minha montaria.

— Você me chamou, meu mestre?

Eu saltei em suas costas. Eu precisava de um pouco de velocidade agora, pelo menos. As salamandras eram bastante rápidas, mas não tão rápidas quanto o Ranga.

— Eu quero que você se concentre em esquivar delas — ordenei — Você não precisa atacar. Eu cuidarei disso.

— Entendido.

Nós tínhamos uma conexão quase sem palavras um com o outro. Ranga instantaneamente entendeu o que eu queria fazer. Então partimos.

As duas salamandras de fogo dispararam jatos de Bafo de Fogo em nós, como dois lança-chamas no céu. Era um trabalho simples para Ranga evitá-los, recuando para fora do alcance do calor. O fogo parecia poderoso e eu não queria testar minha sorte. Se eu ainda fosse humano, eles provavelmente teriam me transformado em um torrão negro no chão.

“É melhor eu cuidar desses dois caras antes de enfrentar Ifrit.” Então eu tentei algumas Lâminas D’Água. Ao contrário do gigante de fogo, as salamandras não conseguiram interromper o ataque antes que as atingisse. Eu consegui cortar um membro… mas, ridiculamente, o cara cresceu de volta. Deve ter sido feito de fogo, como todo o resto. Só cortar não resolveria muito. A cobra negra provavelmente exalava mais força bruta do que esses caras, mas os poderes especiais das salamandras as tornavam um pouco mais complicadas de serem derrotadas.

— … Meu mestre, ataques físicos não funcionam contra inimigos espirituais. Atingir sua fraqueza elementar ou usar mágica, sim — explicou Ranga.

Oh. Certo. Atingir um espírito elemental com uma espada não faria muito, faria?

Que tal lançar um monte de água, então? Meu estômago tinha bastante armazenado do lago subterrâneo. Seria o suficiente para parar esse cara?

[Certo. É possível liberar uma grande quantidade de água. Isso causará uma explosão de vapor sob contato com as salamandras, tudo bem?]

Sim

Não

Huh? Uma explosão… de vapor…? O que…?

[Certo. Uma salamandra de fogo é formada da energia térmica coletada. Ser mergulhada em água fará com que vaporize imediatamente, criando vapor que envolve o corpo da salamandra. Isso também acionará uma onda de pressão altamente comprimida e de alta temperatura, criando uma série de explosões.]

E? Isso derrotará a salamandra?

[Certo. Pressão vezes volume é igual a água liberada vezes o vapor constante…]

Paaaaara! Me explica de uma maneira que eu possa entender!

[Certo. Isso acionará uma grande explosão, e é possível que a salamandra seja nocauteada sem deixar vestígios. No entanto, os resultados provavelmente transformarão a área em um terreno vazio.]

Oh, vamos! Qual o ponto, então? Não sou suicida, cara! Mas se não isso, o que fazer? Lâminas D’Água não fazem nada prático contra elas…

— Lança de Gelo!!

Eu notei o trio mais uma vez, fazendo seu melhor para sobreviver, com Elen lançando magia no centro.

Espera um pouco. Lâminas D’Água não funcionam porque não são magia, suponho. Então magia é tudo que preciso?

— Elen! Me acerte com uma Lança de Gelo! Só uma serve!

— Hahh?! Umm, isso é meio…

— Só faça!

O pedido lhe fez parar, mas depois de um segundo, ela começou a entoar. Depois de outro instante, a magia congelante Lança de Gelo foi lançada.

— Não reclame sobre isso comigo mais tarde! Lança de Gelo!!

Enquanto ela gritava o feitiço, um pilar de gelo disparou em minha direção. Eu provavelmente poderia capturar essa magia com minha habilidade Predador.

E se eu pudesse—

[Certo. Lançamento da Habilidade Única Predador.]

 [Predição e Análise da Lança de Gelo bem-sucedida.]

Ótimo! Como pensei.

Eu meio que duvidava disso enquanto estava sendo explicado para mim, mas esse Predador tinha que ser algum tipo de habilidade quebradora de regras. Aquela magia provavelmente tinha um impacto poderoso, mas Predador absorveu tudo, me deixando ileso, e eu até a aprendi.

— Hehh?! O que aconteceu com a minha magia?!

Desculpa, Elen. Não posso explicar.

A Análise terminou em um instante, e agora eu podia lançar o feitiço só de pensar nele. Nenhum cântico exigido — esse era outro efeito colateral agradável de Predador.

— Lança de Gelo!

Omitindo o tempo de cântico, eu lancei um pouco de magia na salamandra. Então, naquele momento, eu entendi a teoria por trás da magia e como tudo funcionava. Minhas Lâminas D’Água não danificaram as salamandras, mesmo de conseguirem cortá-las, mas a magia de Elen, sim.

