Volume 1
Extra 2: A Garota e o Titã
Ser possuída pelo Ifrit salvou minha vida. Isso, nunca poderia negar. Se tivesse sido deixada sozinha, as queimaduras do ataque aéreo teriam me matado. Não importa o que Leon, o lorde demônio, pretendesse, aceitaria o fato de que devia minha vida a ele.
Como um elemental de fogo de alto nível, os poderes de Ifrit estavam muito além de qualquer coisa que eu pudesse imaginar. Ele, ao assumir meu corpo, milagrosamente domou a magia que queimava dentro de mim. Graças ao fato de estar estabilizada de antemão... se quiser colocar dessa maneira... consegui ganhar uma habilidade. A habilidade única “Divergente”.
Normalmente, ser absorvida pelo ifrit teria apagado minha consciência. Foi “Divergente” que me protegeu. Ifrit pode ter o direito de governar meu corpo, mas ainda consegui manter meu senso próprio apesar da assimilação.
O lorde demônio sempre me mantinha próxima a ele.
Embora Ifrit e eu tivéssemos nos tornado um, meu corpo ainda era jovem e imaturo. Aquele que havia me invocado se impunha sobre mim, mesmo sentado em sua cadeira. Ifrit detinha a posse do meu corpo, então havia muito pouco para ocupar meu tempo. Tudo que podia fazer era olhar todas as coisas que apareciam diante dos meus olhos. Eu nunca me cansei, mas os longos períodos de tédio eram um pouco dolorosos de aguentar. Contudo, aceitei isso. Fazia parte de ser assimilada.
Então, um dia...
— Lorde Leon! Temos intrusos!
...um dos cavaleiros a serviço do demônio invadiu seu escritório.
Eu estava de pé ao lado dele, como sempre. Não tinha mais nada para fazer, e não podia fazer nada de qualquer maneira.
Um cavaleiro de armadura preta, de pé ao lado direito do demônio, pegou sua espada em mãos.
De repente, uma figura misteriosa... uma espécie de mistura entre pássaro e homem... entrou no quarto, gargalhando com sua voz áspera.
— Kehhhh-keh-keh-keh! Saudações de König, o Nascido da Magia! Quando eu derrotar você, Leon, serei o melhor lorde demônio de todos os tempos. Um ex-humano como você, declarando-se um lorde demônio? Saiba seu lugar, demônio! Ficarei feliz em tomar o seu uma vez que seu corpo esteja firmemente enterrado no chão!
Nada que o homem falou conseguiu mudar a expressão facial de Leon. — Hmph, — o cavaleiro lhe disse calmamente: — Vejo que deixar a mim, ao menos, para protegê-lo foi uma escolha sábia. Parece que um dos operários farejou este lugar.
— Tch, — o demônio respondeu logo quando o cavaleiro estava prestes a desembainhar sua espada. — Outro intrometido pretensioso. Pois bem. — Ele olhou para mim. — Está na hora, Ifrit. — O que ele quis dizer? Fiquei confusa.
— Hmm? O que foi, Ifrit? — ele perguntou, com um olhar incompreensível em seu rosto. Minha perplexidade deve ter aparecido nos olhos do meu corpo.
— Ignore-me, vamos, — aquele conhecido como König — um nascido da magia de alto nível, aparentemente — disse enquanto abria seus braços parecidos com asas e os cruzou diante de seu rosto. Por um momento, pude ver suas mãos brilharem.
[Confirmado. Habilidade extra “Percepção de Magia” … adquirida com sucesso.]
Ignorando a voz desconhecida soando em minha cabeça, inconscientemente comecei a andar. Um passo. Dois passos. Então, antes que percebesse, estava em pé diante do lorde demônio Leon... cara a cara com König.
— Você está com tanta pressa para morrer, pirralha? — ele disse. Algo sobre aquela voz me irritou profundamente. — Você vai morrer pelas minhas mãos mais cedo ou mais tarde. Porém, após matar aquele lorde demônio falso… — eu podia ver que as asas estendidas diante dele continham uma quantidade decente de força mágica.
— Morra, bastardo!!
Antes de terminar de falar, ele disparou uma saraivada de penas. Poderia dizer que ele mirou diretamente em mim. Cada uma tinha uma grande quantidade de força por trás... tocar em uma a faria explodir, o que parecia um pouco doloroso.
No momento em que isso me ocorreu, fui tomada por uma raiva violenta, minha cabeça esquentou tanto que pensei que pegaria fogo. Acho que foi a ira de Ifrit dentro de mim.
O que aconteceu a seguir aconteceu em um piscar de olhos. Em um único momento, todas as penas estavam dançando em volta do corpo de König. Olhando de perto, pude ver uma nuvem de fogo, como um chicote, que se estendia da palma da minha mão direita.
