Volume 2

Capítulo 115: O Exército de Moscas

— Vocês têm certeza de que isso vai dar certo? — perguntou Goro, o rosto preocupado sendo acertado pelo vento forte da altitude em movimento.

Ao lado de Colth e Iara, o jovem se agarrava firmemente ao parapeito, que separava o abismo vertiginoso do jardim rústico do castelo de Nox, suspenso sob o céu noturno. Goro observava as inúmeras luzes da cidade cintilando centenas de metros abaixo, enquanto as montanhas projetavam sombras nas nuvens. O grupo avançava, sobrevoando com o objetivo traçado, em direção à fortaleza Última.

— Não se preocupe — Colth amenizou, passando sua convicção. — Eu confio no Mon e nessas pessoas de Nox. Também temos a inteligência da Beca e a bravura do Jorge. Eles vão dar conta do recado, mesmo contra o exército de Última e Hui.

Goro franziu a testa, os olhos ainda cheios de dúvida. Ele não era facilmente tranquilizado, e os rostos dos amigos ali, prestes a saltar para uma batalha iminente, só aumentava sua inquietação. Olhou de relance para Iara, depois para Colth, e soltou um suspiro pesado.

— Não é isso que me preocupa — disse ele, com a voz grave. — São vocês dois.

Colth arqueou uma sobrancelha.

— O quê? — perguntou ele, sem entender de fato.

— Vocês dois, vocês dois são malucos! —  rebateu Goro, gesticulou exasperado, apontando para Colth e Iara, e então para o vasto abismo que brilhava abaixo deles. — Querem mesmo pular daqui, e ainda me fazerem achar isso normal?!

Iara revirou os olhos, cruzando os braços com impaciência, como se a inquietação de Goro fosse uma bobagem sem importância.

— Para de fazer drama — repreendeu ela, com a voz firme. — Se é pra ficar reclamando assim, era melhor nem ter vindo.

Goro respirou fundo, tentando conter o nervosismo que transparecia em seu rosto. Esboçou um sorriso torto, forçado, e tentou aliviar a tensão com uma dose de humor.

— Tá brincando, fofinha? E deixar você sozinha sem supervisão? — disse ele, cínico.

Iara estalou a língua, o olhar fulminante perfurando Goro.

— Não me trate como criança, seu imbecil — retrucou ela, as palavras afiadas.

— Quem você chamou de imbecil, criança?!

Iara deu um passo à frente, encarando-o com a intensidade de quem não recua diante de uma provocação.

Nesse momento, uma risada calorosa e familiar cortou o ar, se misturando ao uivo do vento. Aquele era Montague, na calma de sua segurança de alguém acostumado àquelas alturas. Ele se aproximava com seu porte robusto e imponente. Trajado num casaco longo e elegante, com o tecido reforçado para o combate chegando até os calcanhares, parecia flutuar ao andar. Acoplado em suas costas, por meio de um suporte de couro ajustado aos ombros, carregava uma grande arma de impacto, um martelo maior do que a maioria das pessoas ali.

— Ah — riu ele alto, se divertindo enquanto observava a dinâmica do grupo. — Vocês parecem mesmo bons amigos, não é?

— Eu lhe disse, Mon — respondeu Colth, devolvendo o sorriso. — Tenho muita sorte de tê-los por perto.

Mon suspirou, cruzando os braços, uma leve preocupação em seu olhar.

— É uma pena que não tenham conseguido a força de Bernard — lamentou, a voz pesada com a menção.

Colth assentiu, mas a expressão permaneceu firme, como se não quisesse deixar que o pesar tomasse conta.

— Seria uma boa ajuda, sem dúvida. Mas temos a Iara. Uma verdadeira guardiã, agora — completou Colth, lançando um olhar de aprovação para a arqueira de cabelos com mechas azuis.

Mon a encarou com uma curiosidade reverente, os olhos observando Iara. Sorriu simpático, quase com orgulho.

— Vai ser um prazer trabalhar com a senhorita, guardiã de Véu. Devo dizer que minha deusa tinha um respeito enorme pelo seu deus.