O motivo era surpreendentemente simples. Lançar magia não era sobre agir sobre seus arredores com um fenômeno — era mais como imaginar algo, então criá-lo na vida real.

Eu estava, de certa forma, lançando um raio de energia que tinha o efeito de roubar o calor do alvo. Aquele raio aconteceu de tomar a forma de um pilar de gelo que consome energia, mas não foi o gelo que o fez funcionar. Foi a energia dentro. Assim, aplicou dano à salamandra, cuja própria energia assumia a forma de calor e chamas.

E os múltiplos pilares de gelo que eu acabei de lançar — grandes demais, realmente, para serem chamados de “lanças” — haviam acabado de espetar as duas salamandras de fogo. Isso, aparentemente, foi o suficiente para livrá-los de toda sua força mágica. Eles instantaneamente vaporizaram, como uma nuvem de fumaça, e não existiam mais.

— Sim! Tudo terminado aqui. Deixe-me ajudar vocês-

Eu imaginei que os ajudaria, já que eu fiz Elen desperdiçar um raio de magia em mim — mas cheguei tarde demais.

— Ah, merda — disse Kabal — ela vai se explodir! — Como a primeira linha de defesa, ele lançou um Escudo de Aura, mas a explosão de auto sacrifício da salamandra foi mais do que suficiente para mandá-lo para longe. Os três foram expostos ao calor intenso enquanto subiam para trás no ar.

Perturbado, eu fiz Ranga correr até eles. Eles estavam mais gravemente queimados do que pensei. Conscientes, sim, mas incapazes de se moverem — e Kabal, na frente, tinha levado o pior. Se não fosse por seu escudo, Elen e Gido, que estavam relativamente indefesos, poderiam ter facilmente morrido.

— Droga… Ranga, proteja esses caras. Leve-os para algum lugar seguro!

— Mas…

A ordem lhe fez parar por um instante, mas ele ficou em silêncio, talvez sentindo a força mística que eu estava emitindo. Seus instintos selvagens lhe diziam que nenhuma contradição seria permitida, sem dúvida.

— Isso é uma ordem! Faça! Eles têm poções de recuperação neles, então leve-os para algum lugar seguro e os cure.

— Como o senhor mandar. Que o senhor lute bem!

— Não se preocupe. Ifrit é todo meu!

Isso deve ter convencido Ranga o suficiente. Ele assentiu, juntou os três em sua boca e — me dando mais um olhar de respeito — saiu em disparada. Ele pode ter tido a ideia errada sobre minhas intenções, mas de qualquer forma, tudo o que me restava era Ifrit. Agora eu podia lutar sem restrições. Esqueça envolver mais alguém nisso.

“Vamos acabar com essa farsa”, pensei enquanto encarava o gigante de fogo.

As chamas giraram violentamente no ar. Ifrit, diante de meus olhos, havia se dividido. Agora, havia inúmeros gigantes bloqueando minha rota de fuga. Ele tinha alguns talentos complicados, mas eu não estava muito preocupado.

Minhas habilidades de detecção podiam dizer exatamente onde o fogo estava indo. Mesmo se todos os vários Ifrits lançassem ataques ao mesmo tempo, eu podia facilmente determinar o nível de perigo do fogo a partir de sua temperatura e tomar as medidas adequadas. Eu já sabia que eles não estavam todos no mesmo nível.

Eu sinceramente duvidava que Ifrit pudesse me atacar com qualquer tipo de ataque efetivo. Mas, ao mesmo tempo, nada do que eu tinha deu certo contra Ifrit. Essas chamas eram difíceis. O chão estava se tornando magma em meio às temperaturas ridiculamente altas. De jeito nenhum eu poderia passar por isso, não a menos que eu quisesse me dar uma mudança de classe para “slime queimado”.

“E agora?

Exalo Paralisante e Sopro Venenoso eram efetivos apenas até 10 metros de distância. Eles precisavam ser lançados dentro daquela distância de Ifrit, o que não aconteceria. Eu precisava de um ataque que me mantivesse a uma distância segura enquanto lhe dava um golpe decisivo. A única coisa que me veio à mente foi meu novo brinquedo, a Lança Sincelar.

— Tome isso! Lança Sincelar!!

Eu lancei vários sincelos nos clones de Ifrit e vaporizei alguns deles com sucesso. Vaporizar com gelo soa um pouco estranho, mas com as nuvens de vapor d’água depois dos ataques, essa era a melhor maneira de descrever. Comecei a entrar neste pequeno jogo de pontaria, derrubando os clones um por um com minhas lanças.

Mas—

No momento que pensei “Oh, droga! já era tarde demais. No momento que senti, já estava cercado. Uma barreira de longo alcance para me prender? Uma das propriedades intrínsecas de Ifrit?