— Ah, ahhhh! P-pare! Queimando, pare, pare com isso…
O que quer que König estivesse tentando gritar, nunca conseguiu reunir em uma frase completa. Minhas chamas o consumiram.
Meu coração se encheu de medo. Sabia que aqui mesmo, por minha própria mão, havia matado um ser nascido da magia. No entanto, podia sentir meu corpo relaxando com uma estranha sensação de satisfação profunda. Era difícil de explicar... era como se tivesse acabado de concluir algo que deveria fazer. Parecia que minha mente pertencia a outra pessoa. O terror era insuportável.
Porém… Logo após, tudo se acalmou. A consciência de Ifrit encheu minha alma novamente, reprimindo minhas ansiedades e medos.
No final, acabou me impedindo de enlouquecer. Isso me ajudou a me proteger da culpa que deveria ter sentido ao matar. Não que fosse incapaz dessa emoção... Ifrit apenas exerceu controle sobre mim para garantir que nunca a sentisse. Para garantir que eu, seu anfitrião, nunca perdesse minha mente e morresse.
Então, começou minha estranha relação simbiótica com Ifrit, algo que eu nem queria nem esperava. A mesma coisa aconteceu de novo, inúmeras vezes... e novamente, matei intrusos para Leon, nunca sentindo nada.
Não tinha arrependimentos. Eu era jovem; ainda não sabia o que era certo e errado, e deixei tudo para Ifrit. Simplesmente aceitei, arrastada pela vontade da criatura de queimar aqueles em seu caminho.
Um dia, o lorde demônio falou comigo. — Heh heh. Hahahaha! Eu adorei. — ele disse. — Você me mostrou sua vontade, não é? Você me mostrou que pode sobreviver. Estou impressionado.
Por algum motivo, essa observação não me incomodou nem um pouco. Na verdade, quase me senti orgulhosa.
— Qual o seu nome?
— Shizu…e.
—Shizu-eh? Tudo bem. Seu nome é Shizu. Você se chamará Shizu a partir de agora!
Aceitei humildemente. “Eu sou Shizu. Não Shizue Izawa. O nome com que vivo é Shizu.”
Foi assim que fiquei no castelo do lorde demônio, servindo como seu titã flamejante... um nascido da magia de alto nível. Seu assistente próximo.
※
Vários anos se passaram desde que ganhei o nome Shizu. Após um tempo, pude me mover um pouco por vontade própria. Estava perfeitamente à vontade com a minha simbiose com Ifrit.
O castelo do lorde demônio Leon incluía um centro de treinamento.
Lá, o cavaleiro negro servia como instrutor, fornecendo orientação para as crianças titãs e não humanas ali... embora houvesse alguns adultos também. Era um processo extenuante, e aqueles que não conseguiam acompanhar, muitas vezes encontraram-se sem nada para comer. Nós nos esforçávamos para acompanhar, com tudo que tínhamos.
Foi lá que aprendi a lutar com uma espada, sem pegar emprestado o poder de Ifrit. Não queria perder para nenhum de meus colegas e odiava ser tratada como alguém especial. Foi isso que me levou a melhorar.
Um dia, fiz amizade com uma jovem garota chamada Pirino, uma garota gentil e quieta, um pouco mais velha do que eu. Estávamos na floresta, em uma caçada como parte de nosso treinamento prático de batalha, e começamos uma conversa. Pirino sempre saia sozinha, o que me pareceu estranho, então decidi segui-la.
— Fwee!
Lá, eu a vi brincando com um filhote de raposa do vento. Ela estava lhe dando comida, tomando conta dele escondido. Era um monstro, uma besta mágica, mas também fofa e ainda pequena demais para caçar sozinha. Estava sozinha, separada de seus pais, mas ainda estava viva e prosperando.
— Ah…! — Pirino escondeu a raposa do vento atrás de si enquanto se virava, chocada com a minha presença. — Eu, eu estava cuidando dela, — ela gaguejou, percebendo que eu a tinha visto. — Seria cruel deixá-la para morrer… Não conte a ninguém, ok?!
Seus olhos vacilaram com ansiedade. Podia dizer que seus objetivos eram nobres. Essa era uma pequena vida em suas mãos; ela queria protegê-la. Talvez estivesse com ciúmes daquela raposa do vento. Não estava mais sozinha, eu sentia, mas estava.
— Tudo bem, — eu disse timidamente, — mas… posso cuidar dela com você?
Pirino olhou fixamente por um momento, depois deu um sorriso sereno. — Claro! Na verdade, espero que você possa. Meu nome é Pirino!
Eu lhe dei meu nome e trocamos algumas gentilezas. Ela foi a primeira amiga que já tive na vida.
— Como você a nomeou? — perguntei a ela.
Pirino me deu outro olhar. — Nomear? Os monstros não têm nomes. Eles podem se comunicar um com o outro por suas mentes.