Iara ficou rígida, seus olhos se estreitaram e sua respiração ficou mais pesada. Ela não tinha paciência alguma para isso.

— Meu deus coisa nenhuma — disse ela, a voz amarga, cheia de desprezo. — Eu não dou a mínima para Véu. Na verdade, agradeço por ele estar morto, depois do que fez Índigo passar.

Mon inclinou a cabeça, visivelmente surpreso com a ferocidade de Iara.

— Ah... Entendo a sua visão — ele murmurou, coçando o queixo pensativo. — A senhorita é bem impulsiva, então. Agora entendo a sua alcunha, é um tanto irônica.

— Minha alcunha? — estranhou Iara.

— Sim. O modo que a senhorita é conhecida. “Fofinha”. Certo?

A expressão de Iara mudou instantaneamente para uma ira fervente. Rangeu os dentes e respirou pesadamente irritada, levantando as mãos, como se estivesse prestes a partir para o ataque, enquanto suas sobrancelhas formavam um vale perigoso em seu rosto.

— Não é para ninguém me chamar assim! — ela gritou, rosnando, os olhos em chamas.

Mon manteve a compostura, sem ser afetado pela irritação dela. E antes que refletisse sobre aquilo, Goro se colocou à frente de Iara e roubou a atenção.

— Não se preocupa com ela, senhor Montagem...

Mon ergueu uma sobrancelha ao ouvir a pronúncia incorreta de seu nome, mas manteve a compostura, apenas corrigindo:

— Montague.

— Foi o que eu disse — Goro replicou com um sorriso despreocupado. Ele passou o braço ao redor do pescoço de Colth. — O meu melhor amigo aqui, Colth, me falou sobre você. Vocês se ajudaram e tal, mas tá mais para uma relação profissional. Vai demorar muito para algum dia você poder dar um soco nessa carinha confusa dele como, de fato, amigos fazem...

Colth, tentando se desvencilhar do braço de Goro, sem resultado, olhou para ele com uma expressão de confusão.

— Do que você está falando, cara? — perguntou, sem entender.

Goro sorriu de maneira exagerada, como se tivesse controle sobre tudo.

— Nada demais — rebateu ele, cheio de si. — Só quero deixar as linhas bem traçadas aqui.

— Eu acho que entendo, senhor Goro. — disse Mon, com os dedos massageando o próprio queixo. — Nesse caso, vamos seguir as tradições de Nox, comemorar quando tudo isso estiver acabado, aqui mesmo, quando o sol raiar e a vitória gritar. Como amigos. Hahaha.

— Isso aí! — Comemorou Goro, animado.

— Eu não entendi nada — sussurrou Colth.

— Como verdadeiros amigos. Hahaha. E trocaremos socos entre nós, senhor Goro — finalizou Mon, gargalhando.

— É o quê? — Goro desfez completamente o sorriso e a animação.

Colth finalmente conseguiu se desvencilhar, libertando-se do aperto de Goro com um meio sorriso irônico.

— Agora assume seus problemas, “melhor amigo” — disse ele.

— Espera aí, não foi isso que eu... — tentou Goro, mas foi interrompido.

— Estamos chegando! — gritou Beca, correndo em direção ao grupo, seu binóculo preso ao cinto, balançando junto com seu passo apressado.

Ela parou ao lado de Mon, e o-deixou concluir.

— Bom, então acho que está na hora — murmurou Mon, em tom de despedida, sua voz com um peso solene. Ele ergueu o martelo, apoiando-o contra o ombro enquanto olhava para o trio com uma expressão firme em respeito. — Nos despedimos agora, por enquanto. Nosso próximo encontro será para uma comemoração.

Colth assentiu, o rosto sério, mas os olhos revelando gratidão genuína ao homem imponente à sua frente.

— Obrigado, Mon. — A voz dele era baixa, quase um sussurro, mas sincera.

Iara, Goro e Colth avançaram em direção ao parapeito no final do jardim. Seus passos ritmados em conjunto sobre as pedras irregulares do chão, enquanto o vento noturno trazia consigo a sensação de iminência. Juntos, eles tomaram suas posições, a vastidão escura com as luzes que brilhavam abaixo os convidando ao salto, como se olhando para baixo enxergassem o céu estrelado.