Em um instante, havia um círculo mágico pintado no chão, sem cântico necessário para ativá-lo. Eu esqueci que não era o único que podia fazer isso. Ele transformou seu próprio corpo em gás e transformou um raio de cem metros em um oceano de chamas. Provavelmente um dos ataques de alto nível de Ifrit, e pior ainda, a área estava repleta de energia dos clones de Ifrit que eu havia derrotado.

— Círculo de Fogo!

Eu ouvi uma voz que não consegui decifrar. Homem, mulher, jovem, velho? Difícil dizer.

Não havia… escapatória. Eu estava à mercê do feitiço de meu inimigo. Ifrit me fez atacar aqueles clones de propósito. Eles eram tanto uma distração quanto um modo de carregar sua energia.

Eu me preparei mentalmente para a morte.

Aahh… Eu não achei que abaixaria minha guarda, mas podia ter lidado melhor com aquilo. Eu também dancei nas mãos do inimigo! Totalmente horrível.

Talvez eu não devesse ter sido tão egocêntrico. Todos nós devíamos tê-lo atacado de uma vez. Ou talvez eu pudesse ter tomado minha forma de lobo negro, confundido ele com minha velocidade e então saltado nele, aguentando quaisquer queimaduras que eu levasse. Ou talvez uma rodada de Relâmpago Negro tivesse servido. Sentar e ver como as coisas acabariam? Nada bom.

Certos arrependimentos também entraram em minha mente…

Ainda assim, eu sabia que meus sentidos eram ultra rápidos, mas os danos certamente estavam demorando para chegar. Não que eu me importasse com uma morte indolor, se tivesse que ser dessa forma… 

Sério, isso não estava indo um pouco devagar?

Ele estava apenas mexendo comigo?

Estranho… Eu devia ter sido devorado pelas chamas a um tempo atrás.

“Hmmm…?”

[…Certo. Os efeitos de "Resistência à Temperatura” cancelaram com sucesso ataques com base em chamas automaticamente.]

Eu detectei um pouco “Você esqueceu completamente sobre Resistência à Temperatura, não esqueceu?” de sarcasmo na voz.

Quem que te pediu para falar agora, seu monte de sucata?!

É. Eu acho que recebi um “…” em resposta àquela pequena explosão.

Espero que tenha sido apenas a minha imaginação. O Sábio tinha sido completamente fiel a mim antes disso.

Não tinha nem consciência própria. Seria estúpido pensar o contrário.

“Hahaha. Eu estou apenas sendo bobo. Tenho certeza!

Agora, vamos lá.

Espera. Cancelar ataques com base em chamas? Então…

Cara, eu tenho isso resolvido, não tenho? Veja, isso é tudo parte do plano. Eu finjo estar quase sendo derrotado, então dou a volta por cima. Vamos com isso.

Certo. Hora de finalizar, então.”

— O que foi aquilo? — gritei enquanto silenciosamente desenrolava meu Fio Pegajoso através do corpo de Ifrit. Ele estava acabado. Minha análise já mostrou que ele estava usando Shizu para o núcleo de seu corpo. Eu não poderia ter amarrado um espírito puro como as salamandras com este fio, mas um com núcleo físico era uma história diferente.

Em seguida, eu combinei o Fio Pegajoso com um pouco de Fio de Aço para ter o benefício dos dois. Outro produto de meus experimentos — e como um bônus, adotava as mesmas imunidades que eu tinha, então não seria queimado.

Xequemate. Eu sei que zombei de você antes, mas você provavelmente estava zombando de mim também. Vamos dizer que estamos quites. Você está livre para me odiar por isso se quiser.

— Eu sou o próximo, né?

Ifrit, em pânico, lutou para se libertar. Esperava por isso. Mas meu “Fio de Aço Pegajoso” nunca o deixaria. Tomei meu tempo, me aproximando casualmente.

Era hora de dar o golpe final. Em Ifrit, o monstro que havia provavelmente tomado o corpo de Shizu.

Sem necessidade de muita pressa. Eu andei até essa criatura agitada, que estava tentando jogar todo ataque que podia para me parar. Infelizmente para ele, as chamas não funcionavam em mim.

Então…

[Usar a habilidade única Predador?]

Sim

Não

Isso será um grande sim, por favor.

Um flash de luz cobriu a área e, então, desapareceu.

Tudo que restou foi uma senhora solitária e eu.

Isso era um sonho?

A mão de minha mãe, gelada.

Seus olhos frios, olhando para mim.

Um sorriso caloroso e uma pilha de cinzas brancas.

Tudo o que essas memórias faziam era me atormentar. Eu não queria me lembrar delas— 

Mas foi esse o caminho em que andei.

Se não tivesse esbarrado na heroína, eu duvido que minha alma poderia ter sido salva… Mas eu era muito desajeitada, muito desqualificada para terminar como ela. Com tantas pessoas dependendo de mim, também…

É só que—

Fazia vários anos desde que me aposentei da vida de aventureira. Eu era uma professora completa, guiando a próxima geração de nosso trabalho enquanto ajudava a sociedade com seu trabalho.