— Mesmo assim, me sentiria mal se esse carinha não tivesse um nome. Ei, tudo bem se eu pensar em um?
— Mesmo? Mas eles disseram que não podemos nomear monstros…
— Por favor? Vamos lá, só uma vez?
Eu não entendi muito bem o que Pirino queria dizer. Não importava o que acontecesse, acreditava que a raposa do vento merecia um nome. Depois de algum tempo, ela relutantemente assentiu para mim – e logo após, estávamos nos divertindo inventando nomes.
Por fim, decidimos por “Pizu”, uma mistura de Pirino e Shizu. Parecia simbolizar nossa recém-descoberta amizade, de certa forma. Eu estava feliz com isso.
— Fweee!!
Chorava de alegria assim, sempre que Pirino ou eu usávamos seu nome. Deve ter gostado do que escolhemos e gostei da reação. Pirino também sorria.
“Isso é muito divertido!”
Eu estava tão sozinha, mas Pirino e Pizu estavam lá para acalmar meu coração.
Viemos visitar Pizu em ocasiões regulares.
Poucos dias após nomeá-la, a raposa do vento cresceu de algo que poderíamos manter em nossas palmas para uma criatura do tamanho de nossas cabeças. Isso nos surpreendeu, mas considerando o quão apegada estava a nós, não nos importamos. Se qualquer coisa, estávamos contentes que era grande o suficiente para caçar por conta própria. Algumas vezes, até tinha um pássaro ou uma lebre selvagem quando a visitávamos.
— Você acha que poderíamos levá-la para o castelo, Shizu? É realmente inteligente e talvez possa ajudar em todo lugar…
— Huh?
Francamente, queria que continuasse sendo nosso pequeno segredo. Mas, diante dos olhos suplicantes de Pirino, não aguentava dizer isso. Não queria que meu egoísmo a entristecesse.
Havia diversas outras criaturas mágicas sendo mantidas no castelo. Uma raposa do vento tão inteligente e amigável com as pessoas – insistiu Pirino – poderia ser facilmente reconhecida como uma fera servil. Esse foi o começo da tragédia.
— Fweeeeee!!
Suponho que você poderia dizer que foi apenas má sorte que passamos pelo lorde demônio Leon em um corredor do castelo. Mas não foi. A culpa foi nossa por presumir que tínhamos a força para proteger qualquer coisa na vida.
— Corra… Corra, Pizu…!!
Encontrar Leon assustou Pizu além de qualquer consolação. Ele saltou das mãos de Pirino, com os pêlos levantados contra Leon em uma demonstração de intimidação.
O ato fez meu titã despertar. No momento em que isso aconteceu, perdi toda a autonomia. Pirino estava tão perto, mas parecia tão distante. Ifrit não se importava como me sentia e atacou Pizu, que rosnava. Não havia como parar meu corpo, não importava o quanto me esforçasse, enquanto agarrava Pizu e o incinerava. Com a minha própria mão.
Isso não foi o fim. As chamas da minha mão formaram um vórtice branco e rodopiante, atacando a garota que trouxe Pizu até Leon. Sem sequer um som, transformou-a em uma pilha de cinzas que desapareceu em instantes. Como se nunca houvesse ninguém lá.
O elemental de fogo, finalmente satisfeito com um trabalho bem feito, deu uma saudação amorosa ao seu mestre demônio antes de se acalmar.
…”O que foi aquilo?” Fiquei lá sem entender, incapaz de analisar minha nova realidade. “Minha mão… Meu… meu corpo… se moveu por… conta própria? Por que… a chama fez… fez eu…?”
Demorou várias horas para perceber que Ifrit determinou não apenas Pizu, mas também sua dona, Pirino, como inimigos de Leon. Com minhas próprias mãos, havia matado minha amiga.
Isso me deixou doente. Por horas a fio, até mais nada sair. Ele deveria ter me matado também. De meu corpo inteiro, surgiu tristeza e um arrependimento enlouquecedor... e então, como se nada tivesse acontecido, estava serena. Nenhuma lágrima caiu de meus olhos, apesar de querer chorar. Nenhuma loucura me tomou, embora quisesse me perder nela. Nenhuma voz escapou da minha garganta, embora quisesse gritar.
O titã nascido da magia também tomou conta da minha mente? Meu coração foi enterrado em uma onda de terror e, em seguida, a calma voltou. Nem sequer era uma pessoa mais. Não importa o quanto queria, nunca alcançaria o tipo de felicidade que os outros tinham direito.
Daquele dia em diante, parei de chorar. Já tinha chorado todas as minhas lágrimas de qualquer maneira. Não havia mais o que chorar. Perdi algo importante demais para mim naquele dia.
E Leon, meu lorde demônio, simplesmente observou friamente. Silenciosamente. Nunca me punindo.