Atrás deles, Beca os observava, braços cruzados, o olhar vacilando entre confiança e preocupação. Sua postura firme não escondia o nervosismo que escapava no apertar de seus dedos contra o tecido de seu casaco.

— Estão levando a ferramenta? — perguntou ela, o tom mais sério que o habitual, quase protetor, como se estivesse entregando algo mais do que sua invenção.

Iara virou ligeiramente a cabeça, lançando um olhar convicto, a luz vinda de baixo acentuava a determinação em seus olhos verde água.

— Acho que você quis dizer, “arma”. Então, sim. — Iara respondeu, já posicionada à frente do abismo.

Colth, impactado pelo tom da inventora, comentou bem humorado, tentando aliviar a tensão.

— Você já havia perguntado isso, Beca — desdenhou ele. — Por acaso está preocupada com...

— É claro que estou — Beca o interrompeu, o rosto severo. — Não é fácil ver uma das minhas invenções partindo desse jeito.

Colth e Goro se entreolharam, sem graça, se perguntando se a engenheira estava sendo irônica, ou realmente ela tinha mais apreço pelo rifle de Sathsai do que por eles. Não tiveram tempo de obter a resposta, Iara os trouxe de volta ao foco.

— Prontos? — perguntou a guardiã de Véu, com os braços estendidos e os olhos fixos no vazio à frente, o vento forte chicoteando seus cabelos.

— Nã…

— Sim — Colth se antecipou, cortando a resposta de Goro e incentivando-o a manter-se firme. Os três se alinharam na beira do parapeito, ombro a ombro.

— Colth — solicitou Iara, com um leve gesto de cabeça.

O guardião de Anima entendeu, fechou os olhos e inspirou profundamente. Em instantes, o escudo de Agnes se materializou ao redor dos três, envolvendo-os em uma aura protetora, a barreira mágica pulsando com um brilho suave.

— Vamos! — gritou Iara, não só para se fazer ouvir, mas também para ganhar coragem diante do que estava prestes a fazer. E então, num só movimento, saltaram.

— Espera…! — Goro tentou protestar, mas já era tarde. Sentiu o impulso de Colth e Iara o lançando ao abismo junto a eles.

A queda começou rápida e violenta, o vento zumbindo nos ouvidos deles enquanto o chão distante de Última se aproximava a uma velocidade vertiginosa. Unidos sob a proteção do escudo de Agnes, deixaram Beca e Mon para trás, impressionados pela bravura.

A engenheira baixinha correu até o parapeito para continuar a ter a visão da queda dos três companheiros. O vento frio açoitava seu rosto, mas ela permaneceu imóvel, seus olhos fixos neles até que, antes de atingirem a lateral da fortaleza Última, Iara invocou o Capelobus de forma providencial, como planejado, para amortecer a queda.

— Impressionante — murmurou Beca para si mesma, exalando um suspiro de alívio ao vê-los chegarem ao destino em segurança.

Mon se aproximou, o olhar no trio enquanto ele segurava o martelo sobre os ombros, as sobrancelhas erguidas em aprovação.

— É sim, impressionante — comentou ele, pensativo. — E olha que dizem por aí que você é a estranha do grupo.

Beca girou o rosto para ele, surpresa e afetada pela revelação.

— Quem disse isso?

Mon respondeu apenas com um sorriso caloroso, e então voltou-se para a porta da entrada do castelo.

— Vamos, filhos de Nox! — gritou ele, convocando a todos. — O nosso destino também se aproxima! Vamos honrar a nossa deusa!

A voz de Mon reverberou pelo jardim, carregada de força e convicção. As palavras dele atravessava o ar denso e frio da altitude, acendendo as almas dos guerreiros que atendiam ao chamado.

As portas pesadas do castelo se abriram lentamente com um som grave e arrastado, e uma fila de homens e mulheres surgiu na escuridão do corredor, seus passos cadenciados ecoando ao se aproximarem da meia luz do jardim.