A Sociedade de Aventureiros, um grupo que cruzou fronteiras e cresceu além do controle de qualquer governo, construira sua sede no reino de Englesia. Eu não era mais uma aventureira, mas se havia algo que eu pudesse fazer por eles, queria ajudá-los. Foi a sociedade, afinal, quem me dera uma espécie de lar quando eu não tinha para onde ir.

Lá, eu tive a chance de ensinar um número de estudantes talentosos. Um jovem com olhos que irradiavam com pureza. Uma garota, seu olhar tingido de desesperança. Mais forasteiros, presumi, assim como eu.

Os dois eram completos opostos de muitas maneiras. Yuuki era um garoto brilhante e otimista, enquanto Hinata era insular e reservada, como se ela carregasse toda a escuridão do mundo com ela.

Bandidos a atacaram quando ela veio para cá. Na época, pensei que ela se abriria e superaria conforme os dias passassem. Os bandidos encontraram seus destinos nas mãos de outro atacante, o que salvou a vida de Hinata, mas tenho certeza de que o incidente a marcou.

Eu vi um pouco de mim mesma naquela garota, afinal. Eu tinha uma afinidade por ela. Aparentemente, era unilateral.

— Obrigado por tudo que me ensinou — Ela disse — Não tem mais nada que possa aprender de você. Duvido que nos encontraremos novamente. — Então ela virou-se e partiu.

Pensei que poderia ter sido melhor correr atrás dela, mas não podia me determinar a sair da cidade. A sociedade estava criando um novo programa de assistência compartilhada com Englesia, uma estrutura organizacional originalmente proposta por Yuuki. Como ex-heroína, fui colocada na posição de representar a sociedade nas negociações necessárias. Era algo em que eu queria ter sucesso, considerando como isso definiria a direção futura da sociedade.

Então, no fim, tudo que pude fazer foi vê-la partir. 

— Se algum dia se perder — chamei por ela — quero que confie em mim.

Depois de agonizar sobre isso, decidi apoiar Yuuki ao invés de Hinata. A garota andara por um caminho semelhante ao meu, mas ela sempre foi mais obstinada do que eu. Eu imaginei que deveria acreditar nela. Que sua vontade de ferro poderia limpar a escuridão em sua alma e transformá-la em uma grande mulher.

Não foi uma grande surpresa quando soube, poucos anos depois, que ela havia assumido uma posição importante na Igreja. Me senti um pouco orgulhosa, um pouco solitária… e apenas um pouco ansiosa.

Hinata não está se sentindo sozinha, está? Ela está bem com sua vida?

As perguntas me dominavam, mas achei que não tinha o direito de perguntar. Certa vez tive a chance de apertar sua mão e recusei.

Tudo que podia fazer era rezar pela segurança contínua de Hinata.

Yuuki, por outro lado, era muito mais dinâmico.

Foi Yuuki que construiu o atual sistema para a Sociedade de Aventureiros, renomeado agora de Guilda Livre. Graças a ele, a guilda foi capaz de construir uma relação cooperativa de sucesso com nações ao redor do mundo. Ele forjou novos tratados com os governantes, ganhando posições de liderança em seus conselhos mais importantes. Seus esforços tornaram a organização mais poderosa do que nunca.

Eu não deveria ter esperado nada menos. Até então, toda nação tinha se concentrado em proteger suas próprias fronteiras. Quando a Guilda Livre começou a assumir tarefas de despacho de monstros, isso aliviou a carga de todos os outros governos do mundo. E isso não era tudo. Aventureiros — pessoas que viajavam o mundo, nunca em dívida com nenhum país — foram obrigados a apresentar relatórios sobre suas viagens. A Guilda Livre então reunia esses relatórios para entender como os monstros estavam distribuídos pelo mundo. Níveis de perigo foram atribuídos a todas as regiões, permitindo que as pessoas viajassem em relativa paz.

O sistema tinha outro efeito importante. Saber onde e quando esperar monstros possibilitou a rápida detecção de anomalias — permitindo que as pessoas descobrissem e reportassem monstros não vistos antes ou eliminassem hordas rapidamente se crescessem em excesso.

Sempre que um monstro que normalmente não aparecia em uma determinada região de repente ameaçava uma cidade próxima, a guilda também era obrigada a enviar uma força expedicionária para descobrir a causa. Chegar à raiz do problema logo no início deixou a guilda e o governos locais montarem uma unidade de despachos muito mais eficiente do que antes.

Ter esse tipo de organização fez a vida das pessoas mais segura e confortável. A humanidade se viu expandindo suas cidades e a população cresceu rapidamente nos últimos anos. A instalação de rankings atribuídos a monstros fez muito para reduzir o número de mortes também.

Para alguém encarregado de treinar novos recrutas, nada podia me deixar mais feliz. Graças a Yuuki, a Guilda Livre agora era uma organização que nem as nações do mundo nem as pessoas podiam viver sem.

Yuuki, por sua vez, apenas riu. 

— Eu só estou imitando o que vi nesse videogame que jogava, — disse. — Embora, claro, você pode fazer o que quiser em um videogame. Você pode até fazer monstros dizerem ‘Eu não sou um slime ruim, sabe’ …ou até mesmo fazê-los se juntarem ao seu grupo!

 Ele sempre foi brincalhão assim. Monstros se tornando seus amigos? Esse tipo de coisa pode só pode acontecer em seus sonhos.

O mundo em que nasci quase fora arrasado pela guerra. Teria se recuperado ao ponto de criar pessoas como ele — pessoas que pareciam não ter nenhuma preocupação no mundo?

Ele me explicou que esses “videogames” eram brinquedos de crianças que te deixavam experienciar uma história inteira… então se o Japão tivesse se recuperado o suficiente para dar sonhos para as crianças brincarem, deveria ter se tornado um lugar maravilhoso.

Então, eu escutei as histórias de Yuuki, pensando sobre uma casa a qual nunca poderia voltar.

Eu continuei servindo como suporte para Yuuki depois disso — aconselhando-o por trás, nunca aparecendo na linha de frente. A Guilda Livre continuou a crescer e se tornou uma roupa usada por quase todos. Abraçou uma filosofia de resgatar os fracos, acessível a todos igualmente.

Então Yuuki, meu próprio estudante, se tornou o grande mestre da guilda, sua maior posição, aquele que organizava e supervisionava os mestres da guilda de todas as filiais. Dado tudo que ele havia feito por eles, eu devia ter esperado isso. Seus esforços foram o catalisador que permitiu que as pessoas vivessem em paz. Ele havia feito tudo que precisava. Eu senti a satisfação de um trabalho bem feito.

Decidi, então, ir em uma jornada. Uma jornada para cuidar de alguns arrependimentos.

Continuava sonhando com o passado, quando ainda era apenas uma nascida da magia. Estava ficando difícil conter a vontade de Ifrit. Talvez eu estivesse chegando ao fim da minha vida natural. Sabia que minha Máscara de Resistência Mágica ainda estava funcionando tão bem quanto antes, então a razão parecia óbvia.

Quando percebi isso, concluí que seria melhor deixar a cidade assim que possível. Não sabia quando Ifrit finalmente sairia de controle, e não tinha ideia de como a minha morte afetaria Ifrit em si.

Além disso, queria retaliar contra meu Lorde Demônio. Só uma vez, queria dar minha opinião a ele.

Então decidi sair em minha jornada.

Quando contei a Yuuki sobre meus planos, ele assentiu silenciosamente, dizendo nada sobre eles. Espero que ele esteja disposto a perdoar este último ato de egoísmo. “Talvez, é assim que o herói se sentia também.”

Segui até Blumund. Heinz havia se aposentado, já que seu filho, Fuze, havia assumido o papel de mestre da guilda em seu lugar. Nós nos encontramos e conversamos um pouco sobre os velhos tempos. Ele tinha muito a dizer, pelo que fiquei feliz.

Notavelmente, ele relatou que Veldora havia desaparecido. A guilda estava conduzindo uma investigação frenética para encontrar a causa. 

— Eu não sei muitos detalhes, — Heinz me disse com uma risadinha. — Eles não dizem muito a um velho pensionista como eu. Posso dizer que está aborrecendo meu filho, no entanto.

Ele deve ter confiado bem em Fuze para falar dele assim, pensei. Havia participado de várias operações de caça a monstros com o garoto, e me lembrei dele fazendo um bom trabalho me apoiando. Agora, ele já estava nas linhas de frente, seguindo os passos gerenciais de seu pai. Ele deve ter herdado todo o talento natural de Heinz.

— Obrigada — disse. — Você foi muito gentil comigo.

“Não devia atrapalhá-los.” Depois de minha resposta educada, me levantei.

Será que o desaparecimento de Veldora é uma mensagem divina para nós? De qualquer forma, eu seguiria para a floresta.

— Fique bem também, Shizu! Acho que tem uma expedição saindo daqui amanhã, na verdade, — Ele murmurou, quase que para si mesmo. — Se está indo para a floresta, é melhor se juntar a eles por um tempo.

Ele não tentou me parar. Ele sempre foi um sujeito desajeitado, e foi assim que preferiu mostrar bondade.

— Ah, Heinz, não deveria esperar nada menos. Suponho que te devo uma até o final, então.

— Você não me deve nada, Shizu. E sem falar ‘até o fim’ ainda! Gostaria de te ver outra vez algum dia.