Eles estavam vestidos de maneira prática, com armaduras de couro e pouco metal escuro, resistentes, mas leves o suficiente para lhes dar agilidade. Carregavam armas diversas. Alguns, espadas curvadas, outros machados, e até algumas bestas, todas armas com desenhos típicos de Nox. Onde as curvas acentuadas nas lâminas se destacavam, mas contrastavam com as gravuras em formas retilíneas no corpo do metal espesso. Os rostos dos guerreiros eram determinados, evidentes pelos olhos firmes e cheios de confiança em seu líder.

Mon ergueu um punho fechado e a multidão se deteve em silêncio, como se aguardasse as palavras. Apenas um dos guerreiros estava desarmado, foi o único que continuou avançando e parou ao lado de Beca e Mon.

— E então? — perguntou Beca, ao outro homem alto e cheio de músculos ao lado dela. — Como ficou, Jorge?

Jorge passou as mãos sobre o pulso que era envoltos dos braceletes de metal liso.

— Acho que seus ajustes foram corretos — respondeu agradecido.

— É claro que foram — rebateu Beca, com o nariz erguido. — Além disso, eu conheço muito bem as minhas ferramentas.

Jorge sorriu de volta a ela, sem se prender a arrogância da pequena.

Mon então deu um passo à frente quando o pequeno exército, com cerca de trinta homens e mulheres, se postou em linha. Ele os percorreu com o olhar, passando de rosto em rosto.

— Vocês sabem por que estamos aqui, filhos de Nox — começou Mon, sua voz firme. — Hoje, lutamos não apenas por nossas vidas, mas pelo direito de sermos livres! Pelo direito de caminhar sob a escuridão da noite e ver o sol nascer novamente. Algo que nos foi negado por muito tempo. Não mais!

Os guerreiros vibraram em resposta, cada um batendo o punho contra o peito em uma saudação poderosa e compassada. O som da batida ecoou pelo jardim, como tambores que fez Beca se impressionar ao lado de Jorge. Mesmo sendo um pequeno batalhão, eram barulhentos o suficiente para demonstrarem sua determinação decidida.

— Vamos mostrar a Última a força de Nox! — Mon rugiu, erguendo seu braço para o céu negro acima com o martelo imenso à mostra. — A deusa que nos guarda e todos os guardiões que caíram estarão conosco neste dia! E quando a vitória estiver ao nosso alcance, nós comemoraremos, nós beberemos, nós viveremos o futuro, no novo destino que conquistaremos!

O exército de Nox ergueu suas armas para o céu, repetindo o brado de Mon em uníssono.

— A força de Nox!

Mon sorriu orgulhoso.

Nesse momento, uma mulher mais velha surgiu da porta principal do castelo, alcançando o jardim.

— Senhor Montague! — gritou Lúcia, chamando atenção. — Estamos sobre o inimigo!

— Ótimo — respondeu o líder, confiante.

Mon se virou para Beca e Jorge, sorriu com o canto de boca.

— Está na hora de desembarcamos — finalizou, convencido de sua decisão.

Os outros dois concordaram em um gesto com a cabeça. Seus olhos também demonstravam determinação. Mon se focou em Beca.

— Pequena garota inteligente, fique com a Lúcia, e estejam preparadas — disse Mon, quase uma despedida.

— Não precisa falar duas vezes — concordou Beca.

— E, garoto corajoso — Mon se virou a Jorge —, quer mesmo me acompanhar?

— Eu tenho que honrar as memórias de certas pessoas que me permitiram viver até aqui. Então, pode ter certeza, conta comigo.

Mon acenou positivamente com a cabeça.

— Eu te entendo. Sua coragem será muito útil — finalizou Mon, então se virou para o pequeno exército uma última vez. — Vamos, força de Nox, vamos saltar!

Ele respirou fundo, concentrando sua magia ao redor de si e dos guerreiros, incluindo Jorge.

— Que Nox nos guie! — gritou Mon, saltando da borda da ilha flutuante.

Atrás dele, o pequeno exército de Nox seguiu como uma avalanche, cada soldado envolto na mesma magia que Mon projetava. Eles caíam em formação, seus corpos protegidos pela concentração de seu comandante.