Podia sentir o calor por trás de suas palavras.

— Verdade. Estarei de volta.

Me curvei e saí.

No dia seguinte, consegui encontrar a expedição que Heinz mencionou. Consistia de três aventureiros e, como ele me disse, era um grupo brilhante e convidativo. Realmente gostei de me juntar a pessoas tão gentis para minha última jornada, embora o descuido excessivo deles tenha me desconcertado.

Houve, para dizer o mínimo, muitos problemas ao longo do caminho através da Floresta de Jura. Eu fiquei impressionada, de certa forma, que eles conseguiram sequer chegar ao rank B. Eles tinham a técnica de batalha que tal rank implicava, mas se tivesse que resumir tudo sobre o grupo deles em uma palavra, seria “sem sentido”.

Nossa jornada continuou, no entanto, até eles enfiarem uma espada em um ninho de formigas gigantes. Eu estava horrorizada. Isso aconteceu logo depois de eu dizer que era uma má ideia, também. Nunca na minha vida imaginei que eles fariam algo assim.

Minhas chamas podiam ter queimado aquelas formigas gigantes instantaneamente, imaginei. Mas no momento que percebi quão difícil era controlar meu poder, já tinha começado a sentir meu corpo deteriorar. Permaneceu fisicamente jovem graças a presença de Ifrit, mas conforme meu poder sobre ele diminuía, comecei a envelhecer rapidamente. Ou, suponho que deveria dizer que voltei à idade que sempre deveria ter sido.

Ifrit seria libertado novamente se meu corpo cedesse? Ou ele desmoronaria comigo? Não tinha ideia do que aconteceria até que acontecesse. É por isso que parti.

E por que estava hesitante em iniciar meu fogo.

Fomos sortudos o suficiente para sermos salvos por uma patrulha que passava, salvando-nos de qualquer problema adicional. Mas essa patrulha era uma das coisas mais suspeitas que já vi.

Sendo salvos por monstros? Nada assim havia me acontecido antes.

Esses eram hobgoblins montados em lobos mágicos. Teria sido uma coisa se eles entendessem algumas palavras quebradas da fala humana, mas estas eram criaturas inteligentes, e eles dominaram o que era claramente uma espécie de monstros de alto nível. Isso era absolutamente o tipo de “evento suspeito” que esse trio de aventureiros havia sido enviado para investigar, pensei.

Meu destino, entretanto, era o castelo do lorde demônio Leon. Seu domínio ocupava as terras logo depois da floresta. Eu deveria ter escolhido aquele momento para deixar o grupo. Mas… não sei. Suponho que queria ver, junto com esses aventureiros, que tipo de casa esses monstros criaram para si.

Era realmente um lugar estranho, essa cidade em que nossos salvadores moravam. Não era uma toca úmida ou covil fedorento e imundo. Uma “cidade” era o único modo de descrever.

O choque que senti estava além da compreensão. Não era um abrigo grosseiro, algum buraco glorificado na montanha. Era uma cidade respeitável, uma que eles construíram para si do zero.

Estava sob construção, provavelmente deveria adicionar. Havia sido inspecionado e arranjado, e materiais de construção foram colocados em cada seção, prontos para serem convertidos em casas. Ainda não havia prédios; os monstros ainda viviam em uma fileira de tendas. Mas eles haviam começado seu trabalho, concentrando-se na infraestrutura subterrânea. Eu nunca ouvi falar de nada parecido neste planeta.

Era uma colônia bizarra.

Mas parecia estar cheia de energia. Os habitantes, apesar de serem monstros, realmente pareciam gostar de trabalhar nisso. A maioria deles eram hobgoblins, mas pareciam compartilhar suas terras com os lobos negros gigantes. Um pouco diferente dos que eu conhecia, e não achei que era minha imaginação.

O líder dos hobgoblins falava fluentemente comigo. Imagino que era o mais inteligente entre eles. Ele até preparou comida. Notavelmente, no entanto, ele acabou não sendo o líder. Em vez disso, juntou-se a ele um slime — um que se recostava em seu trono elevado, agindo como se fosse o rei do mundo. Pode ser estranho dizer que um slime poderia “recostar-se” em qualquer coisa, talvez, mas era realmente a sensação que ele exalava.

Esse slime era a coisa mais estranha de todas — pois ele, na verdade, era o líder de todos esses monstros.

Era hilário.

Não pude deixar de cuspir quando ele falou. “Eu não sou um slime ruim” foi como ele escolheu se descrever! Assim como no videogame de Yuuki. Comecei a me perguntar se era uma coincidência.

Ainda assim, havia algo convidativo sobre o espaço que esse slime criou. A estranha criatura, de alguma forma, me fez lembrar de memórias da minha própria terra natal. Meu coração se sentiu completo. Agora, eu estava feliz por ter decidido me afastar do caminho pretendido. Esse encontro, pensei, era trabalho do destino. E ainda—

As horas que passamos nos divertindo chegaram a uma parada súbita. Minha vida estava prestes a expirar. Eu ainda tinha que chegar ao meu destino — para cumprir meu objetivo — mas aqui estava.

Ifrit esteve esperando por este momento. Pude sentir sua vontade se apoderando da minha. Está acontecendo… Vou arruinar tudo isso também…

Se apenas, uma última vez, eu pudesse—

O titã se manifestou, rindo da minha tolice.

Minha consciência desapareceu.

Fui ver como ela estava. Ela não tinha muito tempo. Na verdade, talvez nunca reganhe a consciência. Ainda assim, queria cuidar dela até o fim, essa companheira humana de outro mundo.

Os aventureiros feridos se recuperaram, felizmente, choramingando incessantemente sobre como seria preciso mais do que um pagamento de risco para indenizar por terem sido queimados até quase morrer.

— Ei, qual é a dessas queimaduras? — perguntou Elen. — Não vejo nenhuma cicatriz ou coisa do tipo… Tipo, minha pele está tão macia e brilhante quanto a de um bebê!

— Droga, — acrescentou Kabal. — Não pensei que seria capaz de me mover por mais uma semana, também.

— Sim, me contem como surpreso. É uma poção e tanto que ele tinha lá!

Eles estavam certos. Aquela poção os deixou se sentindo renascidos.

— Você sabe, no entanto… Isso provavelmente significa que eles vão recusar nosso pedido de pagamento por risco, não é?

— Sim. Ninguém vai acreditar em nós… —, respondeu Kabal.

— É, suponho que sim. Melhor do que morrer, contudo! — comentou Gido.

Nunca levava muito tempo para esse trio começar a discutir um com o outro por causa de seus próprios problemas egoístas. Eu me perguntei se eles realmente pensavam em alguém além de si mesmos. Eles não tinham nada contra monstros, pelo menos.

— Sabe — sugeri — Assim que as coisas se acalmarem um pouco, talvez eu possa visitar sua cidade.

— Oh, se esse for o caso, posso passar uma mensagem ao mestre da guilda por você!

Exatamente o que eu queria ouvir. Kabal fez o meu dia. Admirava aventureiros, mais ou menos. Eu não tinha nenhum tipo de documento de identidade, e não sabia sequer se eles deixavam monstros entrarem no cartório, mas… poderia ser divertido.

Então Kabal prometeu que eu poderia apenas dizer o nome “Rimuru” e o mestre da guilda ouviria sobre isso em breve. Cara legal. Eu estava tão animado que decidi lhes dar um presente de despedida — alguns equipamentos, feitos recentemente pelos irmãos anões. Eram modelos teste, feitos com materiais que eles mesmo haviam adquirido, mas a qualidade era respeitável.

Manto de Aranha: Um manto de puro branco, tecido com seda de aranha.

Armadura de Escama: Armadura pesada feita com a couraça de um lagarto. Muito mais leve do que as aparências.

Armadura de Couro Duro: Feito das peles de monstros locais. Resistência mágica incluída.

Também joguei um pouco de comida e dez poções de recuperação para uma boa medida.

— Ohh! Veja esse manto! É tão leve, não consigo acreditar quão durável é! E é bonito também!

Whoa! Sempre quis uma armadura de escama de verdade! Isso… Espere um pouco, Mestre Garm fez isso?! Isso vai ser como uma herança para mim!

— É, você tem certeza de que podemos ter esses? É quase bom demais para mim. Quer dizer, pelo de um lobo gigante de verdade?

Foi uma pequena celebração por um tempo. Mas — quer dizer, o fogo queimou todo o equipamento deles, e duvido que o salário deles os permitiria substituir tudo tão facilmente. Não era exatamente minha culpa, mas tive que sentir um pouco de simpatia por eles. Todos os equipamentos são protótipos, produzidos antes dos anões poderem passar para a produção em massa, mas era decente o suficiente.

“Além disso, veja quão feliz eles estão.” Estava confiante que eles se lembrariam de passar meu nome. Eles estavam me chamando de “chefe” com o resto também.

Os três tinham suas dúvidas sobre o que aconteceu com Shizu, mas não o suficiente para impedi-los de partir novamente depois de três dias de descanso. Eles tinham um relatório para arquivar e um prazo iminente. Se qualquer coisa, três dias era uma quantidade generosa de tempo para se preocupar com uma mulher que basicamente se forçou no grupo de viagem sem ser convidada.

Ainda assim, prometi a todos eles que cuidaria dela, e isso foi o suficiente para tranquilizá-los.

Uma semana se passou antes de Shizu acordar novamente.

— Isso é…? Oh. Eu… sinto muito.