Lá embaixo, as quatro torres delimitavam o extenso campo de trabalho, seus contornos parcialmente ocultos pela névoa densa que se esgueirava entre os muros. Mon manteve o foco, avistando um batalhão estacionado do lado de fora, posicionado ao longo de uma estrada de terra que serpenteava por um bosque até o portão principal da prisão. As armaduras metálicas reluziam fracamente sob a luz. Aqueles soldados, sem dúvidas, eram parte do exército de Última, estrategicamente colocados para impedir qualquer ação vinda dos de Tera. Eles eram o alvo.

Sem hesitar, Mon ajustou sua trajetória, guiando seus guerreiros em direção à formação inimiga. O silêncio do bosque foi rompido pelos gritos de alerta dos soldados de Última, que, ao erguerem os olhos, avistaram a força de Nox despencando do céu com uma velocidade aterradora.

Com os dentes cerrados e a determinação ardendo em seus olhos, Mon concentrou sua magia, transformando a descida em um golpe avassalador. Ele canalizou toda a energia de sua queda em seu martelo colossal, que brilhou intensamente, atingiu o centro da estrada, frente ao portão.

— Por Nox! — rugiu Mon, como se fosse o trovão de sua própria queda.

O impacto foi devastador. O solo tremeu, e uma onda de energia se espalhou em todas as direções, lançando soldados inimigos pelos ares e desmontando suas formações. A poeira e os fragmentos de terra subiram em uma nuvem, envolvendo Mon no centro do bosque. Atrás dele, os guerreiros de Nox pousavam com precisão mortal, avançando como predadores sobre os soldados atordoados, que tentavam desesperadamente reagir em meio ao caos.

No meio da confusão, Jorge aterrissou com um golpe direto, socando o peito de um homem que mal teve tempo de reagir. O impacto foi brutal, lançando o soldado ao chão lamacento com força, enquanto Jorge mantinha o punho cravado contra ele, o braço reforçado pela tecnologia impecável de Beca no bracelete.

O capacete do homem rolou para longe, batendo na terra encharcada com um som abafado. Sob a luz fraca que atravessava a poeira do campo, revelou-se um rosto exausto e marcado pelo desespero. Lágrimas escorriam silenciosamente pelas bochechas cobertas de sujeira, e seus olhos, perdidos e opacos, encaravam o vazio com a resignação de alguém que já havia desistido de lutar.

— Por favor, acaba com isso... — choramingou, sua voz trêmula quase se apagando no caos ao redor.

— O quê? — Jorge estranhou, se levantou endireitando o corpo, percebendo que havia algo de errado ali. Sussurrou para si mesmo: — Não houve resistência...

Ao fundo, Mon girava o seu martelo colossal, desferindo golpes contra inimigos que caíam sem oferecer oposição. Mais adiante, os guerreiros de Nox amassavam o exército de Última com uma facilidade imprevista. Todos em meio a neblina que começava a se tornar mais espessa, transbordada e vinda de dentro do campo de trabalho, alcançando o bosque, os arredores do lado de fora.

Jorge voltou seu olhar para o homem caído diante dele. Magro, com as mãos levantadas em rendição e olhos arregalados de medo, ele não parecia um soldado. Longe disso, parecia um sobrevivente, um homem à beira do colapso. Jorge ergueu o rosto, seus olhos se fixaram no portão do campo, de onde a névoa parecia emanar, obscurecendo tudo o que havia além.

— Tem algo errado... tem algo errado — Jorge falou para si mesmo, se forçando a ver o que estava ao seu redor. Gritou para os aliados com urgência: — Parem! Parem, todos!

Alguns guerreiros hesitaram, olhares confusos buscando respostas. Mon também parou por um instante, franzindo a testa. Mas a maioria dos combatentes continuava no frenesi da batalha, em meio ao som de lâminas, gritos e corpos caindo abafando a voz de Jorge.

— Parem! Parem! — insistiu ele, seu grito vindo do fundo da garganta. — Esses não são os inimigos, são...