Apesar da transformação, ela ainda mantinha todas as suas memórias.

— Estava sonhando — Ela me disse — Sonhando sobre o passado. A cidade em que eu vivia… Um lugar para o qual eu nunca poderei voltar.

“Japão?”

— Diga-me, slime. Qual o seu nome?

Hmm. Talvez sua repentina maturidade estivesse afetando sua memória, afinal. Eu me lembro que tinha me apresentado em sua presença. 

— Rimuru, senhora — respondi.

Shizu fechou os olhos, como se estivesse pensado em algo. 

— Poderia me dizer seu verdadeiro nome?

Ela deve ter sabido o tempo todo. Hesitei por um momento.

— Hmph — ofereci — Você não ficará neste mundo por muito tempo, de qualquer maneira. Vou te dizer. É Satoru Mikami.

Meu verdadeiro nome. Um nome que imaginei que não usaria novamente.

— Ah. Você é da minha terra…? Pensei que seria. Senti de você. — Ela ficou em silêncio por um instante. — Ouvi de meus estudantes, também. A cidade está muito melhor agora? Mais bonita? Da última vez que estive lá, não havia nada além de fogo ao meu redor.

— Sim. Posso te mostrar, se quiser.

Usei a Comunicação por Pensamento para fazer exatamente isso. Coisa bastante útil para ter em um momento como este. Gostei.

— Ahh… — A visão fez Shizu derramar uma lágrima. — Escute, slime… ou devo dizer Satoru, suponho. Tenho um pedido para você. Se importaria de ouvir?

— Que tipo de pedido?

Nada particularmente viável, tinha certeza. Mas prometi cuidar dela até o fim. Ela merecia ser ouvida.

— Quero que você me coma…

“Hm? O que essa senhora acabou de dizer?”

— Você consumiu a maldição… que foi colocada em mim, certo…?  Estou tão feliz de me livrar dela… — Sua voz silenciou — Gostaria de ter a chance, duvido que poderia ter a realizado, mas gostaria de ter a chance de confrontar a pessoa que a colocou em mim, mais uma vez… Então tenho apenas um pedido para você, me deixaria dormir dentro de você?

Algo sobre os olhos dela, a resolução que ela não podia abandonar, agarrou-me. Parecia tão absurdo, tão cruel…

— Tenho que te dizer, não tenho nada além de rancor por este mundo. Mas eu ainda não consegui me fazer odiá-lo. É o mesmo para como me sinto em relação aquele homem… Talvez eu não possa evitar pensar nele quando olho em volta de mim. É por isso que… não quero ser levada para dentro da terra aqui. Então, por favor… estava esperando que você pudesse me engolir em vez disso…

“Hmm. Bem, isso é fácil o bastante.”

Realizar o desejo dela me prenderia, sem dúvidas, e me daria uma maldição própria. Seria acusado de assumir seu desespero e ódio.

Havia alguma necessidade de vacilar nisso, embora? Se eu quisesse levá-la à vida após a morte com a mente em paz — a resposta era óbvia.

— Tudo bem. Ficarei feliz em aceitar seus sentimentos. E qual era o nome desse homem…aquele que te feriu?

À pergunta, Shizu abriu os olhos, franziu seu rosto com cicatrizes de queimadura e derramou mais algumas lágrimas. 

— Leon Cromwell — disse — Um dos lordes demônios mais fortes.

Ela me olhou com olhos suplicantes.

— Te prometo! — declarei. — Pelo meu nome como Satoru Mikami, ou Rimuru da Tempestade, ou o que funcionar melhor para você, prometo que farei Leon Cromwell saber tudo o que sente sobre ele. Farei ele se arrepender de cada momento!

[Usar Habilidade Única Predador?]

Sim

Não

“Aqui estou esperando que encontre um pouco de paz dentro de mim, então.”

Sim, pensei comigo mesmo, em uma forma de prece a ela — uma esperança de que os sonhos dela permaneçam felizes para sempre. Sem mais despertares rudes.

Tap, tap, tap, tap…

Ela olhou para cima, seu rosto trazendo a inocência da juventude. O alívio se espalhou através dele quando um sorriso surgiu em seu rosto.

Bem, aí está você! Não me deixe sozinha assim novamente, tudo bem?

Mas a figura balançou a cabeça antes de apontar para algo ao longe. A garota virou-se naquela direção, sua expressão subitamente obscurecida pela tristeza duvidosa.

Lá, ela encontrou—

Mãe!!

Uma explosão de felicidade percorreu seu corpo enquanto ela corria para a mãe. A figura a observou trotar por um momento — então desapareceu, como se nada tivesse ocupado o espaço. Talvez fosse apenas uma ilusão criada pelas memórias da garota.

Assim, a garota se reuniu com sua mãe.

Isso marcou o fim do que fora uma longa, longa jornada.



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