Nesse momento algo chamou a atenção de todo o pequeno exército de Nox, uma risada macabra ecoou, tão penetrante que fez todos pararem e procurarem pela origem, enquanto hesitavam. A risada fez a névoa parecer ainda mais viva, como se estivesse zombando de todos eles.

A figura de Hui emergiu em meio à névoa que começava a se espalhar mais pelo campo de batalha, sua silhueta distorcida frente ao portão de metal vazado do campo atrás dele.

— Bravo! Bravo! — aplaudiu Hui, com sarcasmo. — Que impressionante poder de ataque.

Mon cerrou os dentes, apertando o martelo com força. Ele olhou ao redor, percebendo que muitos dos "inimigos" que sua tropa estava atacando eram, na verdade, homens e mulheres frágeis, malnutridos. Os rostos aterrorizados e os gritos de súplica agora faziam sentido.

— Você, maldito... — Mon rosnou, dando um passo à frente. — Isso é obra sua!

— Quem mais seria? — respondeu Hui, rindo, com um gesto exagerado de humildade falsa. — Você achou mesmo que eu deixaria de dar uma recepção calorosa ao meu amigo bárbaro? Aliás, onde está aquela garotinha que mantinha você na coleira, Mon?

— Seu...

— O que foi? O cãozinho perdeu a dona? — sorriu com o canto da boca.

Os pés de Mon afundaram alguns centímetros na terra, sua raiva transparecendo em uma aura mágica que envolveu seu corpo gigante.

— Calma, Mon — disse Jorge, ao lado dele. — Ele só quer te provocar...

— Eu sei, eu sei. — As palavras escaparam entre os dentes cerrados em raiva de Mon. Em seguida ele assentiu com a cabeça em direção a Jorge, um pouco mais calmo e concentrado no que importava. Voltou os olhos para o homem frente ao portão. — Não vai acontecer, Hui. Não vai conseguir me desviar do meu objetivo.

— Objetivo? — Hui levantou uma das sobrancelhas.

— Tirar esse sorrisinho falso da tua cara.

Hui aumentou o sorriso em seus lábios, mas seus olhos estavam sérios agora. Ele então deu um passo à frente, a névoa ao seu redor se abrindo como um manto que obedecia à sua vontade.

— Preparem-se — ordenou Mon, ao seus guerreiros, segurando o martelo com mais força, preparado para o combate. — Em posição!

Hui respirou fundo e ergueu os braços. A névoa começou a se dissipar, revelando o horror atrás dele, atrás dos portões. Centenas de homens e mulheres, todos magros, sujos e com as roupas rasgadas. Mas o que chamou a atenção de Jorge, foram os olhos completamente brancos e a sintonia aterrorizante entre as respirações deles.

— Eles são... — Jorge sussurrou, incrédulo, sua voz trêmula diante da visão. — Lunáticos...

Mon lançou um olhar rápido por cima do ombro e notou o movimento entre as árvores do bosque. Homens armados e bem equipados surgiam de todas as direções, cercando-os.

— Merda... — grunhiu ele, ajustando o aperto no cabo de seu martelo. Os guerreiros ao seu redor se posicionaram, tensos. — E eu achando que terminaríamos rápido aqui.

Jorge manteve os olhos fixos em Hui, o sangue fervendo enquanto encarava as aberrações amontoadas como marionetes à espera de um comando atrás do portão. Sua voz vacilou, mas o tom era enfurecido:

— Os lunáticos... essas aberrações que começaram a surgir, que estão aos montes em Tera... Foi você!

Hui sorriu com o canto dos lábios ao receber a acusação de Jorge, revelando a veracidade agora evidente.

Os portões atrás dele começaram a ranger, abrindo-se lentamente. As centenas de criaturas, que um dia foram humanas, começaram a avançar com passos lentos e cambaleantes, suas expressões vazias preenchidas por uma ferocidade sobre-humana.

Hui deu um passo para trás, sua silhueta sendo engolida pela multidão que o ultrapassava. Seu sorriso se alargou enquanto dizia:

— Sejam bem-vindos ao meu laboratório.



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